Últimos 7 Anos
Últimos 7 Anos
Por: Mamá
Amnésia

Ivan acordou numa bala com uma baita dor de cabeça, a visão completamente embaçada e o som chegando nos ouvidos como uma transmissão de rádio mal sincronizada; sua garganta queimando de tão seca. 

— Senhor Ivan. — o médico pegou no seu rosto delicadamente, puxando de leve a pele abaixo do seu olho com o polegar e apontando uma luz ali, confirmando que os movimentos do globo ocular indicavam pensamento consciente. — Como está se sentindo? 

— Arm... — abriu a boca; os lábios secos. — Confuso? — Piscou os olhos, os sentidos voltando à precisão lentamente.  

— Normal. — o médico lhe sorriu, pondo o estetoscópio nos ouvidos. — Você pode me dizer seu primeiro nome? 

— Ivan... — respondeu, sentindo o toque gelado do estetoscópio no peito, por baixo da camisa do hospital. 

— Quantos anos você tem? 

— Am... Dezoito.

— E o que o senhor faz da vida? 

— É... Eu faço faculdade de música e dança... Primeiro semestre. 

— Mora com os seus pais?

— Não...moro...moro com um colega; dividimos um quarto.

— Uh hum... — ele murmurou, baixando o estetoscópio. — Isso sim é bem interessante. 

— E - escuta! — chamou quando viu o médico lhe dando as costas. — O - o que aconteceu? O que aconteceu com... com... — Droga, o que está acontecendo? Fale, Ivan, fale. — Com... aish! Com... Comigo! — Uah, finalmente. — O que aconteceu comigo? 

— Você sofreu um acidente de carro. — o médico se virou pra ele; uma mão segurando uma prancheta e a outra no bolso do jaleco. — E acabou de acordar de um coma de sete meses.

— Acidente de car- ca... — apertou os olhos. — Ca... Merda! 

— Fique calmo, isso é só uma das sequelas do acidente: seu cérebro sofreu um impacto muito forte; achar palavras às vezes pode ser mais difícil que antes, mesmo que você tenha acabado de escutar.

— Mas é permanente? Digo, vai... É... Vai... — droga, outra vez.

— Passar? Sim, sim, com o tempo, sim. — o médico pôs a prancheta embaixo do braço e tirou a mão do bolso pra olhar no relógio. — Uma enfermeira vai vir administrar sua refeição, Senhor Ivan, enquanto isso eu preciso falar com sua visita pra que ele possa te ver adequadamente.

— Visita? — Ficou animado. Não estava entendendo nada, mas ficaria realmente agradecido de ver algum rosto conhecido. — Me - meus pais?

— Não. — ele foi pro rumo da porta, abrindo a maçaneta. — Mas alguém tão importante quanto. — lhe sorriu, então saiu do quarto, deixando a porta aberta pra uma enfermeira que vinha com um carrinho de mão cheio de equipamentos. Suspirou, então andou pelo corredor, até o final, onde a visita do seu paciente estava sentada de costas curvadas; os cotovelos sobre os joelhos. — Senhor Vinícius. 

— Como ele está? — Vinícius se levantou do banco num salto. — Eu posso vê-lo agora? 

— Ele está estável; não me disse nada mas deve estar com uma baita dor de cabeça, vai sentir dor muscular assim que começar a se mover mais livremente, além da garganta, que vai incomodar, mas a enfermeira está administrando os remédios agora, junto com uma refeição líquida pra não machucar o estômago. 

— Ah... — Vinícius soltou o ar, aliviado. — Deus... Que bom, que bom que ele acordou. — Passou a mão pelos cabelos nervosamente. — Mal posso esperar pra conversar com ele...

— Eu imagino, mas... preciso te alertar de um detalhe.

— Sim? — ficou atento. — Sim, que detalhe? 

— Ele está com amnésia. — disse, sem mais nem menos; Vinícius arregalou os olhos. — Não muito grave, mas também não tão leve: parece que ele se esqueceu dos últimos sete anos. 

— Dos últimos sete anos?... — se deixou cair sentado de volta no banco, repentinamente sem força nas pernas. — Dos últimos sete anos?... — não conseguia acreditar; por que justo dos últimos sete anos?!? 

— Ele acha que tem dezoito anos, ainda fazendo faculdade. 

— Céus!... — Agora passava as duas mãos trêmulas nos cabelos. — E agora?! E agora? O que eu devo fazer?

— Não é motivo pra se desesperar. — o médico o tranquilizou. — É só uma sequela do acidente, mas as memórias vão voltando aos poucos.

— Aos poucos? Aos poucos, mas vai demorar quanto tempo?

— É impossível prever, mas vai voltar. 

— E o que eu faço?! — perguntou, exasperado. — Se ele se esqueceu dos últimos sete anos, então...

— O melhor que o senhor pode fazer por ele é viver normalmente: o leve pra casa, converse com ele, como sempre fez, e cuide dele durante o processo de recuperação; só o que é realmente contra indicado é sentar com ele e narrar seus últimos sete anos: não vai ajudar, pelo contrário, vai deixá-lo confuso, ansioso, em alguns casos pode até causar depressão; deixe-o se lembrar naturalmente, responda com sinceridade suas perguntas e não o apresse.

— Ok... — respirou fundo, tentando se acalmar e assimilar todas aquelas recomendações. — E ele deve saber?

— Claro que deve. — disse — eu vou deixá-lo ciente da amnésia apropriadamente, mas antes... — fez um sinal com a mão para o corredor. — Está na hora da sua visita, senhor Vinícius.  

Quando o médico abriu a porta e deu passagem, um homem entrou no quarto. Ivan se remexeu na cama; uau, aquela era sua visita?! Deus, aquele homem de cabelos vermelhos era bonito até demais: alto, ombros largos, elegante, usando um pullover sobre a camisa social vermelha, a calça marrom terra e os sapatos lustrados. As feições do rosto o lembravam de alguém, diga-se de passagem, mas antes de tudo eram perfeitas. 

— Oi, Ivan. — Ele veio se aproximando da cama; a cada passo Ivan ficando mais e mais corado. Se sentou numa banqueta ao lado da cabeceira. — Eu... — Ele engoliu em seco; parecia nervoso, desconcertado, até. — Eu senti sua falta. 

E pra sua total surpresa, ele desabou num choro de dar dó. Ivan procurou o olhar da enfermeira e do médico, sem saber o que fazer, mas ambos simplesmente deram as costas e ficaram mexendo nos equipamentos da estante no canto do quarto, como que querendo dar privacidade. 

— Am... Olha... — Quis tocar suas mãos, que naquele momento escondiam o rosto em prantos, mas parou quando viu um anel dourado no dedo anelar da mão esquerda. — Não cho - cho... — Oh, merda; se concentra, Ivan, a palavra está em algum lugar, é só dizer. — Não chore. — Ufa. 

— Desculpa. — Ele limpou o rosto; mesmo molhado e com pontos vermelhos de estresse, era lindo; lindo de um jeito que não dava pra acreditar. — Eu esperei tanto pra falar com você de novo. — então ele riu, fungando. — Foram os piores sete meses da minha vida, pode apostar. — e pegou nas suas mãos, e apertou-as, como se aperta algo pelo qual se tem uma forte e especial devoção. 

— Eu... — Ivan engoliu em seco, olhando para aquelas mãos grandes de dedos longos nas suas mãos pequenas; sua pele bem mais morena comparada à sua; naturalmente branca e mais ainda pela falta de sol. — Me desculpa, mas... Eu conheço o senhor? 

Vinícius sentiu-se quebrar e despencar por dentro como nunca antes, mas por fora tentou ser forte, se agarrando num fio de esperança, tênue e fino como uma teia de aranha, mas que, por favor, fosse o bastante naquele momento pra ele não desistir de tudo. 

— So-sou eu, Ivan. — Gaguejou, segurando as lágrimas estancadas nas pálpebras o quanto podia. — Sou eu... Vinícius... Vinícius, Vini... Você não... — Engasgou. — Você não se lembra? 

Sua esperança cresceu quando reconheceu no rosto emagrecido de Ivan não uma expressão de dúvida ou lamento por não saber, mas sim de total surpresa e até incredulidade. Pelo menos àquele nome ele reagiu. 

— Nem brincando! — e como reagiu. — Você não é o Vinícius, nem brincando! — não, não tinha como. — O Vinícius tem minha dezoi- não! Ida- ida- droga! — balançou a cabeça, como se chacoalhar ajudasse. — Idade! O Vinícius tem minha idade! — "e é bonitinho, sim, mas não gostoso que nem você", pensou, mas decidiu não falar. — Ele é meu roommate, eu conheço ele! — sim, seu colega de quarto serelepe, seu leãozinho, com aqueles cabelos descoloridos sempre cheios de fritz e despenteados; os olhos sempre bem abertos, quando não apertados acima das bochechas por aquele sorriso quadrado insubstituível; conhecia Vinícius tão bem como conhecia poucas coisas na vida, então...

— Se o conhece, então dê uma boa olhada no senhor Vinícius. — O médico interviu, se aproximando e pondo a mão no ombro de Vinícius, que naquele momento só faltava desmaiar de tão aliviado que estava de Ivan se lembrar dele, mesmo que só da sua versão sete anos mais nova. — Dê uma boa olhada, senhor Ivan.

— Ele não é o Vinícius. — Protestou, apesar de já estar fazendo exatamente como o médico havia lhe ordenado. — O Vinícius tem... — sobrancelhas arqueadas, olhos amendoados, uma pinta na ponta do nariz, outra no canto do lábio inferior da boca. — Ele tem... — mãos grandes, de dedos longos, uma pele pigmentada numa cor linda, como um caramelo salgado. — Vinícius? — quando deu por si seus olhos estavam cheios de lágrimas. — E - eu não estou sabe- enten- am... — ele era e não era Vinícius ao mesmo tempo, o que estava acontecendo?!? — enten... — as lágrimas começaram a escorrer pelo rosto; seus lábios trêmulos.  

— Você não está entendendo. — o médico completou pra ele, apertando de leve o ombro de Vinícius antes de soltar, num consolo já que ele voltara a chorar ao ver Ivan chorando. — Isso porque você perdeu sua memória dos últimos sete anos, senhor Ivan, ao menos por enquanto.

— Eu o quê?... — perguntou, meio inerte, esperando que não tivesse ouvido direito. — Eu perdi o quê?

— As suas memórias, senhor Ivan, dos últimos sete anos. — o médico respondeu, calmamente. — Você tem vinte e cinco anos de idade, é professor de dança e coreógrafo, e a única coisa que não mudou é que ainda mora com Vinícius; ele veio pra te levar pra casa; você está bem, e já ficou tempo suficiente aqui no hospital. 

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