Helida
— Nossa, Helida, agora mais do que nunca reafirmo a sua indicação ao prêmio pediatra do ano! Pensei que não fosse parar de chegar criança doente, meu Deus, parece que todos resolveram se resfriar!
— É assim mesmo, Gia, garanto que nenhum deles pediu para ficar doente, quando o tempo muda, as viroses também dão o ar da graça, pare de reclamar, já acabamos por hoje!
— Por hoje, né? Aposto que na segunda teremos o dobro dessas lindas criaturinhas catarrentas por aqui!
É impossível não dar um risinho disfarçado, mesmo que não a deixe perceber.
— Que tal uma bebida, para relaxar? Depois uma saidinha para uma dança entre amigas? — Mais uma pergunta esperada numa sexta à noite
— Não, obrigada, estou muito cansada, louca para cair na cama. — E a mesma resposta sempre.
— Helida, você tem que ver gente, sair! — Posso jurar que ela e minha mãe andaram confabulando contra mim, mais uma vez, não posso culpá-las por quererem me ver bem, mas não se sairão bem-sucedidas.
— Gia, não consigo, simplesmente não dá. Você sabe, ainda dói muito e sinceramente, acho que nunca vai melhorar, é como se uma parte enorme de mim tivesse morrido. — Mais uma vez sinto a ferida em meu peito sangrar, por instinto levo a mão ao coração em busca de algum jeito amenizar a dor, não que isso seja possível.
— Eu sei, Lim, ainda sente muita falta dele não é mesmo? Também sinto. — Sua expressão séria é a prova de que sabe bem, ela também perdeu alguém naquele maldito dia.
— Sim, todos os dias. Quando o Caio morreu minha vontade de viver morreu junto com ele. Mas, não vamos continuar a falar sobre isso.
Não consigo dizer mais nenhuma palavra sem que venha o choro.
— E aí, vai querer uma carona?
— Claro, vamos lá andar como duas irresponsáveis e furar todos os sinais vermelhos, nesta cidade com mais sinais de trânsito do que carros, Doçura!
— Rá-rá-rá, muito boa! — Impossível não rir do seu comentário irônico, sua vontade sempre foi de sair daqui, porém, não levou muito a sério a ideia, acho que o motivo é um belo médico ginecologista que ainda mexe com seu coração de pedra.
— Olha só isso! Você ainda sabe sorrir, isso é novidade, Lim.
Muitas vezes me pergunto se a vida de Gianna não tem problemas. Mas sei que não é bem assim, por mais que viva sempre sorrindo, cantando. E por falar em música.
— Gia, posso te fazer uma pergunta? — É preciso ir com calma, para ela não me interpretar errado.
— Na verdade já fez uma, mas deixo que faça outra! — Ela não perde uma.
— Engraçadinha! Você sabe quem está morando na casa dos Albuquerque? — Finjo não perceber seu olhar perscrutando minha expressão, mantendo os olhos na estrada.
— Bom, se o que dizem for verdade, porque você sabe, o povo dessa cidade não faz nada melhor do que fofocar, é um cara que veio de fora do país, ao que parece ele estudou fora, mas sabemos como as pessoas adoram aumentar as coisas para ter mais do que falar. Já o viu, ele é mesmo tão bonito como dizem?
— Nem vem com esse sorrisinho, não o vi, mas ouvi o seu gosto para música essa manhã, não é de todo ruim, porém, não gostei da barulheira que ele fazia tentando cantar junto.
— Será que era barulho mesmo? Ou você está exagerando? — Odeio quando me olham como se eu estivesse louca, bem, talvez eu esteja, massss, eu achar é uma coisa, quando vem de outros, torna isso mais real.
— Não, era insuportável sim de ouvir. Ele estava cantando junto, parecia uma arara gritando, aposto que o pobre Renato Russo estava se revirando no túmulo, de desgosto!
— Pelo menos tem um bom gosto, mas tudo bem, se você diz que ele não deve tentar uma carreira musical, eu acredito!
— Sei, como se eu não soubesse o que se passa nessa cabecinha.
Olho para o lado e vejo que seu apartamento está há três prédios de distância.
— Chegamos, está entregue!
— Obrigado, minha cara motorista particular, a gente se vê amanhã. E se cruzar com o vizinho, quero saber se os olhos dele são tão impressionantes quanto que dizem.
— Até, Gia! — Aceno uma última vez e lá vou eu para casa, tomar um banho, alguns comprimidos e apagar por algumas horas, isso se aquela gralha não começar a gritar antes do sol nascer.
Chegar em casa a cada noite, não me traz a satisfação que seria esperada, pelo contrário, apenas mostra como minha vida tem se resumido a tão poucas coisas como: deitar na cama e fechar os olhos.
Isso é o que sempre faço, porém, o sono não vem fácil, não sem antes as ondas insuportáveis de dor me atravessarem vezes e vezes, fazendo-me rolar de bruços e abraçar o meu corpo, como se pudesse evitar que ele se parta em mil pedaços, em seguida, me fazer ter o trabalho de me remontar, da melhor forma possível, a cada dia que se passa.
***
“Oh não, não quero acordar!”
Não após dormir como uma pedra depois que os dois comprimidos calmantes que ingeri fizeram efeito.
Estendo o braço e desligo o despertador do rádio relógio que fica no criado mudo. Já amanheceu e graças aos céus aquela música perturbadora não voltou, desde a manhã da última sexta-feira que venho acordando com um verdadeiro repertorio da Música Popular Brasileira, desde de Cassia Ellen com Segundo Sol, até Proibida pra mim, na voz de Zeca Baleiro, músicas que um dia considerei agradáveis de ouvir.
Me incomoda ainda mais lembrar que eu mesma, por diversas vezes me peguei nos últimos dias lembrando as letras de cada uma delas, seja quem for o novo vizinho, tenho que admitir, tem bom gosto para música. Eu que não tenho mais coração, ou nervos, para ouvi-las sem me partir em mil pedaços.
Sento na cama e vejo que o sol já está alto no céu, “Que horas são?”
Esfrego os olhos ainda um pouco sonolenta, ontem foi incrivelmente doloroso para mim, demorou algum tempo para os comprimidos fazerem efeito. Sei que é errado recorrer continuamente a esse tipo de medicamento, mas quando fica difícil fechar os olhos, mesmo tarde da noite, busco esse pequeno truque.
Na noite anterior, já passava das três da manhã quando, enfim, consegui entrar na minha bolha de torpor e adormeci.
— Mãe? Você está aí?
Chamo enquanto desço as escadas, não recebo resposta alguma, que estranho, meus pais nunca saem sem me avisar.
— Mãe, pai? — Oh! Que cabeça a minha, hoje é domingo, eles devem estar na igreja!
O programa deles de sempre, o mesmo que fiz por anos, porém, digamos que posso ter perdido a minha fé, não em Deus, sei que ele existe, mas deixei de acreditar que eu pudesse ser uma filha amada aos seus olhos.
Ser responsável por uma morte, não é bem o que manda a santa e amada igreja! Bem, nada posso fazer além de sentar à mesa e tomar café da manhã sozinha, como tem sido todos os domingos.
Depois de pensar um pouco vejo que só sentar e comer não é o suficiente para parar essa estranha agitação dentro de mim, talvez eu esteja desenvolvendo um novo vicio por aquelas malditas músicas matinais, então vou correr, como sempre, talvez assim a mente acalme um pouco, eu espero.
Está decretado no meu livro de coisas detestáveis que odeio, odeio os domingos, é o pior dia da semana para mim, sem sombra de dúvida. Nunca há nada interessante ou complicado o suficiente para preencher meu dia, daí já viu, fico cada vez mais deprimida, tudo que eu não preciso é de tempo livre, isso significa que não estarei com minha bolha tão fundamental para me livrar da dor do momento.
Mas sei que não poderei me socializar apenas com a mobília da casa dos meus pais e meu consultório para sempre. Então, tenho que ao menos uma vez por semana encarar outras pessoas, que não sejam os pais dos meus pequenos pacientes
Olho a minha volta, com uma sensação estranha, algo não está igual. É impressão minha, ou todas as mulheres da cidade decidiram começar a correr também?
— Oi, Helida, como você está, faz algum tempo que não nos vemos, não é, querida? — Clara, uma das criaturas mais fofoqueiras de Bom Sossego, cumprimenta-me com um sorriso triste e falso, fazendo meu estômago embrulhar.
Não suporto esse olhar de pena que recebo quando resolvo sair de casa, sempre acontece a mesma coisa, por esse motivo prefiro me manter no meu casulo. Minha vontade é de ser grossa com todos por me olharem assim e perguntar se nunca me viram, mas a boa educação me vence, mesmo quando quero ignorar a todos.
— Olá, Clara, estou na mesma. Vou levando, você sabe, um dia bem, outros nem tanto.
— Espero que logo as coisas melhorem para você, querida, mas me diz, já viu seu novo vizinho? — Ela tem um sorrisinho nos lábios nada santo para uma mulher casada.
Agora está explicado por que ela veio toda simpática para o meu lado, reviro os olhos por ser questionada novamente sobre aquela arara gasguita.
— Não, não o vi e tenho certeza que todos os três mil setecentos e noventa e sete, Ops! E oito habitantes da cidade sabem que, apesar daquela casa ser bem ao lado da minha, nunca mais pisei lá, nem mesmo no jardim. — Ela parece constrangida pela pergunta, menos mal.
— Desculpe-me! Eu deveria segurar mais a minha língua. — “Deveria mesmo!” Meu lado bruxa grita para ela.
— Deixa pra lá, sei que não teve a intenção.
Tento soar menos irritada, principalmente por saber como ela gosta de um bom assunto.
— Mas, diga-me uma coisa, o que deu em todo mundo para decidirem entrar em forma? Algum daqueles concursos sobre que cidade perde mais peso junto? — Ironizo por saber que não existe isso, pelo menos, não que eu saiba.
— É, querida...
Odeio essa forma dela de falar querida em todas as frases, balança a cabeça como se lamentasse algo, maluca!
— Está claro que não conheceu mesmo o seu vizinho, meu bem, ele é muito... Uau! Por falar nisso, olha lá ele correndo!
Sigo seu olhar admirado e cobiçoso, perguntando-me onde anda o imbecil do Douglas Vilar, seu marido, que tanto me infernizou no ensino fundamental, que não está aqui aquietando o facho da mulher.
Neste momento, que finalmente o vejo, alto, magro, mas nem tanto, olhos azuis cinzentos e enigmáticos, pele clara, cabelos cor de mel, que vejo apenas de relance, por estarem cobertos por um boné, um belo sorriso e um olhar, vazio?
“Ei, espera um pouco, por que estou registrado tantos detalhes na primeira olhadela dessa pessoa que nunca vi?”
HelidaDistraio-me com a forma fluida que ele corre, com fones de ouvidos, parecendo concentrado no que está ouvindo e não dando a mínima para a baba que escorre das bocas do bando de mulheres que o cercam, ainda o olhando seguir em nossa direção, quando acontece o inevitável, eu caio estatelada no chão.— Aí, mas que droga! — Isso sempre acontece quando esqueço de olhar onde meus pés estão pisando, descoordenada como sou, nunca deveria esquecer de prestar atenção neles, nem por um segundo. Meu problema de coordenação motora não é de hoje.— Helida, você está bem!? — Clara grita estridente, atraindo a atenção de todos em um raio de meio quilometro pelo menos, que param para olhar em minha direção. Quero um buraco para me enterrar depois desse alarde desnecess&aacut
HelidaIgnorando completamente a orientação de Ethan, saí logo cedo para o trabalho. Meu psicológico se recusando veementemente a seguir algo que ele tenha me dito.Por algum motivo, passar a noite em claro lembrando a forma intensa com que seus olhos me fitaram na manhã anterior, fez crescer um tipo de antipatia a ele e ouvir a voz de Frejat cantando Segredos hoje cedo quando acordei, em nada ajudou a melhorar essa aversão.Sorrio pensando que, bem que essa música é linda e me fez ponderar, por que um cara tão bonito e atraente como ele – sim estou afirmando que o acho atraente – procura um amor, quando basta apenas um estalar de dedos e boa parte das mulheres da cidade se jogariam aos seus pés?— Bom dia, Gianna! — Passo por ela indo direto para minha sala, não dormi muito bem durante a noite, além da dor terr&ia
EthanAndo de um lado ao outro do meu consultório, a última paciente, ou poderia dizer, a última curiosa, saiu há quase uma hora, desde então, as palavras da minha, por ironia do destino, vizinha duas vezes, martelam a minha cabeça.Tudo bem que agora sei o motivo da sua antipatia, ainda assim, não explica todo o seu mau humor quando estou perto, se bem que, não a vi perto de outras pessoas para ter uma opinião formada.Talvez o correto fosse observá-la um pouco mais, no entanto, estaria invadindo sua privacidade. Desperto dos meus devaneios com a batida abafada na porta, que não seja outra maluca com uma dor fictícia em uma região constrangedora, não sei se terei humor para mais uma! — Pode entrar
HelidaMeu pai fala de um jeito que eu quase acredito que seja fácil.— Precisa voltar àquela casa, já se passaram quase seis anos, tem que voltar lá e se livrar das lembranças, deixá-las no lugar a que pertencem, o passado. Fazendo jus a tudo de bom que viveram juntos, não deixando, por exemplo, a tristeza por sua perda, ser a lembrança mais forte que tem do Caio.— Eu, naquela casa? Não posso, talvez em um futuro bem, mas bem distante, inda não estou pronta para isso. Ainda mais com aquele metido morando lá. —Meu pai muda sua expressão, para o olhar que diz: você-esta-encrencada-mocinha.— Que bom que tocou no assunto, não gostei nada de saber que destratou o pobre rapaz, você precisa pedir desculpas ao Ethan e isso é coisa para ontem, Lim!— Como é, que é? &md
HelidaA forma como eles me olham, me deixa um pouco desconfortável, como se eles acabassem de presenciar um milagre aguardado há tempos, talvez seja mesmo o caso.— Hã, obrigada, filha. É maravilhoso tê-la no jantar! — Ela limpa a garganta antes de responder.“Por que será essa cara de espanto? Eu costumo elogiar sua comida, não elogio?”Pelo jeito não.Faço uma nota mental de elogiar mais a comida da minha mãe, porque é realmente uma delícia.Uma batida na porta me traz de volta dos meus devaneios.Levanto os olhos em direção a entrada da frente e me, pergunto quem pode ser, pois, sim, as pessoas da cidade são fofoqueiras, porém, evitam visitas inadequadas.— Aposto que é o Ethan! — Minha mãe responde minha pergunta silenciosa.Pelo modo c
Helida— Ok, vamos? — Na verdade, eu gostaria que o chão abrisse nesse momento, o que me deu para encarar o cara assim, como se meus olhos, não pudessem desgrudar do seu rosto e corpo?No mínimo, ele pensará que sou uma atirada, que está louca por um algo a mais. Preciso sair dessa encrenca o mais rápido possível.— Claro! — Sorri divertido, no entanto, parece igualmente constrangido por ter ficado me encarando também.“É Dr. Cretino, Ops! Certinho, você também me encarou, queridinho!”— Bem, o que posso dizer? Divirtam-se e cuide bem da minha menina, Ethan! — Fuzilo meu pai com meus olhos, não acredito que estou passando por isso.— Pode deixar, Jorge, prometo trazê-la para casa cedo. — Eles riem, como se alguma piada interna estivesse rolando.<
Helida— É melhor eu entrar, já está tarde. Bom, tarde para mim. — Digo quebrando o nosso contato.— Tudo bem, a gente se vê por ai, então! — Ele olha para meu rosto, porém, logo desvia o olhar.— Isso é bem provável. Afinal, somos vizinhos. — Brinco tentando voltar ao clima leve de antes.— É isso aí, por duas vezes! — Seu sorriso acolhedor está de volta. Acho que é a hora de ser um pouco mais grata a ele.— Por falar nisso, foi muito gentil da sua parte, você ter o cuidado..., isto é constrangedor! — Abaixo a cabeça, no entanto, ele segura o meu queixo, com um gesto simples, fazendo com que eu volte a olhar nos seus olhos.— Continue, por favor? — Seu olhar tem um efeito hipnótico, o escuro da íris transformando
HelidaMesmo Ethan não sendo mais “obrigado” a planejar os seus horários, porque nos acertamos e decidimos ser amigos, não o tenho visto há algum tempo, duas semanas para ser mais exata.O tão bom humor que esteve comigo nos dois primeiros dias depois que saímos, evaporou completamente, toda minha empolgação e as perspectivas de que seríamos amigos foram frustradas e comecei a me perguntar se fiz algo para ele ficar com uma impressão equivocada de mim.“Ou será que ele tenha percebeu que sou uma aposta falha para amigos? Talvez o tenha espantado com minha forma rápida de deixar claro que nada além de amizade aconteceria entre nós. Se bem que, ele falou que queria sersómeu amigo, talvez eu só o tenha o assustado com minha loucura.”E cá estou