Araraquara, 27 de setembro de 2015.
Estranhamente, minha cunhada me ligou na sexta-feira, pedindo-me para encontrá-la na casa de papai, na manhã seguinte, onde um corretor nos esperaria para avaliá-la. Havia conversado por alto com meu irmão, depois que havia sonhado com meu papai, para falarmos sobre sua casa. Ainda não estava certo se a venderíamos, mas, dependendo do valor e da proposta, talvez fosse a coisa certa a fazer.
— Val? É Meire. Já está na casa? — Gritou ao celular, assim que acabara de estacionar o carro, naquela manhã ensolarada.
— Estou. Onde você está?
— Não vou poder ir. Vou ter que levar o Ian ao pediatra. Teve febre à noite toda.
— Ah, pobrezinho! Tem médico hoje?
— O pediatra dele é particular. Atende a qualquer hora.
— O que será que ele tem?
— Deve ser garganta. Com esse tempo! O corretor já chegou?
— Ainda não.
— Bem, preciso ir. Me liga à noite e me conta o que ele falou, ok?
— Ok. Se precisar de algo...
— Tenho que ir. Teu irmão já está no carro, buzinando. Aproveita e dê uma boa olhada na casa.
— Vou olhar.
— Beijos.
Assim que ela desligou o celular, passei a encarar a entrada da casa com pesar. Tantas vezes entrei por aquele mesmo portão sabendo que estariam me esperando acordados, apenas para perguntar como tinha sido meu dia. A saudade ainda doía. Desejava vê-los abrir a porta com um sorriso no rosto. Esperava pelo corretor, perdida nas lembranças, entretanto parecia que ele também resolvera me dar o cano, porém não liguei muito, já que desejava voltar para casa o mais rápido possível, e prorrogar mais um pouquinho a difícil decisão.
Meu marido havia deixado o Lucas ir para Ilha Comprida com os amigos e eu, pra variar, tinha que arrumar suas malas. Com vinte anos e ainda tinha que arrumar suas coisas como se ele tivesse dez. Mas acho que é assim que os pais criam os filhos hoje em dia. Dependentes. Talvez por causa da violência que impera nas ruas.
Despedi-me do meu filho logo após o almoço. Eles saíram tão felizes em busca de aventuras que meu coração se encheu de alegria por toda aquela juventude inconsequente. Com os preparativos para sua viagem, acabei esquecendo-me de ligar para meu irmão e dizer que havia levado o cano do corretor. No domingo cedinho ele me ligou dizendo que não havia dormido a noite toda por causa do filho e me fez prometer que iria à casa de papai assim que desligasse o telefone.
Como meu marido tinha um jogo de futebol depois do almoço, com os amigos, resolvi acabar com a relutância em resolver o problema, que meu irmão gentilmente havia delegado a mim. Deixei meu marido no clube e segui para minha antiga casa. Assim que entrei, aquela sensação de tristeza me invadiu. A porta da frente se fechando atrás de mim encerrava mais uma fase da minha vida. Corri os olhos pela sala tão conhecida e senti lágrimas quentes rolando pela face.
Olhei para o escritório de papai e vi sua cadeira me convidando a sentar. Fui até lá. Abri a janela, deixando o ar fresco da tarde invadi-la. Sentei-me e deixei os olhos passearem pelo lugar. Sua presença ali ainda era forte. Sem querer, encarei a estante à minha esquerda e vi o livro com o qual havia sonhado. Levantei num pulo e fui até ele. Retirei-o devagar da estante, com o coração martelando no peito. Seria o sonho tão real assim, a ponto de, depois de tantos anos, dar de cara com o esconderijo de papai?
Minhas mãos tremiam. Antes de abri-lo, passei a mão por sua capa dura, sentindo a textura firme do couro por cima da madeira. Então abri. E, para minha surpresa, ela estava lá, tão dourada quanto me lembrava. Tirei-a do nicho, fechei o livro, abraçando-o ao peito, tentando acalmar o baque surdo das batidas do meu coração.
Sentei na velha poltrona de couro com a boca seca. Coloquei a chave na fenda da gaveta e girei devagar. Naquele momento, soube que não estava sozinha naquele escritório. Puxei a última gaveta, deslizando-a suavemente. Objetos pessoais de papai olhavam acusatórios para mim. Pareciam me perguntar onde estava seu dono e por que não estavam mais sendo usados? Toquei-os com a ponta dos dedos e senti a fina dor atingir meu coração. Fechei aquela gaveta e puxei a primeira. Sabia o que iria encontrar antes mesmo de tê-la aberto. Lá estavam elas, simetricamente grampeadas, umas sobre as outras.
Meu nome pulsava em vermelho, no envelope lacrado em cima do monte. Ele escrevera tudo aquilo para mim? Seriam instruções? Desprendi as folhas, curiosa, e sua letra inclinada me tocou profundamente. Havia várias delas. O que seria tudo aquilo? E por que justamente para mim? Abri o envelope que continha meu nome e um misto de ansiedade e perplexidade me invadiram:
Minha querida Valquíria,
Creio que já deva ter partido dessa vida, porém, depois de muito pensar, cheguei à conclusão que você deve tomar conhecimento do que sei e do que nunca contei a ninguém. Deve estar se perguntando por que você, não é mesmo? Sim, querida. Eu te conheço. Por mais que possa pensar que não prestava atenção em vocês, sinto decepcioná-la. Eu prestava sim, e muito. Por isso sei do seu ceticismo e da sua descrença. No momento, a crença é tudo o que me consola e espero que possa consolar você também, quando ela vier procurá-lo.
Não escrevi errado, pois sei que ela virá atrás dele, e por isso, você deve estar preparada. O segundo filho, do segundo filho. Assim como eu fui, seu filho o é. Sinto o horror me invadir quando me lembro daqueles dias. Durante anos vivi como se não tivessem existido, mas agora que estou velho e morrendo, revivo cada dia como se fosse ontem. Às vezes, desejo que tudo isso acabe logo e que sua mãe, que Deus a tenha em um bom lugar, possa vir me buscar e me proteger, como já fez um dia. Minha amada! Que saudade!
Não estou senil, minha querida Valquíria, por mais que vá pensar que sim quando terminar de ler essas palavras. Estou escrevendo-as por amor a você e a seu filho. Peço a Deus para que ela não volte. Caso contrário, que Deus nos ajude...
Reli várias vezes a carta de papai, enquanto andava irrequieta pelo cômodo, sem entender exatamente suas últimas palavras. Sentei-me novamente em sua cadeira e mergulhei nas várias páginas manuscritas que ele havia deixado. Quando saí de sua cadeira, havia deixado o mundo seguro que conhecia e mergulhado no mais profundo terror e desespero que um ser humano pode sentir, ou viver.
Vila de Paranapiacaba, 1946.Foi o ano do grande incêndio na Estação da Luz, que quase a dizimou. Por sorte, os documentos dos empregados da Companhia estavam seguros em outro prédio, o que levou muitos a pensar que o incêndio fora criminoso, já que o fogo começara justamente nos escritórios da Estação. Na época eu estava com vinte e dois anos e recém-formado em advocacia pela Faculdade do Largo São Francisco. Fui enviado pela empresa em que trabalhava na época a uma Vila do Distrito de Santo André, para tratar de assuntos pertinentes aos empregados da São Paulo Railway Company. Essa empresa acabara de perder a concessão da exploração da ferrovia, assinada por Dom Pedro
Com pensamentos doces aliviando minha mente, enquanto assobiava uma valsa alegremente, abri a mala e guardei meus ternos num armário pequeno de mogno, ao lado da cama. Olhei pela janela e pouco vi do vilarejo. Pensei em deixar a pensão e ir direto aos meus afazeres, mas como conseguiria chegar ao meu lugar de trabalho sem conseguir enxergar um palmo diante do nariz? Refestelei-me na cama, após pendurar o paletó na única cadeira disponível, e ali fiquei pensando em qual seria o próximo passo.Teria que me apresentar aos cidadãos da Vila, embora já me esperassem de antemão, e explicar-lhes as novas condições de trabalho. Muitos seriam reaproveitados pelo governo, que não via a necessidade da contratação de novos funcionários, já que os serviços de manutenção da ferrovia continuariam os mesmos, por enquanto. Minha preocupação e
Acomodamo-nos numa mesa do restaurante. Sentei-me, encarando-o, à espera de que tomasse a iniciativa da conversa. Porém, ele se levantou e, instantes depois, voltou com uma garrafa transparente contendo um líquido que chamou de fogo paulista.— Noite gelada. Toma um gole doutor. — Pediu-me com olhos brilhantes e sarcásticos.Tomei a bebida, querendo me igualar a ele, que desceu rasgando minha garganta e inflando meu estômago. Ele riu da minha tentativa de esconder o horror que senti.— Bebida para homens fortes, doutor. Acho que o senhor não está acostumado a isso. — Ergueu a caneca e deliciou-se com outro gole, limpando a boca na manga da camisa.— Temos algo parecido em minha cidade. — Informei, com o rosto vermelho; e fui presenteado com uma sonora gargalhada.— Gosto do senhor. — Disse, depositando a caneca de metal na mesa, me encarando ferozmente.<
Demorei a me refazer do estranho sonho. Havia acabado de descer para o café da manhã quando dei de cara com Irina. Seu vestido azul rodado, emoldurado por um cinto preto, a deixava mais bela do que no dia anterior. Sorri-lhe educadamente e de sua boca recebi apenas um leve esgar.— Bom dia, doutor. Deseja seu café agora?— Por favor.Dirigi-me ao restaurante vazio, olhando curioso ao meu redor.— É apenas o senhor — disse, dando de ombros.— Mas ontem à tarde...— Todos vêm à hora do chá. Mamãe é especialista em bolinhos amanteigados. Receita de uma senhora inglesa passada à minha avó.— Estavam realmente saborosos. — Respondi, ávido por intitular uma conversa e descobrir mais sobre aquela garota.Ela se calou enquanto me servia. Gostaria de manter uma conversa fluente com a pequena, mas ela
Recolhi-me ao quarto e lá fiquei a tarde toda. Aquela neblina densa me impedia de sair da pensão. Preparei-me para o encontro daquela noite, pois sabia que seria bombardeado de perguntas e ainda teria que encarar meu rival. Não tinha tido a oportunidade de descobrir se o coração de Irina batia por alguém, mas, com certeza, naquela noite descobriria. Assim como todos da Vila, ela estaria lá com os pais.Seguimos juntos para o Clube e aprovei a oportunidade para ficar alguns minutos ao lado de Irina, que caminhava segurando um xale sobre os ombros, enquanto seus pais seguiam à frente, abrindo caminho por entre as brumas.— Parece irrequieta, senhorita — perguntei vendo-a tão calada — Algo a preocupa?— Não. — Sua voz saiu num sussurro, quase inaudível.Segui em silêncio, querendo arrancar alguma palavra de seus lábios, porém, por ma
Deitei-me naquela noite a sonhar com as mãos macias da pequena. O cheiro da erva aromática que Irina colocara em meus olhos, fazia-me confundir com seu cheiro doce de flor de laranjeira. Estava perdidamente enamorado. Confesso. Apaguei, pensando nela.Novamente andava por aquele conjunto de casas desarranjadas, próximas à Igreja. Assoviei novamente em frente à janela de uma das casas assobradadas e novamente vi a cortina se movimentar. Apertei o passo e segui em direção ao pátio da Igreja. Era fim de tarde. A noite adentrava e as primeiras estrelas começavam a despontar no céu. Ouvi um barulho às minhas costas e me virei. Perdi o fôlego ao ver a pequena à minha frente. Seus cabelos eram tão negros quanto a noite que caía e, seus olhos, de um azul turquesa fantástico, iluminavam a face branca e límpida. Sorriu ao ver-me e foi como se mú
Às cinco horas, ouvi uma batida insistente na porta do quarto. Encontrava-me deitado, com os olhos fechados e o braço direito descansando neles, como se isso pudesse aliviar a dor que sentia.— Está aberta. — Respondi às batidas insistentes.— Olavo, você está bem?Ah, aquela voz de anjo encontrava-se preocupada. Talvez, se fizesse a dor se tornar mais feia do que estava, poderia acabar nos braços da moça, afugentando o torvelinho de emoções que me deixavam entrevado naquela cama. Sonho, apenas! Isso poderia abalar a reputação da pequena e Deus sabe o que poderia acontecer comigo, caso o pugilista descobrisse.— Apenas uma enxaqueca. — Afirmei, tirando o braço dos olhos, focando-os nela.— Mamãe mandou servir-lhe o chá. Quer outra aspirina?— Talvez. — Disse, erguendo-me da cama.&mdas
Assim que chegamos à pensão fui direto para o quarto. Estava atordoado. O beijo de Irina ainda latejava em meus lábios, porém, aquela sensação nostálgica de pertencer à outra pessoa, a outro lugar, ainda me assombrava. Não aguentando mais a opressão daquelas quatro paredes, desci à sua procura. Queria que o jantar terminasse logo para que pudesse tê-la apenas para mim. Precisava saber o que ela tanto teimava em me esconder. Desci a escada de dois em dois degraus e estanquei quando vi Marcus segurando novamente seu braço de forma possessiva. — Virei buscá-la para o baile. Seu pai me deu permissão. — Mas eu não dei. Não irei com você. — Respondeu, puxando o braço. Ele a olhou enviesado, avaliando-a, feito um animal sobre sua presa. Naquele momento senti orgulho da menina. Ela o encarou de volta com superioridade, o que o fez abaixar os olhos. Um humilde a seus pés. — É por causa daquele doutorzinho frouxo? — Não diga bobagens! Eu mal o conheço.