A chuva nos encontrou quando viramos a esquina. Alguns chuviscos pingaram no vidro do carro e papai blasfemou um palavrão.
“Merda!” Ele socou o volante. “Tinha que chover justo hoje?”
Era apenas chuva, nada demais. Às vezes eu penso que o meu pai odeia tudo e a todos e que em certos dias, odeia ele mesmo.
“Querido, não fale mal na frente da nossa filha, sabes que eu não aprovo o uso de palavrões.”
“Ah, cala a boca Rebecca!” Ele esbraveja. “Você nunca aprova nada, para de ser tão paranoica, tenho certeza que nossa filha nem está prestando atenção no que estamos discutindo.”
Seu telefone celular começou a tocar, meu pai desviou o olhar da minha mãe e segurou-o.
“Por favor, querido. Desligue o telefone, sabes que dirigir falando ao telefone gera multa.”
“Já vai começar?” Ele rosna. “Rebecca, eu sei o que eu faço, para de tentar me controlar.”
“Não estou te controlando, só estou dizendo para desligar o telefone, sua filha e eu estamos dentro desse carro e se você prestar atenção na ligação e esquecer-se do trânsito? Você já pensou nisso?” Mamãe cruzou os braços.
“Isso nunca aconteceu...” ele atendeu.
“Mas e se acontecer?” Ela continua insistindo. “E se acontecer agora? E se a sua filha e eu morrermos por conta de uma imprudência? E se...”
“Para!” Papai exclamou irritado e tampou o celular com a mão esquerda. “Dá pra parar de meter tanto e Se nisso? Não vai acontecer nada, para de ser tão pessimista.”
Encostei minha cabeça no vidro da janela e comecei a prestar atenção na chuva e em como ela transformava tudo o que tocava. Eu sempre gostei muito da chuva e principalmente do cheiro que ela deixa quando molha a terra seca, tentei me imaginar fora daquele carro dentro de uma poça de lama, pulando e me sujando, como eu fazia quando era pequena e visitava minha avó Madison. Nós duas vestíamos nossas capas de chuva e galochas, as galochas, essas, com certeza, eram a melhor parte. Quando íamos correr pelo quintal, a vovó parava no meio do caminho e sempre acabava encontrando pedras dentro das suas galochas e dizia que não sabia como elas haviam parado ali, mas que ninguém além das fadas rebeldes do bosque podia ter as colocado lá.
“O que são fadas rebeldes vovló?” Eu a perguntava. Naquela época meus dentes haviam caído e eu falava embolado por estar sempre com a língua entre as janelinhas, foi um milagre, para minha mãe e um gasto a menos para o meu pai, eu nunca ter precisado usar aparelho.
“São fadinhas curiosas e sapecas como você, elas se escondem no bosque e aprontam com os outros, aposto que estão rindo da gente agora.” Ela respondia, olhando para os lados.
“O papai disse que fadas não existem e que a senhora é maluca, vovló.” Eu dava risadas.
“Posso até ser maluca, mas pelo menos sou uma maluca feliz, você não concorda comigo?” Ela me pegava no colo e nós duas dávamos risadas. Minha vó sempre despertou a melhor parte de mim, durante toda minha vida, ela fora a pessoa quem mais me ouviu falar.
Os meus pais não falam muito sobre a morte dela, minha mãe, por sua vez, decidiu apagar tudo o que a fizesse lembrar-se de sua mãe. De acordo com os rumores que cercam a família, a vovó Madison nunca apoiou a escolha da filha em relação ao marido (vulgo meu pai). Minha mãe, quando tinha 15 anos, já estava noiva de um garoto de sua idade, eles namoraram por cerca de dois anos. Meu pai a conheceu em um bar e seis meses depois, ela já desistiu de tudo e estava grávida de mim. Foi tudo muito rápido e dá água para o vinho, tudo na vida da minha mãe mudou.
Ao descobrir sobre a traição da filha em relação ao noivo e aos estudos, meu avô a expulsou de casa e minha avó Madison não pode fazer nada. Mesmo assim, ofereceram as escondidas, um chalé nas montanhas para os meus pais morarem. Mamãe me contou que eu nasci naquele chalé e que um caçador a ajudou com o parto, meu pai cursava faculdade a distancia e de tempos em tempos tinha que ir para a cidade, e aconteceu que justo no meu parto, ele não pode estar em casa. Quando chegou, encontrou sua mulher com a filha nos braços, internada em um posto de atendimento público e com fome, pois se recusava a ter que comer apenas sopa. Até os meus dois anos de idade, eu ainda não tinha conhecido meus avós, minha mãe sempre teve muito receio pelos pais a terem colocado para fora de casa (ainda que não soubessem que ela estava grávida, nem mesmo ela sabia direito) e nunca se importou em telefonar para casa.
No meu aniversário de três anos, o meu pai obteve um bom estágio e todos nos mudamos para Nova York novamente. Esgotada de se esconder, minha mãe telefonou para casa e descobriu que seu pai havia falecido a cerca de um ano e que sua mãe tentou fazer contato inúmeras vezes, mas ela nunca conseguiu porque sua filha jogou o telefone contra a parede da casa. A vovó Madison os convidou para viver com ela, agora que seu marido havia morrido, não havia motivo para se separar de sua filha. Havia medos de minha mãe, mas meu pai, ambicioso como sempre foi, viu na fragilidade da minha avó, a grande oportunidade que estava procurando por anos para crescer na vida. Para ele, viver com sua sogra e ganhar uma posição importante na empresa de propriedade familiar eram como ganhar na loteria. Ele era casado com uma linda mulher rica, a única herdeira de uma fortuna gigantesca, também trabalhava num cargo de suma importância, tinha uma filha e poderia se exibir para os irmãos.
Quando minha avó morreu, eu tinha a idade de 12 anos, a sua morte foi o grande estopim que me fez calar durante todos esses anos. Pois quando ela se foi, levou consigo a parte boa de mim e sem ela, não haveria mais o porquê de existir cores em mim. Eu a visitava todos os finais de semanas, sua casa era pequena e aconchegante, ela tinha um estúdio de fotografias de borboletas e nós duas adorávamos ir até lá e contar histórias. Mas aí depois do ano novo, basicamente em ferreiro de 2013, meu pai teve uma reunião importante e não pode me levar para vê-la. Naquele mesmo dia, enquanto vovó colhia flores no jardim, algumas abelhas a picaram e seu antialérgico estava longe demais para ela alcançar e quando os vizinhos a encontraram, ela já estava morta e com as picadas no pescoço.
No seu velório, depois que todos saíram, eu corri para os bancos da igreja e escondi uma carta que havia escrito para Deus. Mas antes de sair, ouvi meu pai resmungar alguma coisa para o seu caixão aberto: “Velha inútil.”
Ele nunca se importou com ela, na verdade, ele nunca se importou com nada senão seu interesse abominável ao dinheiro.
Depois desse dia, eu nunca quis ir a um funeral, muito menos falar ou ler sobre algo relacionado. Quando morremos, não somos nada além de matéria, e é depois da morte que descobriremos quem realmente se importou conosco.
A chuva continuava chocalhando, o para-brisa do carro fazia um barulho irritante, e o meu pai era pura frustração, e os olhos da minha mãe se encheram de lágrimas.
“Por que não arrumou o cabelo?” Meu pai perguntou-a, encarando seu coque baixo e frouxo.
“Oh, é um velório, não achei que fosse necessário me arrumar tanto.” Ela respondeu e meu pai deu uma risada.
“Você nunca se arruma mesmo, era de se esperar que não trocasse o repertório.” Ele diz irônico e vira outra esquina.
Alguns minutos depois, chegamos ao cemitério Central e estacionamos numa vaga próxima a entrada.
Meu pai desceu primeiro, depois se virou e abriu a porta para mamãe e eu. Ele nunca tinha feito isso, geralmente meu pai iria sair e nos chamar com uma palavra de injúria, mas havia pessoas que conheciam sua parte gentil, ou seja, o oposto do que ele realmente era.
Quando entramos na capela, papai foi cumprimentar os seus colegas de trabalho e a mamãe e eu nos sentamos para fazermos nossas orações à falecida.
Enquanto a minha mãe orava, discretamente eu levantei a cabeça e vi a tênue imagem do que parecia ser Noah perto do caixão da mulher morta. Mas o que ele estava fazendo lá? E por que ele parecia estar chorando?
“Psiu...” Minha mãe puxou a barra do meu vestido. “Sabia que é pecado rezar de olhos abertos? Não conheces a história da mulher de Ló? Para de bisbilhotar os outros e volte a rezar seu pai e nosso.”
Eu não disse nada, apenas abaixei a cabeça e voltei a rezar.
Depois da oração, a minha mãe me cutucou e encarou o Noah do outro lado do salão.
“Deve estar sendo difícil para ele, perder uma mãe não é nada fácil.” Ela disse e eu me assustei.
“De quem está falando mãe?” Eu perguntei baixo.
“Do rapaz perto da coroa de rosas, lá próximo ao caixão, o seu pai me disse que ele era filho dela, da falecida.”
Como assim? Como o Noah podia ser filho dela? Era muita coincidência.
“Ele... ele está na minha turma.” Acabei deixando escapar.
“Isso é sério?” Mamãe abriu um sorriso. “Kristen, então vai até lá e de seus pêsames, vá...”
“Não mamãe, nós não somos amigos, não posso simplesmente ir lá, o que devo dizê-lo?” Eu não podia ir até o outro lado, eu me lembraria dele tentando me impedir de ir embora na sexta-feira na escola e sairia correndo na frente de todo mundo, inclusive dele e do meu pai.
“Não seja tola Kristen, vai lá e diga que sente muito e pronto.” Ela praticamente quase me jogou do banco.
“Não mãe, não é porque estudamos juntos que eu tenho que ser amiga dele.” Continuei sentada no banco.
“Kristen vai logo!” ela me cercou com aqueles olhos de – ou você vai ou eu conto para o seu pai- doce e compreensível.
Sem escolhas, eu me levantei um pouco trêmula e caminhei até o outro lado do salão. Logo que me viu, o Noah limpou as lágrimas e me encarou.
O que eu deveria dizer? Será que se eu apenas sorrisse oprimida, ele entenderia como um eu sinto muito?
“Olá.” Ele disse meio rouco.
“O-O-O...” Eu simplesmente não conseguia pronunciar nada, nenhuma palavra sequer. Tudo naquele lugar me fazia lembrar-se da minha avó e de como as pessoas reagiram a sua morte.
Foi então que eu encarei o caixão aberto da mãe do Noah, ela estava tão pálida, o redor do seu olho vermelho e seu nariz estava tampado com algodões, a mulher usava um vestido azul marinho e reparei nas rosas do lado de seu caixão e nas pessoas naquele ambiente.
Será que todos realmente a amaram? Será que eles realmente sentiriam sua falta? Ou é tudo uma piada? Assim como é na minha casa?
Milhões de pensamentos encheram minha mente, então senti a mão de Noah tocar meu braço e me afastei dele.
“Está tudo bem?” Ele perguntou. “Você me parece pálida... Tem alguma...” Sem mais ou menos, comecei a voltar para trás e quando me dei conta, eu estava praticamente correndo para fora da capela.
Lágrimas cobriam o meu rosto, passei as mangas do meu vestido nos olhos e continuei correndo sem rumo. Dentro de mim havia uma tristeza muito grande e não importava o que acontecesse, ela nunca sairia do meu peito. As dores profundas tem um velho hábito, além de serem doloridas, também são intermináveis.
Volte para olhar ao seu redor, não há ninguém ao seu lado, você os escuta, mas ninguém pode te ver. E essa... Essa definitivamente é uma das piores dores que alguém pode sentir.
O Noah me seguiu. Eu não queria que ele me seguisse, na verdade, eu não queria que ninguém viesse atrás de mim. Com o tempo, você aprende a lidar com o desapego das pessoas.“Espere!” Ele gritava enquanto eu corria na chuva. “Por favor, espere!”Quando eu estava perto da saída do cemitério, senti a mão dele pressionar a minha e ele me virou com força batendo seu peito contra o meu.Nossos olhos se encontraram e a sua expressão perplexa, mas não tanto quanto minha, me fez reparar na estrutura facial de seu rosto.“Não fuja de mim.” Ele disse. “Por favor, não fuja como você fugiu ontem na escola.”Forcei o meu braço para trás, mas ele não me soltou.A chuva caía sobre nós.“Eu sei como você está se sentindo, venha comigo...” Ele segurou
As minhas roupas estavam encharcadas pela água da chuva, sentei na calçada e aguardei a cessação da chuva. Noah não ficou comigo, tendo me contado tudo o que ele disse, ele enfiou as mãos nos bolsos de suas calças e voltou para dentro. Em última análise, não me emocionava a falta de atenção, era o velório de sua mãe, por razões mais do que óbvias, ele nunca deveria ter seguido ou abandonado seu pai naquela capela, mas por algum motivo, alguma coisa o fez me seguir.Quando os meus pais deixaram a capela, eles passaram por mim como se não me conhecessem e abriu a porta de trás para eu entrar. Levantei-me, entrei no carro e coloquei meu cinto de segurança, esperei que meu pai me reclamasse ou algo assim, mas isso não aconteceu, papai dirigiu sem mencionar uma palavra suja e nem quis saber por que sua filha estava tremendo molhada no banco tr
As terças são os melhores dias do mês, não porque é terça-feira e tenho aula de literatura extra, mas porque é terça-feira e as aulas de educação física não são obrigatórias na escola. Se não fosse pelo fato de que os uniformes eram extremamente apertados nas pernas e o treinador ser um idiota, ou porque Kate e seus amigos estavam lá, eu daria uma boa olhada na pista e poderia nadar na piscina de 100 metros, mas eles estão lá, eles sempre estarão lá, e é por isso que eu odeio as aulas de educação física.As aulas são obrigatórias as segundas e sextas, na última sexta-feira, Kate descobriu o meu gosto por fadas e continuou me chamando de bruxa para o resto da aula. Bem, se eu fosse uma feiticeira, eu faria um encantamento para que ela só pudesse responder alguém quando lhe pedir
Mais uma vez, atravessei o corredor, as pessoas me encaravam, mas não me incomodava de enfrentá-las como sempre fazia. Não, não conseguiria fazer isso, não depois de ter ouvido tudo o que Alice me contou no banheiro.Como uma lebre, corri diretamente para a sala de aula, arrastei a minha cadeira, sentei-me e esperei que os outros alunos chegassem.Foi uma aula sobre educação sexual.O Edgard estava lá e a Kate também, eles estavam sentados na parte de trás da sala e riram quando o professor explicou sobre a importância do uso de preservativos, os outros estudantes também acabaram rindo das piadas egocêntricas de Edgard e eu só podia pensar em Alice naquele banheiro.Enquanto ele leitava livremente sobre como ser um idiota, ela estava lá, tirando toda a humilhação de ter sido estuprada por seu namorado (e agora grávida) dentro daquele
Silêncio. Tudo o que posso ouvir é um profundo silêncio que tomou conta de mim, não há mais músicas, elas pararam de tocar, não há mais espírito, não importa o que eu faça, nada, absolutamente nada me faz ter a coragem de me levantar da cama. Eu não sei quantas horas se passaram desde que cheguei da escola, tudo o que sei é que há um vazio dentro do meu peito, eu sou uma bagunça, tudo em mim é um colapso e as pessoas não gostam de bagunças.Isso foi tão difícil... Eu sei, muitas pessoas fizeram um círculo ao meu redor e me humilharam, aos olhos de algumas pessoas, essa situação era apenas uma piada, porque eu deveria me sentir mal só porque me pediram para beijar alguém? Na idade que eu tenho na década em eu que vivo você esperaria uma vida ativa para as meninas da minha idade, m
As terças são os piores dias do mês, não porque é terceira-feira, e eu tenho que atravessar o corredor da escola ou ser enganada pelos outros alunos, mas porque é terça-feira e é apenas mais um dia. Ela é como todos os outros, exceto que eu tenho que ir a um escritório com meu pai e isso pioram ainda mais as coisas.Segundo Buda nós, “Somos o que pensamos. Tudo o que somos surge com nossos pensamentos. Com nossos pensamentos, fazemos o nosso mundo.”Alguma vez você já se perguntou que tipos de pensamentos circulam em sua mente? Em que tipo de pessoa você está se tornando e em que tipo de mundo você mora? Eu me perguntei esta questão várias vezes, mas quando Noah e aqueles estudantes me cercaram na escola, percebi que talvez nossos pensamentos não sejam suficientes para mudar o ambiente em que vivemos, porque somos o que pens
A porta se abriu, mas eu não me movi para ver quem era. Eu sabia que se tratava da minha mãe e eu só não queria olhar pra ela durante um tempo. Será que eu conseguiria mentir sobre o que realmente aconteceu no dia especial de pai e filha?“Então, filha, como foi?” Ela perguntou, parando na entrada do quarto. Geralmente ela entraria sem sequer uma permissão, mas por estar interessada no meu maravilhoso dia ao lado do meu pai, preferiu ficar apenas na porta e demonstrar respeito.“Foi... foi normal.” Pressionei o rosto contra o travesseiro e respondi.“Apenas normal?” Insistiu a mamãe. “Tem certeza de que não fizeram nada de diferente? Como é o escritório dele?”“Tenho mãe.” Eu acabei sendo curta e deitei de barriga para cima. “Nós não
Você engole em seco, por que sabe que se você falar vai inundar o mundo inteiro com as suas lágrimas. As pessoas olham para você de uma maneira estranha, você sorri da situação, mas no fundo, você sabe que está mentindo para si mesmo.Duas semanas se passaram e eu não consigo acreditar que já estamos nos aproximando do mês de novembro. São quatro meses na minha nova casa e três meses na escola. Eu não tenho palavras para descrever o quão difícil foi para eu ir à escola depois de tudo o que aconteceu. Toda vez que eu ando pelo corredor, alguma garota tosca ou garoto boboca faz um sinal de lesada para mim e dão risadas. Talvez eu tenha reagido exageradamente quando acabei saindo da sala de literatura naquele dia, mas eu não sei o que há de errado comigo, acho teria sido muito pior se eu tivesse ficado.As coisas s&atild