03: Ele pode me ver

Os dias foram se arrastando. Escondida entre os meus livros e os fios soltos do meu cabelo, eu me refugiei dos caçadores. Ou em outras palavras, dos outros alunos.

Pouco a pouco, descobri os nomes das pessoas da minha classe, inclusive do menino que esbarrou em mim. O nome dele era Noah. Ele estava na equipe de basquete, era bom em matemática e não gostava de mostrar isso aos outros. Como eu sei disso? Ontem, na aula de matemática, vi-o resolver os exercícios em menos de um minuto. Mas quando a professora perguntou, ele riu e deu o resultado errado. Além de participar da equipe de basquete, Noah é o amigo do cara com pinta de valentão,, que eu vi no gramado, no meu primeiro dia na escola.

O nome dele é Edgard e o nome da namorada dele é Alice. A melhor amiga dela, Kate, tem um caso com Edgard e os dois transam no estacionamento da escola, em um BRM de 2001. Por conta da minha falta de sorte, vi-os juntos hoje, quando fui buscar a minha bicicleta para ir embora. Kate e Alice andam sempre juntas, custou-me tentar entender, o porquê de existir uma rivalidade entre elas. Se eram tão amigas, por que Kate, decidiu trair a amiga dessa maneira?

Hoje mais cedo, no banheiro, eu ouvi Kate dizer a outra garota, que Edgard e ela estiveram sempre juntos. Ele estava namorando com a Alice, por causa do pai dela, ter o colocado na equipe de basquete da escola secundária. E para manter uma provável bolsa na faculdade, ele decidiu manter o relacionamento.

“Alice é uma idiota, todos sabem que ela está apanhada. Edgard me disse que transar com ela é o mesmo que se pendurar com uma boneca inflamada.” Kate disse a sua amiga enquanto a outra ajustava sua maquiagem.

Eu me escondi no banheiro. Não porque gostava de fofoca - eu as odeio - mas porque não queria criar rivalidades com alguém que eu não conhecia bem. Ela e sua amiga passaram a maior parte do tempo fumando, elas tinham um lugar secreto para esconder os seus maços de cigarros. Elas também falaram sobre suas vidas e falaram mal sobre as roupas de suas colegas líderes de torcida.

Quando estavam prestes a sair, um incidente aconteceu. Sem querer, eu deixei com que um dos meus livros caísse no chão e elas ouviram o barulho.

“Quem está aí?” a Kate perguntou. Eu respirei fundo, abri a porta do meu Box e sai. Ela me encarou com os olhos nervosos e sorriu de lado. “Então, você não é a... Cristina? A esquisitinha da minha turma?” Ela tirou o cigarro da boca.

“É... é Kristen.” Corrigi-a num sussurro.

“Tanto faz, então, o que você ouviu?” Kate apagou o cigarro com a sola dos sapatos olhando para mim com ódio.

Tudo - Eu pensei, mas não poderia dizer aquilo.

“Nanada...” eu menti.

De repente, Kate e sua amiga se aproximaram de mim, tiraram a minha blusa de frio e cobriram a minha cabeça com ela. Vendo quase nada, ouvi a porta do banheiro ser trancada do lado de fora.

Eu tirei o suéter dos meus olhos e corri para evitar que me trancassem.

“Por favor... Não me deixem aqui!” Comecei a bater na porta, escutando elas rirem do outro lado.

“Ah, sinto muito, acho que nós perdemos as chaves.” Disseram em uníssono.

Sentei-me no chão.

Coloquei a minha bolsa entre as pernas e esperei que alguém sentisse minha falta. As horas passaram, quando ouvi o último sinal que estava sendo reproduzido, alguém começou a trabalhar do lado de fora na maçaneta. Um senhor de meia idade me encontrou.

Levantei-me apressada e corri para sala. Todos os alunos já haviam saído. Por conta de uma brincadeira estúpida, eu acabei perdendo um dia inteiro de aula. Sem ter muito o que fazer, corri para o estacionamento. Peguei a minha bicicleta e foi lá onde vi Kate e Edgard transando. O carro estava balançando e vi a silhueta dela no vidro embaçado. Eles não me viram. Eu saí de lá o mais rápido que pude, não queria arrumar mais problemas, além de ter ficado presa no banheiro.

Cheguei na minha casa.

Notei no relógio da cozinha que eu estava uma hora atrasada, do tempo normal, que eu voltava para casa. E quando entrei na sala e vi a minha mãe limpando o mobiliário e o meu pai no escritório, percebi que talvez, eu não fizesse muita falta para eles também. Tanto na escola quanto aqui, a minha presença é quase que inválida. Como é se sentir fora do aquário? Como?

Uma dica para os adultos: Os seus filhos são pessoas que querem ser notadas, e mesmo quando dizem que não, elas devem ter um mínimo de atenção. Não os trate como máquinas. Não apenas procure por eles para lavarem os pratos, cortar a grama ou ir ao supermercado. Elogie-os, diga-lhes que os ama. Faça-os perceber que sua presença é gratificante. Especialmente, tente fazê-los sentirem-se amados por alguém. Lá fora há um mundo sombrio, e de vez em quando, é bom saber que você pode contar com alguém que realmente se importe com você. E na minha casa, eu não tenho nada disso. Eu não posso contar as coisas do colégio para o papai ou mamãe. Pois me chamariam de ingrata e além de tudo, não me dariam atenção.

Eu fiz os meus afazeres de casa, arrumei o meu quarto e me sentei próximo da janela para admirar a vizinhança. As casas eram bem comuns, o meu bairro era um pouco tranquilo e às vezes um ou dois garotos desciam a rua de eskeite.

As pessoas do lado de fora da minha casa, devem encarar a grama verde, as flores na varanda da frente  e pensar que somos felizes e harmoniosos. O meu pai sempre gostou de ter jardim em casa. Ele odeia plantas, mas tê-las na frente da varanda, parece bastante comum para uma casa americana. Eu crio mundos diferentes na minha mente. Em um deles, os meus pais e eu vivemos em uma família diferente: A minha mãe sempre é a senhora da casa e o meu pai um cara extrovertido. Fazemos piqueniques no nosso jardim e conversamos com os nossos vizinhos.

São ilusões.

Todos os dias, quando eu admiro o mundo exterior, sinto a sensação de estar perdida dentro de casa. Eu me pergunto se existem mais pessoas como eu. Será que elas vivem realidades inventadas, exatamente como é a na minha família?

[...]

O meu pai saiu durante a tarde.

As horas passaram depressa e eu li alguns livros no meu quarto.

“Filha, desça para o jantar!” A voz da minha mãe ecoou do outro lado da porta.

Eu me levantei e encontrei-a na escada.

“Fiz macarronada, a sua preferida." sorrio para mim "Depois do jantar, quero conversar contigo.”

Eu balancei a cabeça em positivo.

“A nossa vizinha, ela me indicou um especialista que pode te ajudar na procura da sua voz.” Mamãe passou as mãos no meu ombro, colocando o meu cabelo para trás. Nós duas sabíamos o motivo do meu silêncio, mas nenhuma de nós tinha coragem de expor aquilo para sociedade.

“Enquanto ao papai?” Perguntei.

“Cuidaremos disso durante o jantar.” Ela respondeu com um sorriso curto. Mamãe sábia que o meu pai não aceitaria a ideia de ter uma filha visitando uma psiquiatria, mas a dor de ver sua filha, se calar começava a incomoda-la. Às vezes, eu queria ter coisas para podermos conversar. Talvez fosse mais fácil. No entanto, mamãe e eu, não temos aquela harmonia de mãe e filha. Ela quase nunca acredita nas coisas que conto, e sempre defende o meu pai, como se a sua vida pertencesse a ele.

Nós fomos até a cozinha.

Colocamos a comida sobre a mesa, talheres e pratos e nos sentamos à espera do meu pai.

As horas passaram, depois de duas horas, ele finalmente chegou. Puxou uma cadeira com pressa e sentou-se com aquele olhar furioso.

Minha mãe se levantou, serviu-o. E só então, nós duas nos servimos.

Antes de comer, a mamãe colocou os cotovelos sobre a mesa, e começou a oração que sempre fizemos antes do jantar. Então o meu pai blasfemou contra Deus e ela abaixou a cabeça.

“Francamente mulher, ore quando estiveres sozinha. Tenho negócios a tratar e não posso demorar.” Ele rosnou, enfiando seu garfo no macarrão.

Das poucas coisas que fazemos juntos, o jantar familiar foi o único, que minha mãe conseguiu persuadi-lo a fazer conosco. A minha mãe é filha de diplomatas conservadores, criada do berço para ser uma boa esposa. Sua mãe, minha avó falecida Madison, sempre lhe dissera que devemos aproveitar os momentos, que passamos com as pessoas que amamos. E que o jantar familiar é a tradição de uma família feliz. Mas o que a minha mãe não conhece - ou tenta fingir que não sabe- é que a nossa família pode ser qualquer coisa menos feliz.

Mamãe olhou para mim.

Revirou as almondegas em seu prato e levantou a postura para entrar na presença do marido.

“Querido, podemos conversar?” Ela perguntou, enrolando o seu macarrão com o garfo. “Eu andei conversando com a nossa vizinha...”

“O que eu disse sobre os vizinhos, querida? Nada de fofocas, eles não são nossos amigos, não podemos confiar em pessoas do nível deles.”

“Oh, não estávamos fofocando, sabes que menosprezo injúrias.” Minha mãe persistiu. “Continuando, ela me disse que conhece um especialista e que ele pode ajudar nossa filha a...”

“Especialista?” Ele retrucou. “Por que a Kristen precisaria de um especialista?”

Mantive-me focada no jantar.

“A sua filha não precisa de nenhum especialista, o que meus amigos diriam? E os meus irmãos? Não quero ter que ouvir comentários sobre a índole mental dos meus filhos.”

“Isso não irá afetar sua convivência com eles, querido. Eu só acho que... que ela precisa de ajuda.”

“Você não acha nada!” O papai bateu com as mãos na mesa, derrubando o seu copo de suco. “Não me casei com uma mulher para ela me dizer o que devo ou não fazer, muito menos para que pudesse me ensinar a criar os meus filhos! O que a Kristen precisa é de uma surra, ela precisa acordar do mundo cor de rosa que ela vive!”

O meu pai se levantou, me levou para o canto da mesa pelo braço e começou a remover o cinto. Quando ele iria me bater, a minha mãe deu um passo à frente e bateu com os ombros nele.

“Não, por favor, não bata na nossa menina...” Ela implorou. “Nós podemos subir... podemos discutir isso a sós.”

Percebi a maneira como ele a olhava. Por algum motivo, papai sentiu a sensação e subiu as escadas.

“Você limpa isso para mim, querida?” Mamãe me pediu, limpando suas lágrimas.

Balancei a cabeça afirmando que sim.

“Eu amo você, filha.” Ela então me beijou na testa e pude sentir o que estava prestes a acontecer. A minha mãe colocou o avental na mesa, soltou as minhas mãos e subiu com o meu pai para o quarto.

Eu fui ao porão, peguei o kit de limpeza e fiz conforme ela havia me pedido. Tudo como estava antes. Limpo e imaculado.

Quando eu subi para o meu quarto, pude ouvir o ruído da cama dos meus pais rangendo. Estava acontecendo novamente. Eu não sabia o que esse fim levaria, mas eu tinha certeza de uma coisa: Na manhã seguinte, a minha mãe vai escorregar no chão molhado, o meu pai ficará no final do escritório e eu continuarei a sorrir. Porque não importa o que aconteça, para a sociedade, não há nada mais real do que uma mentira bem contada.

Cris Santos

Ás vezes tampamos os olhos para o que é visível.

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