Eu odiava cemitérios. Algumas pessoas costumavam dizer que lugares como aquele traziam a calmaria para aqueles que precisavam do descanso eterno, o acalento para aqueles que ainda buscavam algum tipo de contato com seus entes que se foram, ou ainda a paz de espírito para aqueles que precisavam de um ponto final para certas histórias. Para mim, aquele lugar não passava de um depósito de corpos em decomposição e por isso eu tinha demorado cerca de seis meses para conseguir estar aí.
- E aí? – Perguntei olhando para a lápide que exibia o nome Otto Milani. – Tô aqui... É estranho porque eu sinto que estou falando com um amontoado de ossos e não com você de verdade, mas a doutora Lee me disse que eu precisava fazer isso como um rito de passagem, ou sei lá, e aqui estou eu... Lembra dela, né, a dourara Lee? Minha psicóloga desde que perdi meus pais, e continuou sendo agora que perdi você.
Meu olhar vaga pelo lugar enquanto tento encontrar palavras para continuar dizendo tudo que preciso dizer a Otto. Um enterro está acontecendo não muito longe dali, observo pela janela de vitrais da cripta, e uma mulher com um choro descontrolado rouba minha atenção por um minuto. Não chorei por Otto, ao menos não em público. Muito menos em seu enterro, já que não estive presente.
Resolvo me sentar em um banquinho e tento manter minha atenção longe da mulher chorosa, voltando a encarar a lápide como se o rosto de Otto pudesse me olhar de volta. Bem, é claro que havia uma foto dele ali, mas não era exatamente disso que eu estava falando.
Meu vestido preto colado ao corpo reluta um pouco contra o movimento, subindo através de minhas coxas. Eu não ligo. Era somente eu e ossos ali.
- Faz seis meses desde que você partiu, e semana passada finalmente abriram seu testamento... Você é mesmo um idiota, não é? Eu tenho vinte anos agora, Otto, vinte anos! Você realmente acha que eu não sei cuidar sozinha de mim mesma? Por favor... Para começo de conversa, eu estava usando cinto de segurança aquela noite e você não, tá? – As lágrimas finalmente começam a brotar em meus olhos. Lágrimas que engoli por meses. – Quem é que não sabe se cuidar, hein? Olha onde eu estou e olha onde você está!
Tive que controlar a vontade de gritar com Otto, ou... com o que quer que tenha sobrado dele depois desse tempo. Abaixo o par de óculos de sol, que estava em minha cabeça, para cobrir meus olhos azuis. Tanto para evitar a forte luz solar, que entrava pelas janelas, de machucá-los, quanto para esconder as lágrimas.
- Você me deixou sozinha por causa de uma imprudência idiota e eu nunca vou te perdoar por isso! Você jurou para mim que nós dois íamos ficar para sempre juntos, lembra? Você jurou seu idiota!
Voltei a me calar. Estava ficando emotiva demais e eu odiava ser emotiva. Se alguém me visse agora, se alguém me visse chorando... “A garota com coração mais gelado do que o azul dos seus olhos” como as redes sociais de fofoca costumavam descrever, aposto que eles adorariam uma foto minha com os olhos vermelhos agora.
- Lembra quando a gente fez aquela viagem para os Alpes Suíços e eu fui um desastre esquiando e fui parar no hospital? – A lembrança me traz uma risadinha. – Você ficou morrendo de medo de me perder! Eu me lembro perfeitamente de você dizendo que desde que nossos pais se foram, a sua vida se resumia a minha. E a minha se resumia a você também. Depois eu fiquei sabendo que tinha sido você quem mexeu nos meus esquis para fazer uma brincadeira e ficou com medo das coisas terem saído do controle... Típico, seu!
Ouço um gargalhada leve bem próxima e me viro assustada, automaticamente me colocando de pé, puxando o tecido do vestido para baixo.
- Essa é uma cripta privada – Tento manter a minha voz o mais firme possível, por mais que estivesse mergulhada nas emoções. – Se retire.
- Desculpa, não quis assustá-la... – o homem alto, enfiado em um terno preto feito sob medida, me encara com um sorriso no rosto. – Mas é que o Otto tinha um senso de humor bem peculiar, não é mesmo?
- Um pouco. Você o conhecia?
- Um pouco – ele me parafraseia. – Como foi a história dos esquis?
- Sempre fui melhor do que ele esquiando. A gente tinha apostado alguma coisa idiota, sei lá... E ele quis se certificar de que ia ganhar – eu rio. – Ganhou foi quinze dias tendo que cuidar de mim encamada e anos de remorso e condescendência.
- Eu com certeza não conheci esse lado condescendente dele.
- Provavelmente isso só era válido comigo.
- O Otto que conheci era implacável. Conseguia qualquer coisa que quisesse, desde levar a garota mais bonita da balada para a cama até fechar os negócios mais improváveis e com um lucro absurdo.
- É, esse também parece ele – admito, mas dessa vez isso não me desperta memórias tão próximas. – Bom, eu já estava de saída, fique à vontade...
Sem olhar sequer mais uma vez para a foto do meu irmão, sigo reto em direção a saída. Sou detida quando o bonito homem de cabelos escuros e barba por fazer, envolve seu braço ao redor da minha cintura, impedindo-me de continuar minhas passadas largas. Me viro para ele a tempo de ver seu olhar varrendo meu corpo naquele vestido curto, colado e decotado demais para ser usado em um cemitério. Eu estava acostumada com aqueles olhares, mas o dele me causou um certo desconforto. Não de um jeito ruim. Pelo contrário, de um jeito que fez minha pele esquentar e meu rosto enrubescer.
- Não vai me dizer seu nome?
Me desvencilho dele ao mesmo tempo em que me recomponho e tento avisar ao meu corpo de que não, ele não precisava de mais daquele toque firme, seguro de si e vindo de alguém que parecia saber exatamente o que fazer com uma mulher.
- Não – respondo. – Visto que não vamos nos ver mais, acho que isso não importa.
Novamente lhe dou as costas e sigo meu caminho em direção a saída da cripta. Não tinha sido uma boa ideia vir aqui. Doutora Lee disse que eu tinha que conseguir colocar meus sentimentos para fora, mas eu mal pude começar antes que essas lágrimas idiotas teimassem em rolar pelo meu rosto e de ter sido interrompida por um desconhecido. Provavelmente eu ainda precisaria de muitas mais sessões de terapia antes de conseguir voltar a ter qualquer tipo de conversa com meu irmão mais velho morto, ainda mais depois daquele testamento ridículo que ele deixara.
- Adam Benatti.
O som daquele nome me faz congelar no lugar. Mais uma vez, giro em meus calcanhares, me colocando de frente para aquele homem.
- Como? – Pergunto, sem desviar meus olhos dos dele.
- Meu nome – diz. – Adam Benatti – repete.
Mal me dou conta de quão rápido fecho a distância entre nós. A última coisa da qual tenho ciência é da minha mão aberta espalmada em sua cara.
- Você tem uma mão pesada, garotinha.- Eu não sou uma garotinha.Adam e eu estávamos sentados, cada um em uma ponta, em uma longa mesa de madeira escura em um escritório de advocacia. Achei por bem manter uma distância segura o suficiente para não o atacar novamente. Já havia se passado três dias desde o nosso encontro no túmulo do meu irmão, mas meu ódio por ele parecia só aumentar.- Achei que tinha uns cinco, quando o Otto me pediu que se algo o acontecesse eu cuidasse de você.- Aposto que achou que eu tinha bem mais quando estava me despindo com os olhos naquela cripta.- Uns vinte e cinco, pelo menos... – disse sorrindo, enquanto tomava um gole do seu copo de café do Starbucks. – A roupa e a maquiagem ajudam.- Bom, eu tenho vinte, não sou uma garotinha e não preciso de uma babá.- Acho que o Otto discordava disso. E eu também, na verdade. Andei lendo sobre você.Poderia ter me afundado na cadeira naquele momento, mas assim como meu irmão, eu não era do tipo que me encolhia. E
Eu assinei aquele contrato idiota que fazia valer a vontade do meu irmão, é claro. Era isso ou aprender a trabalhar com coisas como... sei lá, eu nunca precisei nem arrumar minha cama ou lavar um copo sozinha, não faço ideia de com o que eu poderia trabalhar. Seriam só dois anos. Esse era o tempo que eu levaria até terminar a faculdade e poder responder pelo meu dinheiro, minhas ações da Milani e pelos meus próprios atos.- Eu andei pensando muito nos últimos dias... Precisamos definir algumas coisas. Algumas regras.Adam tinha me convidado para almoçar no restaurante do Milani de Copacabana. Era nosso hotel conceito no Brasil e o único que agregava, além de quartos para hospedes tradicionais – que normalmente ficavam pouco tempo - uma ala inteira para hospedes de longo prazo, que normalmente eram alugados semestralmente ou anualmente e funcionavam como verdadeiros apartamentos, mas com os privilégios de ter café da manhã gratuito, serviço de quarto por 24 horas, camareira todos os di
- Ele é 10/10! – Manu me devolve meu iphone, que exibia uma foto de Adam sem camisa durante um jogo de futebol.Eu tinha encontrado o Instagram dele, é claro. Não que tivesse muita coisa por lá, ele parece ser do tipo mais reservado nas redes sociais. Mas aquela foto em específico me chamou atenção, assim como chamou de Manu. Era impossível não reparar no corpo sarado e super desenhado de Adam.- Ele é chato! – Afirmo.Minha melhor amiga e eu estávamos deitadas em espreguiçadeiras acolchoadas na praia, embaixo de grandes guarda-sóis que tinham a função de não deixar a minha pele alva fazer cosplay de tomate cereja em menos de cinco minutos. Meus longos cabelos loiros estavam amarrados em um coque despretensioso e grandes óculos escuros escondiam meus olhos.Por mais que o Milani tivesse uma praia privativa, Manu e eu gostávamos de ficar em uma área pública, próximo de um excelente ponto para surfistas e uma área onde sempre havia garotos jogando vôlei. Era, no mínimo, agradável aos ol
Eu tinha feito um bom trabalho com o blazer e o cinto. Acabei abotoando novamente a peça, porém propositalmente com uma casa de diferença, ganhando uma pequena fenda na parte das pernas. Não vesti as mangas, amarrando-as para trás de forma a dar um laço. Por fim, arrematei tudo com o cinto de Adam, marcando minha cintura fina. Cacei na bolsa um prendedor de cabelo e fiz um coque despretensioso nos meus fios loiros. E pronto! Até parecia que eu tinha me vestido daquela forma premeditadamente, não sei por que Adam continuava com aquela cara amarrada.- Ela é tão estilosa! – Ouvi uma voz feminina dizer, quando eu ia passando e sorri em resposta. Eu era mesmo, não era?A sala de reuniões não era diferente de muitas das outras que eu já tinha visto – em filmes! Uma grande mesa central de madeira com poltronas acolchoadas, um telão pronto para exibir apresentações e extensas janelas de vidro com vista para o mar.- Perdoem-me o atraso, senhores – Adam já foi logo dizendo ao se deparar com a
Eu nunca fui capaz de entender tão perfeitamente, quanto naquela manhã, o motivo pelo qual as pessoas reclamavam tanto de um dia de trabalho. O fato é que o dia mal tinha começado e já estava indo bem mal. A começar pelo fato de que ainda que eu tivesse levantado muito cedo, eu já estava atrasada. Então, precisei me arrumar correndo e nem mesmo tive tempo de desfrutar do café da manhã do hotel.Por sorte, no momento em que cruzei as portas de vidro que davam acesso ao prédio do escritório administrativo da Milani, uma menina sorridente vinha passando com uma bandeja de papelão com dois copos da Starbucks. Caramba, eu até imaginei que nós teríamos máquinas de café expresso para os funcionários, mas serviço de entrega de café da Starbucks era muito legal!- Obrigada! – Agradeço, feliz por consegui pegar as duas últimas unidades e automaticamente levando um dos copos aos lábios.- Hey, o que você pensa que tá... – A garota se cala e arregala ligeiramente os olhos. – Senhorita Milani! Des
Eu tinha tanta convicção de quão perfeita a minha ideia era que apenas decidi colocar em prática. Como diziam, era mais fácil pedir perdão do que pedir permissão. Sendo assim, Adam não podia nem sonhar em descobrir algo antes da hora. O que não era exatamente um problema, eu duvidava muito que qualquer um daqueles jovens tivessem acesso a ele. Agora, Sandra era a pessoa que podia colocar tudo a perder.- Eu não posso permitir que você faça isso... – ela me olhava com os olhos ligeiramente arregalados quando a procurei em sua sala para explicar. – Liberar não só o pessoal do marketing como vários outros funcionários? Eu nem tenho autoridade para isso.- Não é liberar – eu tento negociar. – É um dia de trabalho. Só que um pouco diferente.- Kara, você sabe que precisa de uma aprovação do senhor Benatti para...- Sandra... – eu sorrio e caminho até a cadeira diante dela, me sentando mesmo sem ter sido convidada. – É meu hotel. É minha empresa. É minha ideia. E você sabe que é uma excelen
Tudo bem, talvez tenha sido bom Adam ter ligado e me jogado um balde de água fria. Eu tinha organizado todo aquele evento. Se eu simplesmente desaparecesse e não saísse em nenhuma foto depois das tiradas durante o café da manhã seria, no mínimo, estranho, certo?Então eu coloquei um biquíni comportado (ao menos eu esperava que fosse) e aproveitei uma manhã de sauna, piscina e fofoca com as garotas (exceto Manu, claro, que tinha desaparecido com Pablo). Elas pareciam um pouco desconfortáveis no começo, mas nada que algumas taças de champanhe não as fizessem falar. Em pouco tempo eu já estava sabendo quem era a fim de quem, quem já tinha pegado quem e até uma história quente sobre um casal que foi visto aos amassos no almoxarifado.- E o Adam? – Me pego perguntando. – Alguma fofoca?- O Adam? – Maya estranha e eu dou de ombros.- Só curiosidade.- Ah, ele e o Otto eram bem galinhas – ela diz. – Mas nunca soube de nada de dentro do escritório. E depois que o Otto... – ela se detém repent
- E o que ele queria? - Só ser um pé no saco – reviro os olhos. – Perguntou como as coisas estavam indo e se eu estava mantendo tudo dentro do controle. Estava almoçando com Manu enquanto a atualizava sobre a situação com Luca e como Adam teve a habilidade de nos ligar exatamente no momento em que as coisas estavam ficando quentes entre nós. - Acha que ele estava te espionando? - Adam? – Eu rio. – Claro que não! - Foi meio estranho. Ele não tem acesso as câmeras do hotel? - Tem, mas eu pedi que desligassem as câmeras do terraço. Não sou louca nesse nível, Manu! - Tá, mas como o Jacob sabia exatamente onde te encontrar? - Onde mais eu estaria depois de pedir para desligarem as câmeras? – Dou de ombros. – Adam só estava dando uma de chefe chato, com aquela voz mandona e irritada dele. - Então tá. E você vai dar outra chance pro garoto? - Pro Luca? Por que não? - Sei lá, pelo que você disse só falta