Helga estava sozinha do lado de fora da casa esperando seu meio-irmão abrir a porta naquele frio de dez graus Celsius que ela bem conhecia.
Após alguns minutos, girou a chave na fechadura da porta de entrada com um pouco de dificuldade, já que carregava sete sacolas de compras. E estava preocupada. Muito preocupada. Tocara a campainha várias vezes para que seu meio-irmão abrisse a porta, mas não obtivera nenhuma resposta.
Helga não se importaria com isso em um dia comum, mas ela havia sido avisada de que a situação estava complicada. Havia saído para comprar justamente os mantimentos necessários para reabastecer a cozinha. Ela e o irmão não saíam de casa havia muito tempo: ele passara a trabalhar na casinha que dividiam, ela tirou férias no período de início de ano e, caso tivesse que voltar para trabalhar, se demitiria. Ficar muito tempo fora da proteção de sua casa estava fora de cogitação.
Após abrir a porta e colocar as sacolas numa mesa próxima, Helga falou bem alto em alemão:
— Stanislau! Não estava escutando a campainha?! Eu toquei várias vezes!
A austríaca não escutou nenhuma resposta e seu coração bateu mais forte. Começou a andar com cautela pela casa, observando o local para ver se algo estava fora do lugar ou se alguém estivera ali. Seu medo só foi embora quando ela escutou o barulho do chuveiro vindo de dentro do banheiro.
— Stanilau, você está ai? — indagou ela em frente à porta fechada, ainda com um pouco de receio.
— Estou aqui dentro, Helga — respondeu a voz grossa de Stanilau.
— Que susto você me deu! Que susto! Pensei que tinha acontecido alguma coisa com você! Cheguei sim; tome seu banho rápido!
A mulher roliça de trinta anos deu meia volta e foi até o pequeno hall pegar as sacolas, levando-as até a cozinha para guardar o que tinha comprado. Como tinha sido tola de pensar por um momento que ela e o meio-irmão haviam sido descobertos! Ele mesmo dissera que protegera a casa de todas as maneiras que conhecia. Como eles poderiam ser encontrados?
Helga desenrolou o coque mal feito de seu cabelo, tirou o dinheiro que tinha sobrado das compras do bolso e colocou-o em cima do balcão da cozinha. Começou a tirar tudo das sacolas. Olhou então pela janela do recinto, que dava para a casa vizinha, separada por um pequeno jardim. A vizinha, Sra. Billach, também estava preparando o jantar e sorriu para Helga, dando um tchauzinho com a mão. Era uma senhorinha simpática e gentil, diferente do restante da vizinhança, que não queria conversa alguma.
Quando Helga escutou o chuveiro desligar, gritou para Stanilau:
— Stanilau, comprei o queijo que você gosta! Era o último! Só fiquei em dúvida quanto ao biscoito que você prefere.
Helga olhou para o pacote de bolachas que havia comprado e caminhou pelo corredor da casa, indo em direção ao banheiro.
— Eu comprei as Erwes, são estas as bolachas que você gosta? — perguntou, falando perto da porta do banheiro. — Stanilau? Está me ouvindo, irmão?
Helga bateu na porta impacientemente. Stanilau não respondeu. A austríaca pressionou a porta, mas estava trancada. Aquela tensão reaparecia. Seria apenas outro susto?
Ela afastou-se da porta do banheiro para fazer exatamente como nos filmes e séries policiais: chutar. Com toda a sua força, chutou a porta, que se escancarou e revelou o corpo de Stanilau dentro da banheira vazia, abaixo do chuveiro desligado.
Helga levou as mãos ao rosto, abismada. Seu irmão jazia morto ali, bem na sua frente, no banheiro de sua casa que, naquele momento, parecia ter sido higienizado devido ao cheiro de hospital. Sua pele estava toda enrugada, parecendo que haviam sugado sua carne. Em seu peito havia um corte profundo feito por alguma faca, mas o sangue não havia jorrado. Os cabelos de Stanilau estavam brancos como se ele fosse um senhor de mais de oitenta anos, sendo que ele tinha apenas quarenta.
O choque foi terrível. Helga ficou sem reação, com a respiração suspensa. Seu irmão estava vivo antes de ter saído. Alguns minutos atrás, até falara com ela — ou melhor, agora ela nem sabia mais se tinha sido ele quem falara com ela.
Helga deu dois passos para trás. Sabia o que tinha sido, o que tinha acontecido. Imaginava até quem tinha feito aquilo. Sabia o porquê de seu meio-irmão ter morrido e ela não.
Sua reação imediata não foi ligar para a polícia, entrar em prantos nem clamar pela ajuda da Sra. Billach. Quando Helga conseguiu se mexer novamente, olhou ao redor para garantir que ninguém a observava de fora da casa, foi até a cômoda do corredor, tirou o telefone do gancho, discou um código internacional e depois um número estrangeiro e esperou. Assim que atenderam, ela falou não em alemão ou inglês, mas em português.
— Astra Valerius? Aqui é Helga Strazbarr, meia-irmã de Stanilau Valerius — a mulher do outro lado falou algo. — Sim, aconteceu algo. Stanilau está morto. Sua Essência foi drenada.
Pedro estava sendo levado por um táxi até o sítio de sua família. O jovem belo e magro, de olhos azuis e vinte e quatro anos, havia chegado de Londres bem cedo naquela mesma manhã. Para ele, o voo havia sido tranquilo, afinal, dormira a noite inteira. Ao chegar ao Aeroporto Internacional Antônio Carlos Jobim, o Galeão, no Rio de Janeiro, logo tratara com um taxista e conseguira que o mesmo aceitasse a proposta de levá-lo pelo preço de quatrocentos reais até Rio Azul, a cidade na Zona da Mata de Minas Gerais onde morava sua família. Após uma viagem de quatro horas, eles já estavam chegando ao seu destino. Pensando no reencontro com sua mãe e sua família, Pedro observava a vegetação próxima à estrada, sentindo o cheiro de terra molhada e balançando dentro do carro, que chacoalhava por causa dos buracos da estrada de terra. O caminho estava cheio de lama; havia chovido bastante naquela região. Pedro vira em uma televisão do aeroporto que, nas redondezas de Rio A
A esguia mulher de trinta e poucos anos ajeitou-se na cama do hotel, sentando-se. Era alta e, na posição em que se encontrava anteriormente, suas pernas saíam do colchão. Sua expressão era temerosa, os lábios tremiam de vez em quando. Os olhos escuros estavam atentos a qualquer movimento dentro do quarto. Sua preocupação vinha do fato de que havia acordado há menos de vinte minutos e não encontrara seu marido. Ela o fizera prometer que não se separariam mais. Todos os passos deveriam ser dados juntos, para a própria proteção do casal. Entretanto, ele era teimoso e saíra do quarto — ou ela assim esperava que fosse. O pensamento pessimista veio então à tona; era aquele tipo de ideia mais nefasta à qual as pessoas sempre tendem, imaginando que o pior aconteceu. Sem querer, a mulher se viu pensando nas hipóteses mais dramáticas: era bem possível que ele tivesse apenas saído e, enquanto isso, ela fosse atacada. Também era bem possível que ele tivesse sido sequestrado, ass
Malena foi a primeira a acordar, não deviam nem ser nove horas. Tirou a camisola de cetim, penteou os cabelos ondulados e foi até o armário decidir que roupa usaria. Escolheu uma simples camisa bege e brilhosa que era confortável ao tocar-lhe a pele. A peça tinha a gola um pouco babada caindo sobre os seios, ainda levantados. A idade não lhe caíra tão mal, pensou. Tudo era natural, reflexo do repúdio dela às técnicas da Essência para esconder os traços da velhice. A mineira escolheu também uma saia justa marrom que vinha até o joelho e, como sempre, saltos altos, desta vez de couro. Vestiu-se, maquiou-se e desceu. A maquiagem ela não passava sempre, mas como aquele dia viriam os Valerius, precisava estar mais bem arrumada. Albinha já estava na cozinha. Quando a empregada a escutou descer as escadas, perguntou qual seria o almoço. Malena disse-lhe que ela ia fazer uma ligação antes de dar as instruções. Temia que talvez fosse preciso fazer comida para os Valerius, mas
Fazia quase dez anos desde o dia em que colocara os pés na ilha de Santa Helena pela última vez. Para a Smith, aquele pedaço de terra continuava remotamente triste. À sua frente estava a casa branca, simples, de não mais que seis janelas e um telhado azul a cobrir os cômodos. Erguia-se solitária sobre o morro, metros e metros acima do nível do mar, cujo bater das ondas nas falésias podia ser escutado dali de cima. O vento sussurrava por entre os cabelos da mulher da mesma forma desagradável de antes, embaraçando seus longos fios negros pelo ar. Além disso, ele deixou a ponta de seu nariz ligeiramente mais fria e a alvura de seu rosto reforçada. Além da temperatura mais baixa, a qual ela já estava acostumada na Inglaterra, o ar carregava algo diferente. Pelo contrário, não carregava. A mulher sabia que havia algo errado ali. O lugar isolado não podia estar tão solitário. Algo não estava certo. “Não consigo sentí-la”.
Pedro levou pouco mais de quinze minutos para chegar ao sítio e espantar-se com a segurança instalada no portal da propriedade. Havia um homem uniformizado, parecendo ser da SWAT, com óculos escuros, colete e roupa cobrindo o corpo todo. O homem levantou a mão, fazendo sinal para que Pedro parasse. — Identifique-se. Ao se aproximar, Pedro pôde ver que da testa do segurança escorria suor. Fazia calor, certamente era difícil para ele ficar dentro de roupas pretas completamente fechadas — até luva ele usava. — Eu sou Pedro, moro aqui — respondeu, quase rindo. — Você está com os Valerius, não é? — o homem não respondeu, estava sério demais para isso. — Bem, a minha mãe está em reunião agora com eles. Ninguém avisou que eu poderia chegar? O homem hesitou por um momento, encarando o escritor por um longo tempo. Por fim, aproximou-se e fez uma revista em Pedro. “Que absurdo”, pensou o escritor, “estou sendo revistado para entrar na minha
Alejandra não acreditava em como aquela cidade era abençoada pelo sol. Não era à toa que Natal era chamada de Cidade do Sol: por quase trezentos dias predominava o astro-rei irradiando luz e calor. A espanhola orgulhava-se da escolha que havia feito para sua lua-de-mel. Seu marido tentara convencê-la a ir a Ibiza, Sicília, Veneza; até a Grécia havia sido uma opção dada por Fernando. Entretanto, a magi decidira ir para a Londres Nordestina, a linda e ensolarada cidade de Natal, e não houve argumento de Fernando que a fizesse mudar de ideia. De fato, a cidade era muito agradável. No início da lua-de-mel, quando o casal ainda não temia sair do hotel, eles conheceram as belas dunas de Genipabu, onde Alejandra cavalgou sobre um dromedário e fez um passeio de bugre com muita emoção. Conheceram o maior cajueiro do mundo, que se extendia por uma área equivalente a um quarteirão. Saborearam as castanhas de ca
Pedro dormira por cima da colcha da cama e, ao acordar, ainda vestia as roupas do dia anterior — nem se trocara! Passou um desodorante que encontrou em seu armário, para disfarçar qualquer cheiro desagradável que pudesse exalar, e foi até o banheiro escovar os dentes. Depois, desceu para a sala de jantar. Sentados à mesa, saboreando o café-da-manhã, estavam o casal Voyevoda, a mãe de Pedro e Maria. “Não era um sonho, tudo foi real...”, pensou Pedro, ao ver que o casal de Valerius estava ali presente. Para seu infortúnio, toda a reunião do dia anterior havia acontecido. Um silêncio instaurou-se na sala de jantar quando ele chegou. Malena olhou o filho, temendo dizer qualquer coisa. Foi Mirela quem quebrou a inação: — Bom dia, Sr. Pedro. — Bom dia — respondeu ele, desajeitado. O escritor sentou-se, servindo-se. Luca Voyevoda prosseguiu sua conversa com Malena a respeito da história da Alfaiataria Gal, a qual a mineira contava com muito
Do meio da selva de pedra de São Paulo, os Valerius fiscalizavam todos os magi independentes do Brasil. De xamãs, pajés e feiticeiros do interior da Floresta Amazônica a curandeiros e sacerdotes da Bahia; de alquimistas do Pantanal a mágicos e bruxos metropolitanos; todos eram vigiados secretamente a partir do prédio sede do Grupo e do Banco Valerius. Antes de se tornar Magister, Edgar Valerius já vigiava secretamente os independentes brasileiros, mantendo arquivos e fichas de cada um deles. Nas últimas semanas, com a liderança do círculo, Edgar e sua esposa Astra se perguntavam se deveriam começar a cuidar dos independentes da Europa, território sob jurisdição do clã. O edifício sede onde trabalhava a família Valerius era uma construção imponente e moderna, bem próxima à Avenida Paulista. Era retangular, todo de vidro negro espelhado, e ficava perto do centro da grande capital do Estado de São Paulo. Tirando um shopping center ao seu lado, a sede do banco não