04: Aulas de literatura

Hoje de manhã, algo diferente, aconteceu comigo na escola. Talvez eu devesse ter marcado aquilo com caneta vermelha, na minha agenda de palavras complexas. Mas vindo de quem veio, eu posso apostar, que não passou de uma piada.

Eu estava na classe de literatura avançada.

Ao que tudo indica, os professores realmente gostavam da minha poesia e queria que eu fizesse parte do grupo de edição do jornal da escola. Eles me deram alguns papéis em branco e me pediram para escrever alguns poemas sobre qualquer coisa que viesse na minha cabeça.

Eu os fiz, mas acabei não gostando muito deles. Embolei os papéis numa bola e os joguei na lata de lixo.

A minha professora estava ocupada falando ao telefone e não me viu saindo da sala.

Entrei no banheiro antes do intervalo, lavei o meu rosto e fui direto ao meu armário. Quando eu abri o cadeado, um papel amassado caiu e eu vi as minhas anotações da aula de literatura.

O meu poema dizia: 

Um doce sonho te conduzirá, 

Tentes sentir alguma coisa...

Consegues me notar? 

Num silêncio oblíquo, 

Invado a tenda que habitam pessoas de papéis... 

Elas falam comigo...

(...)

Eu não consegui encontrar uma palavra que rimasse com papéis, nada dava certo na minha cabeça. Mas aí, virei à folha amassada e vi a letra dele lá.

Era a letra de Noah. Torta e às cores.

Ele nunca tinha escrito nada para mim. Mas eu o vi rabiscando a sua carteira, na aula de biologia antes de ontem. Era a sua caligrafia. Eu tinha certeza disso.

Pelo jeito que estava, havia sido escrito com o papel apoiado na parede. E suponho, que sua caneta vermelha, tinha estourado. Pois havia um grande borrão no final da folha. 

Li o que ele tinha escrito: 

E à meia-noite, Eles vão para seus bordéis. 

Eu deito com a minha alma, 

Eu questiono a lua e as estrelas. 

Eu estou no meu espelho 

E me pergunto:

Você terá proeza na solidão? 

Existe algo melhor,

Do que comer ovos fritos com macarrão? 

*** 

P.S: Eu sou um poeta pobre, 

estou nesta classe para continuar na equipe de basquete.

Os seus olhos são lindos!

(...)

Os meus olhos... Quando foi que o Noah notou os meus olhos? E por que se incomodou em completar o meu poema?

Quando eu me levantei, pude vê-lo sentado nas escadas com os seus amigos.

Edgard e Alice estavam juntos.

A Kate também estava lá.

Edgard enfiou a língua na boca da namorada e olhou para mim. 

“E aí, virgenzona? Ainda não conseguiu ninguém para te pegar assim?” Ele gritou. “Conheço uns caras que transariam com uma garota como você em dois tempos, você nem precisaria estar acordada, o que acha?”

Nada disso importava para mim.

Apenas prestei atenção no Noah e na maneira como ele ria das piadas egocêntricas do amigo retardado.

Edgard era um estúpido e típico defensor da cultura do estupro. Eu nem preciso estar acordada? Então, ele conhecia caras, que faziam sexo com garotas desacordadas, sem a consciência delas? Será que o Noah era um desses caras? 

Por um momento, imaginei-me no lugar de Alice.

Eu me perguntei: “Quando foi à última vez que ela teve relações sexuais com Edgard de sua própria vontade? Quando foi a última vez que ela disse não às pessoas como ele?”

- Você não pode se colocar no lugar de alguém se não tiver passado por algo parecido. - Essas foram às palavras mais verdadeiras que a minha avó já me disse. E assim como a minha mãe, Alice passa pelas mesmas coisas. Só que o que ambas não sabem, é que um simples não, daria um ponto final em tudo isso. 

O mundo é machista.

Não importam se discordam de mim.

As pessoas morrem, as plantas florescem. Novos seres humanos nascem e a teologia é avançada. Mesmo assim, o mundo permanecerá macho. Você não pode mudar um mundo sem cortar o mal pela raiz.

A cultura do estupro é alimentada todos os dias. Como? Quando uma menina é usada, como Alice é por seu namorado e ela apenas sorri, como se fosse normal. Quando uma amiga como Kate, sabe sobre as coisas horríveis que o namorado de sua amiga faz, e não levanta as mãos para mudar. Ou quando um cara como Noah, cale-se em uma situação como essa, apenas por medo de perder sua amizade com um popular.

Como podemos mudar o mundo?

Asseguro-lhe que ficar com a sua bunda no sofá da televisão, assistir documentários, chorar no final do filme que o menino ou a menina morre, não vai mudar nada. Ver seu amigo, praticando violação coletiva com uma menina e rir da situação, muito menos.

Tudo aquilo me deixou emotiva. Pois eu também sabia, dos abusos sofridos de minha mãe, e eu simplesmente não conseguia fazer nada.

Fechei o meu armário, peguei a minha mochila e caminhei até o pátio.

Havia um banco vazio lá. Ninguém estava sentado porque estava perto dos lixões, mas era o lugar perfeito para mim. Quero dizer, eu adoraria acreditar que algum dia alguém, quem quer que fosse, viria até mim e dissesse: “Olá, o que acha de sentar comigo hoje?” Mas esse alguém não existe, pelo menos nunca existiu. 

Coloquei a minha bandeja na mesa, arrastei um pouco o banco e me sentei. Eu não estava com fome.

De fato, eu só me alimento porque meu estômago vive cantando a música da fome. Em minha casa, é raro que eu me agrado em me sentar à mesa e curtir os pratos que minha mãe fez. Porque eu sabia, que antes de prepará-los, ela havia chorado. E que os seus olhos inchados e vermelhos, seriam culpados pela típica cebola nos olhos. 

Mordi a minha maçã, bebi o meu suco de laranja e me levantei para guardar a bandeja.

Quando eu me aproximava da mesa das bandejas sujas, um menino magro correu até a mim e passou as mãos pelas minhas costas. Eu quase caí no chão molhado, mas consegui manter o equilíbrio e segui o meu caminho. 

No decorrer das aulas, pude ouvir cochichos sobre mim nos corredores e também no fundo da sala. Eu não sabia o que fofocavam ou o porquê de estarem agindo daquela forma. Porém até mesmo o meu professor de artes, riu de mim quando saí da sua sala. 

Eu era uma piada?- Comecei a me perguntar. Mas foi só na minha última aula, graças a uma menina, que eu finalmente descobri o motivo.

Na minha aula de inglês a professora passou alguns exercícios. Como eu era a única que concordara com todos, ela pediu-me para corrigir as respostas no quadro negro. Com muito cuidado e também com medo, arrastei a minha cadeira para trás, andei para o quadro com o meu caderno e peguei um giz.

Os alunos ficaram em silêncio.

Quando eu virei às costas e comecei a escrever, todos começaram a rir em voz baixa.

Talvez eu estivesse escrevendo algo errado. - Pensei.

Então eu li novamente o que escrevi no quadro e percebi que estava correto. Não havia nada errado lá.

“Parem de rir, por favor!” A professora repreendeu-os, colocando seus óculos. “Parem ou eu...” Ela se calou, então eu senti o meu corpo congelar. “Kristen, você viu?” A senhora Voltez perguntou. “Você viu o que há nas suas costas?”

Balancei a cabeça em negativo.

“Tem um cartaz nas suas costas, trouxa!” Uma garota disse no fundo da sala.

Eu desviei os meus braços para trás, subi-os e arranquei o papel das minhas costas. Havia algo escrito e sem perceber, acabei lendo em voz alta:

“Eu tenho orelhas grandes e pontiagudas...”

De repente, todos os que estavam lá, começaram a rir do meu rosto pateta.

Um garoto tinha colocado um papel de avisos em mim.

Atravessei os corredores da escola. E só lá, depois que todos se divertiram comigo, pude perceber o que haviam feito.

Uma música tocou na minha cabeça.

Ah, ah, ah Você não tem nenhum lugar para se esconder. E eu estou me sentindo como um vilão está faminto por dentro. Um olhar nos meus olhos, e você estão correndo por que 

Estou chegando e vou comê-lo vivo. Ah Ah ah ah. Seu coração bate como um tambor, oh, oh, oh.

A perseguição acaba de começar, oh, oh, oh”. − Monsters, (Ruelle,2017).

Um silêncio profundo invadiu-me.

Tudo o que eu conseguia ouvir era aquela música.

Tudo o que eu conseguia ouvir, eram as batidas do meu coração, quererem saltar pela minha boca.

A senhora Voltez aproximou de mim. E quando tentou contato comigo, afastei os meus braços e a encarei em desordem.

Algo havia acontecido comigo.

Eu não sabia explicar o que, mas tinha acontecido.

A cada toque, eu perco uma cor. E a cada cor que perco, o meu coração se enche de uma substância chamada desespero. 

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