A música começa a tocar, mas ninguém pode ouvir. Ninguém além de mim mesma. Essa definitivamente é uma das coisas que eu mais amo fazer. Sempre que eu passo pelo corredor do colégio, penso em uma melodia e atravesso sem ouvir o que dizem sobre mim. Isso funcionou na minha antiga escola no Alabama, talvez também pudesse funcionar aqui.
Não importa em quantos lugares você tenha estado eu aposto que eu vivi em muitas outras cidades do que você. Eu tenho um pai em casa que sempre está focado em seu trabalho e uma mãe meio paranoica. Para eles, o fato de eu ter estudado em 10 escolas, desde o primário, é normal e, além de ser aparentemente divertido, vai fazer com que seus filhos sejam responsáveis e tenham o que chamam de cultura. Mas na prática, as coisas não são tão fáceis assim.
Eu não gostava muito do Alabama, era quente de mais e meu pai sempre vivia resfriado. Ele chupava tantos picolés de uva, que chegamos a fabricar nossos próprios sorvetes em casa. A escola era enorme, eu me perdia todos os dias, as garotas não gostavam de mim, os rapazes me apelidavam e os professores não sabiam o meu nome. Mesmo com tudo isso, eu estava me acostumando com o lugar e não queria ter que me mudar de novo. Passamos três anos lá, minha mãe podia me levar para o cinema, meu pai não trabalhava tanto e melhor, ele não bebia. Tudo estava em seu devido lugar e, pela primeira vez em anos, nós pensamos que havíamos encontrado nosso lar perfeito. Mas então houve aquela noite... Aquela noite mudou as nossas vidas.
Houve uma noite em que o meu pai voltou para casa tarde, minha mãe estava preparando o jantar e eu estava sentada lendo o meu livro de contos, eu sempre gostei de fadas e esse era o meu livro favorito. Eu disse que era? Sim, eu disse. Ele não existe mais, pois o meu pai o rasgou.Na noite em que mudou nossas vidas, o papai chegou tarde e foi para a cozinha, tirou uma cadeira, colocou os cotovelos na mesa e bufou. Mamãe e eu continuamos fazendo nossas coisas, meu pai nunca gostou de ser perguntado sobre o seu dia de trabalho, então decidimos fingir que ele não estava lá. Como de costume, ele murmurou uma maldição, levantou-se da mesa e saiu com o telefone celular tocando. Nunca entendi os adultos em relação ao trabalho, se eles odeiam tanto o que fazem, por que eles não tentam fazer o que amam? Meu pai odeia sua profissão, mas ele nunca desistiu da carreira ao querer mostrar aos irmãos que ele pode ser mais do que eles. Das quatro crianças que meu avô paterno tinha, papai era o único filho que alcançou a sustentabilidade financeira. Nas reuniões familiares, ele sempre exibe seus troféus de vendas imobiliárias, diz que está feliz e adora o que ele faz, mas é uma mentira. Uma coisa que eu aprendi com os adultos é que eles mentem muito, contam mentiras para sorrir, ganhar dinheiro e para ganhar o amor de outra pessoa.
Minha mãe e eu comemos o jantar, depois lavamos os pratos sujos e cada um foi ao canto. Tanto ela quanto eu não falamos muito. Nossas conversas foram sempre baseadas em um ‘”hello, como foi seu dia na escola?” E somente. Na verdade, eu sou a única que está em silêncio para eles, os meus pais nunca acreditaram nas coisas que eu falei sobre a escola, e muito menos tiveram tempo para mim, então acabei por me trancar. Na minha casa, é muito mais fácil sofrer sozinho do que dizer o que está acontecendo e ser chamado de dramático.
Cerca de 20 minutos depois da partida, meu pai voltou com o telefone. Gotas de suor caíram de sua testa, sua gravata estava solta, e os punhos apertados de raiva.
“Você não pode fazer isso comigo!”
Ele exclamou. “Você sabe o quão difícil foi para esta empresa trabalhar, como minha família e eu mudamos de cidades apenas para que eu pudesse fazer meu trabalho!?!”Ele abriu a porta da geladeira, pegou uma lata de cerveja e se inclinou contra o armário. Foram duas, três, quatro... Cinco latas. O argumento se arrastou, ficou mais irritado e eu fiquei quieta.
“Ouça aqui, seu filho da puta, eu tenho meus direitos!” Papai exclamou uma maldição, pegou a lata que ele segurou na mão e atirou contra a parede.
Naquele momento, ele desligou o telefone e me cercou com seus olhos furiosos.
“Limpe essa bagunça e suba para dormir.” Ele virou as costas, esperando que eu limpasse sua sujeira. Eu não me levantei, tinha sido ele o causador da bagunça, não havia o porquê de me obrigar a fazer aquilo.
Virei outra página do meu livro, reparei a postura e continuei a ler.
“Você não é surda, solte este livro e limpe esta sujeira.” Ele repetiu, aproximando-se de mim. Eu queria ter respondido, mas minhas pernas pararam. Meu corpo estava paralisado e eu não conseguia reagir, era sempre assim, eu não adotava a abordagem das pessoas contra mim. Ouvimos o som dos sapatos de minha mãe descer as escadas. Ela parou na entrada da cozinha, viu a condição do chão e olhou para o meu pai, que estava sem coordenação nas pernas.
“Acho que sua filha é surda.” Meu pai disse, debochando de mim.
“Por que está dizendo isso, querido?” Mamãe perguntou, analisando o estado dele. Ela sabia o que acontecia quando seu marido ingeria bebida alcoólica. “O que houve? Escutei você discutir no telefone.”
“Como posso exigir a obediência de outros se mesmo minha filha não obedecer minhas ordens?” Ele deu uma risada irônica.
“Querido, por favor, não vamos discutir na frente dela.” Mamãe se aproximou dele.
“Você ainda não notou? Nossa filha é invisível, ela permanece lá, presa no livro maldito, e não se importa com o que nos acontece.” Ele engrossou sua voz. “Você acha que eu não sei? Que você a estragou?”
Mamãe ficou calada.
“O que ela lê tanto?” Ele viu o título do livro. “O mundo encantado de Lúcios? Sério, você realmente acredita neste maldito conto de fadas?”
“Querido...” Mamãe insistia.
“Você vai me obedecer...” Ele rosnou. “Pela última vez, levanta esse traseiro e limpe a porcaria do chão!”
Não houve reação.
Em um ataque de fúria, meu pai tirou o livro das minhas mãos e começou a destruí-lo. Levantei-me da cadeira, puxei-o e tentei detê-lo, mas já havia terminado com as páginas.
Uma música começou a tocar na minha cabeça.
“É assim que eu demonstro o meu amor.
Eu criei isso na minha mente porque eu culpo o meu Distúrbio de Déficit de Atenção, querida”. (Awolnation– Sail, 2014).Sentei no chão, peguei as folhas rasgadas e assisti tudo ao meu redor em câmera lenta. Minha mãe chorou, ele marcou o rosto dela com uma bofetada e nos chamou de inútil. A música continuou tocando, ela tocou a noite inteira, e somente eu podia ouvi-la. Era uma coisa só minha.
No dia seguinte, nenhum de nós tocou no assunto. O silêncio envolve nossa casa, nenhum de nós sabe como se aproximar de situações passadas. Os nossos vizinhos começaram a notar a mancha azulada sob os olhos de minha mãe, à medida que as semanas passavam, surgiram mais imperfeições. As desculpas foi sempre às mesmas, ela deslizou no chão molhado, bateu em uma cadeira ou na parede. Como eu disse antes, os adultos mentem.
Dois meses depois, o meu pai recebeu uma proposta para um novo emprego em Washington e, sem hesitação, ele aceitou. Agora, aqui estou. Atravessando um extenso corredor e com pessoas olhando para mim como se estivessem dispostas a me devorarem.·.
Escute Sail - Awonation. Você já assistiu a sua vida em câmera lenta?
Eu nunca entendi o motivo das pessoas se afastaram de mim, ou basicamente, porque ninguém nunca tentou aproximar-se de mim. Ou tentou e o meu medo e timidez não me deixaram ver, geralmente não sou tão tímida, mas só quando estou escrevendo ou não estou fantasiando uma vida que não é minha, fora desses requisitos, eu sou um desastre. Eu não sou uma adolescente muito jeitosa, o meu cabelo não é tão bonito quanto os das outras garotas, o meu corpo é esquio e desengonçado, a minha pele tem sardas e a maioria das pessoas, inclusive os meus pais, nunca ouviram a minha voz. No meu antigo colégio, o meu apelido era bruxinha silenciosa. Pois quando se aproximavam de mim, os meus colegas sempre me encontravam lendo os livros que a minha avó costumava me dar no Natal. No ano novo de 2012, ela me deu um livro de feitiços para fadas, eu adorei o presente, mas lembro de ter tido sérios problemas por sua causa. Um livro nunca fará mal as pessoas, mas o que sai da boca de muitos é capaz de acabar com
Os dias foram se arrastando. Escondida entre os meus livros e os fios soltos do meu cabelo, eu me refugiei dos caçadores. Ou em outras palavras, dos outros alunos. Pouco a pouco, descobri os nomes das pessoas da minha classe, inclusive do menino que esbarrou em mim. O nome dele era Noah. Ele estava na equipe de basquete, era bom em matemática e não gostava de mostrar isso aos outros. Como eu sei disso? Ontem, na aula de matemática, vi-o resolver os exercícios em menos de um minuto. Mas quando a professora perguntou, ele riu e deu o resultado errado. Além de participar da equipe de basquete, Noah é o amigo do cara com pinta de valentão,, que eu vi no gramado, no meu primeiro dia na escola. O nome dele é Edgard e o nome da namorada dele é Alice. A melhor amiga dela, Kate, tem um caso com Edgard e os dois transam no estacionamento da escola, em um BRM de 2001. Por conta da minha falta de sorte, vi-os juntos hoje, quando fui buscar a minha bicicleta para ir embora. Kate e Alice andam sem
Hoje de manhã, algo diferente, aconteceu comigo na escola. Talvez eu devesse ter marcado aquilo com caneta vermelha, na minha agenda de palavras complexas. Mas vindo de quem veio, eu posso apostar, que não passou de uma piada.Eu estava na classe de literatura avançada. Ao que tudo indica, os professores realmente gostavam da minha poesia e queria que eu fizesse parte do grupo de edição do jornal da escola. Eles me deram alguns papéis em branco e me pediram para escrever alguns poemas sobre qualquer coisa que viesse na minha cabeça. Eu os fiz, mas acabei não gostando muito deles. Embolei os papéis numa bola e os joguei na lata de lixo.A minha professora estava ocupada falando ao telefone e não me viu saindo da sala. Entrei no banheiro antes do intervalo, lavei o meu rosto e fui direto ao meu armário. Quando eu abri o cadeado, um papel amassado caiu e eu vi as minhas anotações da aula de literatura.O meu poema dizia:
As pessoas sempre falaram sobre as minhas orelhas, quando eu era pequena, minha avó Madison disse que eu parecia uma fada, pois nos livros de contos ilustrados que ela me dava, as fadas tinham orelhas pontudas, não tanto como a de um gnomo, mas eram semelhantes às minhas. A partir desse momento, eu comecei a me sentir mais confortável, mas depois chegou à quinta série e as coisas mudaram. Mesmo acreditando no que a minha avó dizia sobre as minhas orelhas, eu me sentia oprimida pelo fato dos comentários maliciosos ultrapassarem os limites e não serem mais apenas comentários bobos. Eu comecei a esconder as orelhas atrás do meu cabelo. Desde então, as pessoas nunca mais comentaram sobre elas, ou eu pensei que nunca mais falariam.Saí da sala o mais rápido que pude, eu sabia que tomaria uma advertência por sair enquanto uma professora ainda estava ensinando, mas eu não c
O meu despertador tocou e, preguiçosamente, acertei-o com um soco para desliga-lo. Tudo o que eu queria era poder ficar em casa, assistir algum filme, escrever letras de músicas ou novos poemas. Eu não queria ir a um funeral, muito menos com os meus pais. Eu me levantei e rastejei o meu corpo para o banheiro, liguei o chuveiro e deixei cair à água quente no meu corpo. Era sábado, eu estava me preparando para um funeral, em certas partes, nada é tão ruim quanto ter que sair do carro com nós três dentro dele. Sempre quando saímos, o papai e a mamãe discutem, eles também discutem em casa, mas quando saímos de carro é muito pior. O papai fala no telefone, a minha mãe tenta fazê-lo prestar atenção no volante, ele diz que são negócios e que não pode simplesmente desligar, a minha mãe responde que se ele quiser permanecer vivo precis
A chuva nos encontrou quando viramos a esquina. Alguns chuviscos pingaram no vidro do carro e papai blasfemou um palavrão.“Merda!” Ele socou o volante. “Tinha que chover justo hoje?”Era apenas chuva, nada demais. Às vezes eu penso que o meu pai odeia tudo e a todos e que em certos dias, odeia ele mesmo.“Querido, não fale mal na frente da nossa filha, sabes que eu não aprovo o uso de palavrões.”“Ah, cala a boca Rebecca!” Ele esbraveja. “Você nunca aprova nada, para de ser tão paranoica, tenho certeza que nossa filha nem está prestando atenção no que estamos discutindo.”Seu telefone celular começou a tocar, meu pai desviou o olhar da minha mãe e segurou-o.“Por favor, querido. Desligue o telefone, sabes que dirigir falando ao telefone gera multa.”“Já vai começ
O Noah me seguiu. Eu não queria que ele me seguisse, na verdade, eu não queria que ninguém viesse atrás de mim. Com o tempo, você aprende a lidar com o desapego das pessoas.“Espere!” Ele gritava enquanto eu corria na chuva. “Por favor, espere!”Quando eu estava perto da saída do cemitério, senti a mão dele pressionar a minha e ele me virou com força batendo seu peito contra o meu.Nossos olhos se encontraram e a sua expressão perplexa, mas não tanto quanto minha, me fez reparar na estrutura facial de seu rosto.“Não fuja de mim.” Ele disse. “Por favor, não fuja como você fugiu ontem na escola.”Forcei o meu braço para trás, mas ele não me soltou.A chuva caía sobre nós.“Eu sei como você está se sentindo, venha comigo...” Ele segurou
As minhas roupas estavam encharcadas pela água da chuva, sentei na calçada e aguardei a cessação da chuva. Noah não ficou comigo, tendo me contado tudo o que ele disse, ele enfiou as mãos nos bolsos de suas calças e voltou para dentro. Em última análise, não me emocionava a falta de atenção, era o velório de sua mãe, por razões mais do que óbvias, ele nunca deveria ter seguido ou abandonado seu pai naquela capela, mas por algum motivo, alguma coisa o fez me seguir.Quando os meus pais deixaram a capela, eles passaram por mim como se não me conhecessem e abriu a porta de trás para eu entrar. Levantei-me, entrei no carro e coloquei meu cinto de segurança, esperei que meu pai me reclamasse ou algo assim, mas isso não aconteceu, papai dirigiu sem mencionar uma palavra suja e nem quis saber por que sua filha estava tremendo molhada no banco tr