O meu despertador tocou e, preguiçosamente, acertei-o com um soco para desliga-lo. Tudo o que eu queria era poder ficar em casa, assistir algum filme, escrever letras de músicas ou novos poemas. Eu não queria ir a um funeral, muito menos com os meus pais. Eu me levantei e rastejei o meu corpo para o banheiro, liguei o chuveiro e deixei cair à água quente no meu corpo. Era sábado, eu estava me preparando para um funeral, em certas partes, nada é tão ruim quanto ter que sair do carro com nós três dentro dele. Sempre quando saímos, o papai e a mamãe discutem, eles também discutem em casa, mas quando saímos de carro é muito pior. O papai fala no telefone, a minha mãe tenta fazê-lo prestar atenção no volante, ele diz que são negócios e que não pode simplesmente desligar, a minha mãe responde que se ele quiser permanecer vivo precisa desligar o telefone quando está dirigindo, eles param de discutir, depois voltam ao começo e eu sempre acabo por ter que ouvir o meu pai dizer que somos duas tolas. Então, eu odeio as nossas viagens de carro.
Abri o meu guarda-roupa e peguei o vestido preto que minha mãe passou na noite anterior. Depois de me vestir, soltei o meu cabelo e fiquei segura de que ninguém notaria nos meus ouvidos. Passei um dia inteiro com eles vermelhos e os meus pais não perceberam, mas isso não significa que outras pessoas não notariam. Por ainda sentia dor, não coloquei meus brincos de pérola, meus cabelos cobriam metade do meu rosto, então ninguém notaria o que eu tinha feito.
O cheiro de panquecas era tentador, fui à cozinha e encontrei minha mãe ao pé do fogão.
“Bom dia, filha”, ela disse calmamente. A mamãe nem sempre é calma, na maioria das vezes, não.
“Bom dia, mãe.” Respondi e sentei-me à mesa.
“O seu pai está lá em cima, ele está vestindo o paletó”. Ela também usava um vestido preto, o seu cabelo apanhado e eu percebi a quantidade de maquiagem ao redor de seus olhos. Era óbvio que meu pai havia batido nela de novo, por isso o exagero no pó.
Eu a encarei e a mamãe virou o rosto.
“Estou muito feliz por você estar indo com a gente, quer dizer, não há como estar feliz porque é um velório, mas fiquei contente em ter aceitado ir, isso é importante para o seu pai.”
Uau... Superimportante. Aposto dez dólares que ele nem conhecia a falecida e que muito menos se preocupa com o luto da família, papai está realmente interessado em se tornar um amigo com um rosto importante de seu trabalho. No Alabama, mamãe e eu fomos obrigadas a ir às festas dos amigos sofisticados para sermos reconhecidas, mas quando chegamos em casa, ele reclamava da comida e do espaço e usava a palavra com P para falar sobre as pessoas.
Em suma, ninguém além de si mesmo é importante para ele.
“Aqueles filhos da P... (a palavra feia com P) ganham o dobro do que comem e servem salgadinhos baratos nas festas?” Ele ria enquanto bebia seu uísque e minha mãe ficava ao redor dele como a submissa que sempre foi.
A minha mãe sempre usou a desculpa que ela aprendeu na igreja para defender as coisas que o meu pai cometeu, sempre me disse que uma boa esposa é submissa ao marido e que tudo o que acontece com ela é porque ela mereceu. Sinceramente, não consigo imaginar que Jesus aplaude as mãos por uma mulher que é espancada e diz estar bem, só porque ela é obediente ao seu amado marido.
Dois minutos depois, o meu pai desceu as escadas em seu paletó preto e um cigarro entre os dentes. Eu nunca o vi fumando até a noite anterior, eles discutiram então papai entrou no quintal e começou a fumar como louco, ele também bebia, então minha mãe acordou com mais um olho negro. Papai disse que apenas os idiotas fumavam, talvez tenha percebido que ele também é um idiota e decidiu aderir ao vício.
“Querido, por favor, não fume aqui dentro.” Mamãe pediu.
“Deixa de ser histérica, Rebecca.” Ele disse grosso, ajeitando sua gravata vermelha. “Como estou? Hã?”
“Está bem, querido. Você está bem.” Mamãe respondeu.
“Só bem?” Papai retrucou.
“Por Deus querido, é um velório, você está bem prum velório.” Ela se explica.
O silêncio nos encontrou.
Ele puxou uma cadeira e sentou-se.
“Coma, eu fiz panquecas.” Mamãe quebrou o gelo, colocando o café à mesa.
“Eu já as vi, não precisa me dizer.” Ele é grosso e curto. “O carteiro já entregou o jornal?”
“Sim, vou pegar para você.” Mamãe retira o avental e sai da cozinha.
Papai e eu não conversamos muito, nunca falamos sobre nada, desde aquela noite em que ele rasgou o meu livro, uma parede foi erguida entre nós e nunca temos nada para falar um com o outro. Toda vez que eu encaro, a voz dele ecoa na minha mente e as mãos congelam.
“Como anda a escola?” Ele me perguntou.
Senti as minhas pernas tremerem debaixo da mesa.
“Bebebem.” Respondi com dificuldade.
“Semana que vem, lá na empresa, terá um especial pai e filha, fiz a inscrição para a gente. O que acha?”
Que?
Eu me perguntei.“Você não vai precisar falar, eu até prefiro que não fale, só vamos passar um dia juntos e dizer para os outros como é aqui em casa.” Papai corta sua panqueca e espera a minha resposta.
Como é na nossa casa... Será que eu devo contar que ele bate na esposa e chama a filha de vadia por trás?
“Tu-Tudo bem.” Acabei concordando.
Mamãe voltou com o jornal nas mãos e reparou no relógio acima da geladeira.
“Vamos?” Ela perguntou. “Temos que chegar cedo, o seu pai disse que o funeral será breve.”
“Não será breve, eu é que não quero ficar muito tempo, detesto velórios.” O papai dobrou o jornal e levantou-se da mesa.
Mamãe e eu fomos para o carro, eu me sentei no banco traseiro e coloquei o cinto de segurança, o papai também dirigia super mal, então era bom prevenir que o cinto estaria preso o bastante para me impedir de saltar para fora da janela.
“Por favor, não falem nada, isso é muito importante para os meus negócios na empresa.” Meu pai disse ao colocar o sinto.
“Nós sabemos querido, vamos fazer tudo conforme nos disser.” Mamãe respondeu calma, encarando-me pelo espelho do carro.
“Enquanto a você Kristen, só tente se manter com os pés no chão, nada de livros de contos ou falar sobre fadas com os outros. Quero que vejam em mim a imagem de uma família conservadora e mentalmente bem, não estrague tudo.”
“Querido, ela não vai falar nada.” A minha mãe sorriu para mim do banco da frente. Às vezes eu odeio a forma como ela concorda com tudo o que o marido diz.
“Eu sei, ela nunca fala.” Ele dá partida no carro. “Mas esse é o problema, ela não precisa nem falar, é só olharem para sua filha e verão o quão você a estragou.”
A mamãe e o papai se beijaram e depois o meu pai ligou a rádio na estação de músicas dos anos 90. Enquanto eles trocavam olhares, eu abri um pouco da janela do carro e deixei com que o ar entrasse no interior. Aspirei e espirei. Uma fantasia assumiu a minha cabeça, às vezes eu gosto de pensar que estou em uma espécie de sonho mau e infinito e que um dia, eu simplesmente não sei quando, vou acordar e talvez viver de verdade.
Eu consigo me concentrar em algo aleatório enquanto os meus pais se encaram como se fossem perfeitos um para o outro, nas minhas fantasias o meu pai é o cavaleiro e a minha mãe a princesa, os dois se amam. Ou deveriam ser amar. Por que conto de fadas tem finais felizes? Os meus contos não são perfeitos como os que eu lia quando era criança, o meu pai não é um cavaleiro que traz rosas vermelhas, mas deixa marcas vermelhas na minha mãe, e a minha mãe, não é a princesa independente que eu idealizei.
Se eu fechar os olhos consigo me lembrar do poema que eu escrevi no meu quarto na noite passada:
Você consegue me ver,
Mas prefere que eu fosse invisível.
Hei, eu sei que está olhando para mim agora.
Onde está o meu pedido, por favor?
Contanto que esteja fresco,
Encha o meu copo de fantasias.
Essa noite eu quero ser uma princesa perdida,
Então me deixe ser uma fantasia
Além da realidade que eu sou.
(...)
A chuva nos encontrou quando viramos a esquina. Alguns chuviscos pingaram no vidro do carro e papai blasfemou um palavrão.“Merda!” Ele socou o volante. “Tinha que chover justo hoje?”Era apenas chuva, nada demais. Às vezes eu penso que o meu pai odeia tudo e a todos e que em certos dias, odeia ele mesmo.“Querido, não fale mal na frente da nossa filha, sabes que eu não aprovo o uso de palavrões.”“Ah, cala a boca Rebecca!” Ele esbraveja. “Você nunca aprova nada, para de ser tão paranoica, tenho certeza que nossa filha nem está prestando atenção no que estamos discutindo.”Seu telefone celular começou a tocar, meu pai desviou o olhar da minha mãe e segurou-o.“Por favor, querido. Desligue o telefone, sabes que dirigir falando ao telefone gera multa.”“Já vai começ
O Noah me seguiu. Eu não queria que ele me seguisse, na verdade, eu não queria que ninguém viesse atrás de mim. Com o tempo, você aprende a lidar com o desapego das pessoas.“Espere!” Ele gritava enquanto eu corria na chuva. “Por favor, espere!”Quando eu estava perto da saída do cemitério, senti a mão dele pressionar a minha e ele me virou com força batendo seu peito contra o meu.Nossos olhos se encontraram e a sua expressão perplexa, mas não tanto quanto minha, me fez reparar na estrutura facial de seu rosto.“Não fuja de mim.” Ele disse. “Por favor, não fuja como você fugiu ontem na escola.”Forcei o meu braço para trás, mas ele não me soltou.A chuva caía sobre nós.“Eu sei como você está se sentindo, venha comigo...” Ele segurou
As minhas roupas estavam encharcadas pela água da chuva, sentei na calçada e aguardei a cessação da chuva. Noah não ficou comigo, tendo me contado tudo o que ele disse, ele enfiou as mãos nos bolsos de suas calças e voltou para dentro. Em última análise, não me emocionava a falta de atenção, era o velório de sua mãe, por razões mais do que óbvias, ele nunca deveria ter seguido ou abandonado seu pai naquela capela, mas por algum motivo, alguma coisa o fez me seguir.Quando os meus pais deixaram a capela, eles passaram por mim como se não me conhecessem e abriu a porta de trás para eu entrar. Levantei-me, entrei no carro e coloquei meu cinto de segurança, esperei que meu pai me reclamasse ou algo assim, mas isso não aconteceu, papai dirigiu sem mencionar uma palavra suja e nem quis saber por que sua filha estava tremendo molhada no banco tr
As terças são os melhores dias do mês, não porque é terça-feira e tenho aula de literatura extra, mas porque é terça-feira e as aulas de educação física não são obrigatórias na escola. Se não fosse pelo fato de que os uniformes eram extremamente apertados nas pernas e o treinador ser um idiota, ou porque Kate e seus amigos estavam lá, eu daria uma boa olhada na pista e poderia nadar na piscina de 100 metros, mas eles estão lá, eles sempre estarão lá, e é por isso que eu odeio as aulas de educação física.As aulas são obrigatórias as segundas e sextas, na última sexta-feira, Kate descobriu o meu gosto por fadas e continuou me chamando de bruxa para o resto da aula. Bem, se eu fosse uma feiticeira, eu faria um encantamento para que ela só pudesse responder alguém quando lhe pedir
Mais uma vez, atravessei o corredor, as pessoas me encaravam, mas não me incomodava de enfrentá-las como sempre fazia. Não, não conseguiria fazer isso, não depois de ter ouvido tudo o que Alice me contou no banheiro.Como uma lebre, corri diretamente para a sala de aula, arrastei a minha cadeira, sentei-me e esperei que os outros alunos chegassem.Foi uma aula sobre educação sexual.O Edgard estava lá e a Kate também, eles estavam sentados na parte de trás da sala e riram quando o professor explicou sobre a importância do uso de preservativos, os outros estudantes também acabaram rindo das piadas egocêntricas de Edgard e eu só podia pensar em Alice naquele banheiro.Enquanto ele leitava livremente sobre como ser um idiota, ela estava lá, tirando toda a humilhação de ter sido estuprada por seu namorado (e agora grávida) dentro daquele
Silêncio. Tudo o que posso ouvir é um profundo silêncio que tomou conta de mim, não há mais músicas, elas pararam de tocar, não há mais espírito, não importa o que eu faça, nada, absolutamente nada me faz ter a coragem de me levantar da cama. Eu não sei quantas horas se passaram desde que cheguei da escola, tudo o que sei é que há um vazio dentro do meu peito, eu sou uma bagunça, tudo em mim é um colapso e as pessoas não gostam de bagunças.Isso foi tão difícil... Eu sei, muitas pessoas fizeram um círculo ao meu redor e me humilharam, aos olhos de algumas pessoas, essa situação era apenas uma piada, porque eu deveria me sentir mal só porque me pediram para beijar alguém? Na idade que eu tenho na década em eu que vivo você esperaria uma vida ativa para as meninas da minha idade, m
As terças são os piores dias do mês, não porque é terceira-feira, e eu tenho que atravessar o corredor da escola ou ser enganada pelos outros alunos, mas porque é terça-feira e é apenas mais um dia. Ela é como todos os outros, exceto que eu tenho que ir a um escritório com meu pai e isso pioram ainda mais as coisas.Segundo Buda nós, “Somos o que pensamos. Tudo o que somos surge com nossos pensamentos. Com nossos pensamentos, fazemos o nosso mundo.”Alguma vez você já se perguntou que tipos de pensamentos circulam em sua mente? Em que tipo de pessoa você está se tornando e em que tipo de mundo você mora? Eu me perguntei esta questão várias vezes, mas quando Noah e aqueles estudantes me cercaram na escola, percebi que talvez nossos pensamentos não sejam suficientes para mudar o ambiente em que vivemos, porque somos o que pens
A porta se abriu, mas eu não me movi para ver quem era. Eu sabia que se tratava da minha mãe e eu só não queria olhar pra ela durante um tempo. Será que eu conseguiria mentir sobre o que realmente aconteceu no dia especial de pai e filha?“Então, filha, como foi?” Ela perguntou, parando na entrada do quarto. Geralmente ela entraria sem sequer uma permissão, mas por estar interessada no meu maravilhoso dia ao lado do meu pai, preferiu ficar apenas na porta e demonstrar respeito.“Foi... foi normal.” Pressionei o rosto contra o travesseiro e respondi.“Apenas normal?” Insistiu a mamãe. “Tem certeza de que não fizeram nada de diferente? Como é o escritório dele?”“Tenho mãe.” Eu acabei sendo curta e deitei de barriga para cima. “Nós não