Araraquara, 20 de setembro de 2015.
Estava extremamente atarefada, como sempre acontece quando se tem que cuidar da casa, do marido, dos filhos e da carreira. Naquela manhã de segunda-feira, em particular, me encontrava ansiosa e meio desligada. Havia sonhado com meu pai. Depois que falecera, só havia sonhado com ele umas duas vezes no máximo. E foi pra lá de estranho. Tão real! Depois que me levantei, passei a ficar irrequieta, mesmo estando concentrada nos afazeres. Sentia um aperto no peito cada vez que me lembrava do sonho e do que ele me pedira para fazer. A saudade se misturava à apreensão. Em algum momento teria que voltar à sua casa, e com certeza iria imediatamente ao seu lugar preferido — a escrivaninha de mogno do seu escritório — já que a cena toda se passava lá, com ele sentado na sua poltrona preferida de couro marrom.
Rodeada de livros, colocados perfeitamente nas estantes, por ordem alfabética e por tamanho, ficava sua mesa de trabalho, adornada de relevos entalhados com perfeição por toda a lateral dos pés e do tampo. Nas quatro gavetas ele guardava alguns dos processos que havia ganhado e dos quais tinha mais orgulho. Como devem imaginar, meu irmão mais velho e eu éramos proibidos de mexer em suas coisas, porém, para mim aquele lugar era uma espécie de santuário, um lugar mágico. Minha mãe sempre me deixava estudar e desenhar sobre aquele tampo, enquanto ele estava no Fórum ou em seu escritório na cidade; desde que eu não mexesse em suas coisas. Mesmo que quisesse chafurdar suas gavetas, ele as mantinha trancadas à chave. Sempre fora um mistério para mim o lugar onde a escondia. Às vezes, passava a manhã toda sem desenhar, apenas olhando para aquele mar de livros de capas duras e escuras, pensando em qual deles a chave dourada, que me levaria para outro lugar, estaria escondida.
Relembrando minha infância naquela casa, sinto a saudade me invadir causando uma dor pungente. Minha mãe se fora há muito tempo. Ninguém conseguiu tirá-lo de lá. Sei que a falta dela o oprimia, porém, aguentava as coisas, calado. Talvez fosse seu lado jurista que o fizesse encarar as dificuldades com naturalidade. Sempre que perguntava à minha mãe porque o pai era tão taciturno, mamãe respondia que ele tinha seus fantasmas e que era para deixá-lo em seu canto, com seus livros. É claro que nunca entendi o que ela queria dizer com isso. Hoje penso que era o meio que encontrava de nos manter afastados; quando ele se mostrava sombrio, como se algo o incomodasse e a solução para isso fosse o silêncio, e também o copo de uísque, que acho que nem tocava. Creio que o efeito da luz difusa incidindo no líquido âmbar o acalmava ou talvez o usasse feito um talismã para afastar as sombras que lhe corroíam a alma.
Jamais fora um pai ausente. Sempre esteve conosco nos momentos em que precisávamos de sua presença. Festas de aniversário, festas de escola, passeios nos finais de semanas e tantos outros eventos. Não era um homem infeliz, acredito, porém não era desses homens que riem à toa. Acho que nunca o vi soltando uma gargalhada prazerosa.
Agora, depois de tantos anos, vejo que essa taciturnidade sempre foi uma característica sua, embora mamãe, uma vez, tenha comentado que nem sempre fora assim. Como toda adolescente que se preza, nunca cheguei a perguntar o que o teria transformado. Algumas passagens de minha infância levam-me a ter um vislumbre do que poderia ter acontecido. Quando tínhamos medo de dormir sozinhos no escuro, ao contrário de mamãe que sempre ralhava com a gente, ele se levantava da cama e ficava conosco até que voltássemos a dormir sossegados. Não precisava dizer palavras, apenas sua presença bastava.
Nunca nos incomodou por causa de nossos medos infantis. Ele tinha os dele. Às vezes eu sonhava com uma figura feminina que me amedrontava. Era extremamente bela, porém estranha, que de uma forma ou de outra, me fazia acordar aos gritos. Nunca conseguia me lembrar, porque me fazia gritar. Quando eu lhe contava sobre a mulher, ele apenas me olhava ansioso, depois soltava seu sorriso tímido e me pedia para esquecer. Era apenas um sonho. Não deveria ligar para isso. Ela jamais poderia me machucar, pois só existia em minha mente. Segurando sua mão sedosa, acabava por dormir novamente.
Engraçado lembrar-me dessas coisas depois de tanto tempo. Quando adolescente esses sonhos cessaram. Cresci e nunca tive interesse em histórias sobrenaturais e outras coisas do gênero. Sempre fui cética e avessa às doutrinas. Cheguei, quando já estava na faculdade, a rechaçar a crença no sobrenatural e na religião, ao que ele rebatia dizendo que não era para eu falar sobre algo que não entendia. Coisas estranhas aconteciam o tempo todo, mas nunca me disse que coisas estranhas eram essas. Estou relembrando esses fatos por que, creio, tem a ver com o sonho:
Ele está sentado em sua cadeira de couro. A luz do abajur, acesa, clareia a folha pautada no centro da escrivaninha. A penumbra no escritório deixa o ambiente um tanto quanto sinistro. Sua mão desliza sobre a folha, àquela altura já meio preenchida, de forma intensa, como se estivesse exorcizando todos os seus fantasmas, prendendo-os em cada pauta. Às vezes apenas segura a caneta e se reclina no assento da cadeira, fechando os olhos. Em seu rosto transparece o cansaço nas rugas e nas olheiras sob os olhos vívidos. Volta a escrever freneticamente por mais alguns instantes. Nos momentos de pausa, posso ver perfeitamente a angústia em sua face. O copo de uísque continua intocado.
Seus cotovelos se apoiam no tampo da escrivaninha, enquanto as mãos escondem o rosto. Parece mais velho do que era. Talvez a dor o estivesse amedrontando, ou a certeza de que a morte o abraçaria dentro em breve. Volta a escrever, de forma aflita, enquanto sua grafia treme à medida que o fim se aproxima. Várias folhas preenchidas, com sua letra inclinada para a direita, encontram-se amontoadas ao lado do notebook desligado. Um peso de papel em forma de tartaruga prende as folhas, mantendo-as fora da ameaça do vento gelado que entra pela janela aberta, enquanto a noite cai.
De repente tudo está terminado. Ele se debruça sobre a mesa, cansado, ou aliviado. Então, volta a se reclinar sobre o assento da cadeira, a contemplar as estantes amigas. Instantes depois, recupera todas as folhas do peso que as prendia, grampeando-as no canto superior esquerdo. Num envelope branco escreve meu nome, grifando-o duas vezes, colocando-o no início do monte, e depois, deposita na primeira gaveta, lacrando-a com a chave. Ele a gira em sua mão, olhando para o nada. Levanta e se encaminha à estante, à esquerda da escrivaninha. Na quarta fileira, de baixo para cima, retira um exemplar grosso de capa dura. Dentro do livro de madeira havia um nicho perfeitamente esculpido entre suas folhas falsas. Ali depositou a chave dourada, lacrando e devolvendo-o ao seu santuário.
De repente, estou em meu quarto, ao lado do meu marido que dormia profundamente. Sobressaltada, abro os olhos e o vejo parado aos pés da cama.
— Papai! Você está bem? — Perguntei, atirando o edredom para o lado e me levantando.
— Não se levante...
— Papai, que saudade. Como o senhor está? — Encontrava-me aflita, enquanto olhava para seu rosto amedrontado, querendo abraçá-lo, mesmo sabendo-o morto.
— Não o deixe ir para lá. — Disse, olhando por sobre o ombro.
— O quê? Não deixe quem ir aonde?
— É perigoso. Não o deixe ir.
— Ir aonde, papai? Espere. — Pedia, enquanto ele se afastava da cama e desvanecia na minha frente, não sem que antes eu veja a mão fina da mesma mulher que me incomodava os sonhos quando criança, segurando-o pelo ombro.
Acordei com um grito preso na garganta, sentindo os olhos úmidos. Meu pai me pedia para fazer algo de que não tinha ideia. Aquilo era tão contrário às suas atitudes. Jamais proibira a mim ou a meu irmão de ir a qualquer lugar que quiséssemos. Apenas nos alertava do perigo que poderíamos correr, caso optássemos em não considerar que atos impensados poderiam nos meter em alguma enrascada. Considerava que a melhor maneira de se aprender uma lição era nos tornar responsáveis por nossas atitudes. Nunca o vi, em vida, com tanto medo. O que tudo aquilo significava? O que tanto ele escrevia? Quem era aquela mulher e porque o perseguia com tanta resolução? Voltei a dormir muito tempo depois do meu coração ter serenado. O relógio sobre a televisão ainda marcava 03:15hs. Uma coisa era certa. Teria que deixar minhas incertezas de lado, entrar naquela casa e descobrir o significado de suas últimas palavras.
Estava protelando, já fazia algum tempo, o destino que daríamos à casa de papai. Evitava o assunto com meu irmão e cunhada, entretanto, tinha que ser pragmática. Era o que o velho queria de nós. Eles se foram. Mas a casa continuava lá, cheia de lembranças, porém, esperando por uma nova família que lhe devolvesse a vida.Vendê-la seria doloroso. Alugá-la, estava fora de cogitação. Morar lá, uma possibilidade. Mas qual de nós dois voltaria a viver naquele lugar, sendo que ambos tínhamos nossas próprias casas? Aquilo tudo era pura recordação. Cada canto daquela casa lembrava algo. A primeira boneca, o primeiro joelho ralado, a descoberta do sangue e do antisséptico, o amor incondicional da mãe curando nossas feridas, e tantas outras coisas. Na cozinha, ainda conseguia vê-la.Parece que ficara ali para sempre, em p&e
Araraquara, 27 de setembro de 2015.Estranhamente, minha cunhada me ligou na sexta-feira, pedindo-me para encontrá-la na casa de papai, na manhã seguinte, onde um corretor nos esperaria para avaliá-la. Havia conversado por alto com meu irmão, depois que havia sonhado com meu papai, para falarmos sobre sua casa. Ainda não estava certo se a venderíamos, mas, dependendo do valor e da proposta, talvez fosse a coisa certa a fazer.— Val? É Meire. Já está na casa? — Gritou ao celular, assim que acabara de estacionar o carro, naquela manhã ensolarada.— Estou. Onde você está?— Não vou poder ir. Vou ter que levar o Ian ao pediatra. Teve febre à noite toda.— Ah, pobrezinho! Tem médico hoje?— O pediatra dele é particular. Atende a qualquer hora.&mdash
Vila de Paranapiacaba, 1946.Foi o ano do grande incêndio na Estação da Luz, que quase a dizimou. Por sorte, os documentos dos empregados da Companhia estavam seguros em outro prédio, o que levou muitos a pensar que o incêndio fora criminoso, já que o fogo começara justamente nos escritórios da Estação. Na época eu estava com vinte e dois anos e recém-formado em advocacia pela Faculdade do Largo São Francisco. Fui enviado pela empresa em que trabalhava na época a uma Vila do Distrito de Santo André, para tratar de assuntos pertinentes aos empregados da São Paulo Railway Company. Essa empresa acabara de perder a concessão da exploração da ferrovia, assinada por Dom Pedro
Com pensamentos doces aliviando minha mente, enquanto assobiava uma valsa alegremente, abri a mala e guardei meus ternos num armário pequeno de mogno, ao lado da cama. Olhei pela janela e pouco vi do vilarejo. Pensei em deixar a pensão e ir direto aos meus afazeres, mas como conseguiria chegar ao meu lugar de trabalho sem conseguir enxergar um palmo diante do nariz? Refestelei-me na cama, após pendurar o paletó na única cadeira disponível, e ali fiquei pensando em qual seria o próximo passo.Teria que me apresentar aos cidadãos da Vila, embora já me esperassem de antemão, e explicar-lhes as novas condições de trabalho. Muitos seriam reaproveitados pelo governo, que não via a necessidade da contratação de novos funcionários, já que os serviços de manutenção da ferrovia continuariam os mesmos, por enquanto. Minha preocupação e
Acomodamo-nos numa mesa do restaurante. Sentei-me, encarando-o, à espera de que tomasse a iniciativa da conversa. Porém, ele se levantou e, instantes depois, voltou com uma garrafa transparente contendo um líquido que chamou de fogo paulista.— Noite gelada. Toma um gole doutor. — Pediu-me com olhos brilhantes e sarcásticos.Tomei a bebida, querendo me igualar a ele, que desceu rasgando minha garganta e inflando meu estômago. Ele riu da minha tentativa de esconder o horror que senti.— Bebida para homens fortes, doutor. Acho que o senhor não está acostumado a isso. — Ergueu a caneca e deliciou-se com outro gole, limpando a boca na manga da camisa.— Temos algo parecido em minha cidade. — Informei, com o rosto vermelho; e fui presenteado com uma sonora gargalhada.— Gosto do senhor. — Disse, depositando a caneca de metal na mesa, me encarando ferozmente.<
Demorei a me refazer do estranho sonho. Havia acabado de descer para o café da manhã quando dei de cara com Irina. Seu vestido azul rodado, emoldurado por um cinto preto, a deixava mais bela do que no dia anterior. Sorri-lhe educadamente e de sua boca recebi apenas um leve esgar.— Bom dia, doutor. Deseja seu café agora?— Por favor.Dirigi-me ao restaurante vazio, olhando curioso ao meu redor.— É apenas o senhor — disse, dando de ombros.— Mas ontem à tarde...— Todos vêm à hora do chá. Mamãe é especialista em bolinhos amanteigados. Receita de uma senhora inglesa passada à minha avó.— Estavam realmente saborosos. — Respondi, ávido por intitular uma conversa e descobrir mais sobre aquela garota.Ela se calou enquanto me servia. Gostaria de manter uma conversa fluente com a pequena, mas ela
Recolhi-me ao quarto e lá fiquei a tarde toda. Aquela neblina densa me impedia de sair da pensão. Preparei-me para o encontro daquela noite, pois sabia que seria bombardeado de perguntas e ainda teria que encarar meu rival. Não tinha tido a oportunidade de descobrir se o coração de Irina batia por alguém, mas, com certeza, naquela noite descobriria. Assim como todos da Vila, ela estaria lá com os pais.Seguimos juntos para o Clube e aprovei a oportunidade para ficar alguns minutos ao lado de Irina, que caminhava segurando um xale sobre os ombros, enquanto seus pais seguiam à frente, abrindo caminho por entre as brumas.— Parece irrequieta, senhorita — perguntei vendo-a tão calada — Algo a preocupa?— Não. — Sua voz saiu num sussurro, quase inaudível.Segui em silêncio, querendo arrancar alguma palavra de seus lábios, porém, por ma
Deitei-me naquela noite a sonhar com as mãos macias da pequena. O cheiro da erva aromática que Irina colocara em meus olhos, fazia-me confundir com seu cheiro doce de flor de laranjeira. Estava perdidamente enamorado. Confesso. Apaguei, pensando nela.Novamente andava por aquele conjunto de casas desarranjadas, próximas à Igreja. Assoviei novamente em frente à janela de uma das casas assobradadas e novamente vi a cortina se movimentar. Apertei o passo e segui em direção ao pátio da Igreja. Era fim de tarde. A noite adentrava e as primeiras estrelas começavam a despontar no céu. Ouvi um barulho às minhas costas e me virei. Perdi o fôlego ao ver a pequena à minha frente. Seus cabelos eram tão negros quanto a noite que caía e, seus olhos, de um azul turquesa fantástico, iluminavam a face branca e límpida. Sorriu ao ver-me e foi como se mú