Helida
Ignorando completamente a orientação de Ethan, saí logo cedo para o trabalho. Meu psicológico se recusando veementemente a seguir algo que ele tenha me dito.
Por algum motivo, passar a noite em claro lembrando a forma intensa com que seus olhos me fitaram na manhã anterior, fez crescer um tipo de antipatia a ele e ouvir a voz de Frejat cantando Segredos hoje cedo quando acordei, em nada ajudou a melhorar essa aversão.
Sorrio pensando que, bem que essa música é linda e me fez ponderar, por que um cara tão bonito e atraente como ele – sim estou afirmando que o acho atraente – procura um amor, quando basta apenas um estalar de dedos e boa parte das mulheres da cidade se jogariam aos seus pés?
— Bom dia, Gianna! — Passo por ela indo direto para minha sala, não dormi muito bem durante a noite, além da dor terrível que sinto no pé a cada passo dado.
— Olá, bom dia, pra você também, Lim! É impressão minha ou tem um sorriso no seu rosto?
Ela faz uma pausa dramática, então cai na gargalhada.
— Sim sem dúvidas foi um sorriso que vi assim que entrei nessa sala, porém, acaba de sumir! — Ela faz beicinho e suspiro derrotado.
Eu sorrindo? Estreito meus olhos, ela deve estar enganada, mas e daí, não me é mais permitido sorrir?
— Qual é a de vocês, hein? Quando não sorrio vocês reclamam, quando sim, também recriminam. Está difícil dar uma dentro!
— Ei, calma aí mocinha! E não, Senhorita Morales, não estou reclamando, eu gosto de vê-la sorrir, eu hein, que bicho te mordeu?
Arrependo-me na hora por ter sido ríspida com ela, porém, não peço desculpa, isso levaria à uma conversa interminável, sempre soube que a Gia é uma grande amiga, daquelas que se alegra junto com você, uma vez ou outra que eu não ceder não irá magoá-la.
— E como estamos hoje? — Mudo de assunto, ela resmunga, mas não ligo, já é normal, faço isso sempre que quero me esquivar de alguma pergunta.
— Certo... Como sempre, lotados. Isso não é mais novidade para nós!
Que ótimo, terei com o que ocupar a mente. A vejo quase dá pulinhos empolgada, o que significa que tem algo a dizer.
— Mas, temos uma novidade, sabe quem acaba de ocupar o consultório ao lado? — Seu olhar diz que ela pretende me dizer.
— Não! Eu deveria? — Levanto uma sobrancelha.
— Talvez, uma vez que ele já é seu vizinho. —Viro-me para ela com os olhos arregalados.
— Você está brincando, ele não pode estar aqui ao lado também! — Uma sensação que há muito não me tomava por dentro começa a vir à tona.
Tenho dificuldade em controlá-la e preciso respirar fundo, diversas vezes, para manter a minha postura impecável. Estou prestes a começar a minha rotina de consultas com os pequeninos e não preciso que a raiva que começa a me consumir, causada por meu indesejado vizinho, interfira na minha vida profissional.
— Não estou não! E toda a cidade está comentando sobre o seu pequeno acidente de ontem. — Ela faz uma careta e sei que está tentando não rir.
— Não me surpreendo nem um pouco, já esperava por isso, as vezes não consigo andar um único metro sem tropeçar em meus próprios pés, parece que nasci com dois pés esquerdos. Quanto a fofoca, eles falam de tudo, daqui a pouco surge a descoberta de alguma traição ou filha de alguém grávida e puff! Sou esquecida novamente.
— Mas, me diz, amiga, como foi ser carregada por aquele deus grego? — Meu Deus, estou ferrada!
— Bem, ele é lindo mesmo... — Putz! Não acredito que falei isso alto! Quero me bater, ela não precisava de mais artilharia, agora realmente estou ferrada.
— Como é que é?
Ela senta de frente para mim e cruza os braços na altura no peito.
— Eu ouvi direito, você disse que ele é lindo? — Argh! Tenho vontade de me estapear ainda mais por isso.
— Não, você não ouviu, pensa que ouviu, mas na verdade não está ouvindo bem.
— Conta a verdade, Lim, nada de tentar me enrolar dessa vez! — Pronto, ela não vai esquecer isso tão cedo, prevejo longas conversa sobre o mesmo tema.
— Não tem nada para contar, eu caí, torci o pé, ele me ajudou a chegar em casa, depois foi embora, agora vamos trabalhar, tudo bem? — Ligo o computador e coloco meu sorriso profissional.
— Não se engane, não vai escapar tão fácil, quando sairmos daqui você vai ter que falar. — Definitivamente estou ferrada, ela não vai me deixar em paz, por sorte terei muito trabalho, o que me dará algum tempo para pensar numa forma de amenizar sua curiosidade.
Saio da minha sala, olho se não estou esquecendo nada, já que, com a cabeça no massacre do unicórnio raivoso como estou, não seria novidade.
— Deus, como você aguenta, Lim? É uma guerreira mesmo, nem saiu para o almoço hoje. — Alongo meu pescoço enquanto espero que Gia pegue suas coisas.
— Não reclama, Gia, você sabe gosto de me sentir útil. Eu adoro meu trabalho. — Paro de falar assim que vejo a tagarelice de Gia acabar.
Ela está com cara de quem acabou de ver algo interessante, um sorriso lento se espalhando por seu rosto, quando me viro, logo entendo o porquê.
Bem ali está ele, como diz a música do Jota Quest que ele estava ouvindo outro dia, o causador da minha insônia, Ethan Scott, parado na minha frente com aquele sorriso brilhante de mil megawatts.
— Boa noite, senhoritas! — Seu olhar demonstra surpresa, enquanto sua voz faz um tipo estranho e doce tremor percorrer meu corpo por dentro.
— Eh, oi! — Gia olha para mim com aquela cara de: Uau, ele é muiiiito gato! Reviro os olhos para ela como se dizendo “não é nada demais”.
— Boa noite, Dr. Scott! — Tento manter uma certa distância entre nós.
— Como está o pé? — Parece genuinamente preocupado.
— Melhor, obrigado!
— Se não me engano, falei algo sobre você passar ao menos dois dias de molho, não foi? — Bem, eu não ouvi.
— Não posso me dar ao luxo de passar dois dias sem trabalhar, tenho muitos pacientes, além do mais, sou uma das duas únicas pediatras daqui, não posso deixá-los na mão.
E meu humor nada agradável, começa a levar a melhor, principalmente com as emoções que ele me traz.
— E o que você tem a ver com isso? Deu uma sugestão que resolvi não ouvir, ponto! — Esbravejo, chocando a todos, inclusive a mim mesma.
— Ei, só queria ajudar! — Ele levanta as mãos como se eu estivesse com uma arma nas mãos e se rendesse a minha ameaça.
— Você está sempre só querendo ajudar, não é mesmo? Que conveniente ter sempre alguém tão gentil por preto! — Respondo sarcasticamente.
— Lim, ele falou numa boa, o que te deu? — Gia pergunta confusa, será que ninguém percebeu?
— Que tal isso, ele está começando a parecer minha sombra, está na minha casa, no consultório que seria do Caio, daqui a pouco vai querer levar você também, ou quem sabe ele queira uns pais novos? Vai querê-los também? — Jogo as mãos para o alto exasperada.
— Espera um minuto, como assim estou na sua casa? Estou na minha casa, eu a comprei! — Aumenta seu tom de voz, como se estivesse no limite da paciência também.
— Pois é amigo, ela morou lá com o marido.
Olho feio para Gia, ela não deveria estar falando sobre mim para um estranho, ainda mais esse estranho de olhar intenso e cheiro cítrico embriagante.
— Claro! Como não percebi, você é Helida Albuquerque, esposa de Caio Albuquerque!
Sua expressão muda para pesar, então já não há o que conversarmos, ou gritar um ao outro, não vou enfrentar mais um olhar de pena sequer!
— Chega! Não fale mais nada, nada mesmo!
Saio praticamente arrastando a Gia dali, estou a ponto de estourar de raiva, não entendo o que esse cara tem que me perturba tanto. Não pode ser normal uma pessoa que mal conheço me afetar desse jeito.
— Lim, me diga o que está acontecendo, eu sei que tem algo errado, você foi mais grossa do que, ..., do que normalmente é, o pobre homem não disse nada demais? — Balanço a cabeça, porém, com ela é melhor a verdade, sempre.
— Eu não sei, mas sempre que ele chega perto me sobe um troço, e quando vejo, bum! Já explodi!
— Eu sei bem o que é esse troço, você gosta dele! — Ela dá um sorrisinho besta.
— Tá louca, acabo de dizer que sinto uma raiva insana do sujeito e você diz que gosto dele? Essa é boa! — Bato palmas destilando todo o meu sarcasmo.
— Não estou louca, quis dizer exatamente o que disse, faz muito tempo que não a vejo reagir a algo ou alguém, sua raiva vem por não saber como digerir isso! — Respiro fundo contando mentalmente para me acalmar.
— É, acho que talvez, veja bem, talvez, eu tenha exagerado um pouco. — Agora estou me sentindo uma idiota.
— Bondade sua dizer um pouco, no entanto, tem que descobrir por que você reage com tanta raiva. Não pode ficar gritando com o cara toda vez que encontrar com ele e isso vai acontecer sempre. — Me encolho só de pensar que nossos encontros serão constantes.
— É, você está certa. — Como sempre, perco qualquer discussão com a Gia. — Bem, a gente se vê amanhã.
— Tchau, e, você sabe.
Ela vai me atormentar por um bom tempo com isso, porém, até certo ponto tem razão, preciso descobrir o que me faz reagir tão estranho, afinal, ele não falou nada de mais, falou?
Mas nesse instante só quero chegar em casa e tentar, pelo menos tentar ter uma noite de sono.
EthanAndo de um lado ao outro do meu consultório, a última paciente, ou poderia dizer, a última curiosa, saiu há quase uma hora, desde então, as palavras da minha, por ironia do destino, vizinha duas vezes, martelam a minha cabeça.Tudo bem que agora sei o motivo da sua antipatia, ainda assim, não explica todo o seu mau humor quando estou perto, se bem que, não a vi perto de outras pessoas para ter uma opinião formada.Talvez o correto fosse observá-la um pouco mais, no entanto, estaria invadindo sua privacidade. Desperto dos meus devaneios com a batida abafada na porta, que não seja outra maluca com uma dor fictícia em uma região constrangedora, não sei se terei humor para mais uma! — Pode entrar
HelidaMeu pai fala de um jeito que eu quase acredito que seja fácil.— Precisa voltar àquela casa, já se passaram quase seis anos, tem que voltar lá e se livrar das lembranças, deixá-las no lugar a que pertencem, o passado. Fazendo jus a tudo de bom que viveram juntos, não deixando, por exemplo, a tristeza por sua perda, ser a lembrança mais forte que tem do Caio.— Eu, naquela casa? Não posso, talvez em um futuro bem, mas bem distante, inda não estou pronta para isso. Ainda mais com aquele metido morando lá. —Meu pai muda sua expressão, para o olhar que diz: você-esta-encrencada-mocinha.— Que bom que tocou no assunto, não gostei nada de saber que destratou o pobre rapaz, você precisa pedir desculpas ao Ethan e isso é coisa para ontem, Lim!— Como é, que é? &md
HelidaA forma como eles me olham, me deixa um pouco desconfortável, como se eles acabassem de presenciar um milagre aguardado há tempos, talvez seja mesmo o caso.— Hã, obrigada, filha. É maravilhoso tê-la no jantar! — Ela limpa a garganta antes de responder.“Por que será essa cara de espanto? Eu costumo elogiar sua comida, não elogio?”Pelo jeito não.Faço uma nota mental de elogiar mais a comida da minha mãe, porque é realmente uma delícia.Uma batida na porta me traz de volta dos meus devaneios.Levanto os olhos em direção a entrada da frente e me, pergunto quem pode ser, pois, sim, as pessoas da cidade são fofoqueiras, porém, evitam visitas inadequadas.— Aposto que é o Ethan! — Minha mãe responde minha pergunta silenciosa.Pelo modo c
Helida— Ok, vamos? — Na verdade, eu gostaria que o chão abrisse nesse momento, o que me deu para encarar o cara assim, como se meus olhos, não pudessem desgrudar do seu rosto e corpo?No mínimo, ele pensará que sou uma atirada, que está louca por um algo a mais. Preciso sair dessa encrenca o mais rápido possível.— Claro! — Sorri divertido, no entanto, parece igualmente constrangido por ter ficado me encarando também.“É Dr. Cretino, Ops! Certinho, você também me encarou, queridinho!”— Bem, o que posso dizer? Divirtam-se e cuide bem da minha menina, Ethan! — Fuzilo meu pai com meus olhos, não acredito que estou passando por isso.— Pode deixar, Jorge, prometo trazê-la para casa cedo. — Eles riem, como se alguma piada interna estivesse rolando.<
Helida— É melhor eu entrar, já está tarde. Bom, tarde para mim. — Digo quebrando o nosso contato.— Tudo bem, a gente se vê por ai, então! — Ele olha para meu rosto, porém, logo desvia o olhar.— Isso é bem provável. Afinal, somos vizinhos. — Brinco tentando voltar ao clima leve de antes.— É isso aí, por duas vezes! — Seu sorriso acolhedor está de volta. Acho que é a hora de ser um pouco mais grata a ele.— Por falar nisso, foi muito gentil da sua parte, você ter o cuidado..., isto é constrangedor! — Abaixo a cabeça, no entanto, ele segura o meu queixo, com um gesto simples, fazendo com que eu volte a olhar nos seus olhos.— Continue, por favor? — Seu olhar tem um efeito hipnótico, o escuro da íris transformando
HelidaMesmo Ethan não sendo mais “obrigado” a planejar os seus horários, porque nos acertamos e decidimos ser amigos, não o tenho visto há algum tempo, duas semanas para ser mais exata.O tão bom humor que esteve comigo nos dois primeiros dias depois que saímos, evaporou completamente, toda minha empolgação e as perspectivas de que seríamos amigos foram frustradas e comecei a me perguntar se fiz algo para ele ficar com uma impressão equivocada de mim.“Ou será que ele tenha percebeu que sou uma aposta falha para amigos? Talvez o tenha espantado com minha forma rápida de deixar claro que nada além de amizade aconteceria entre nós. Se bem que, ele falou que queria sersómeu amigo, talvez eu só o tenha o assustado com minha loucura.”E cá estou
HelidaComo combinado, ao meio-dia Ethan estava lá, como sempre pontual, lindo, em uma roupa informal estilo mochileiro de Hollywood, bermuda cargo bege, camiseta azul marinho, que aderiu ao seu corpo como uma extensão da sua pele, seguindo minha dica, um tênis preto, visivelmente confortável.Estava também, segurando uma cesta de piquenique na mão e a chave do seu carro na outra, sorri para ele na hora, na verdade um hábito que estou começando a me acostumar. Nos despedimos dos meus pais e seguimos rumo ao morro, segundo Álvaro, Romeu & Julieta, para nosso primeiro passeio de verdade como amigos.— Você sabe como preparar um piquenique! — Fiquei surpresa com tantas coisas gostosas que ele trouxe, o que agradeci internamente, depois de quase duas horas de caminhada, estou faminta.— Quando falou meio-dia, imaginei que ficaríamos
Ethan— Como todos que têm o coração partido a primeira vez, queria morrer, acordei três dias depois em um hospital, numa cidade chamada Lages, no Rio Grande do Norte, minha mãe a essa altura, já estava comigo. Fiquei internado por mais de uma semana até me reidratar, quando voltei a ser quase eu, decidi vender tudo e começar de novo, deixei tudo nas mãos dos meus pais, não queria ter que lidar com a parte burocrática nem nada, apenas fiz as malas e parti, passei um ano e meio como voluntário na África, outro viajando por países assistidos pela cruz vermelha, voltei decidido a começar a viver novamente.— Como veio parar em Bom Sossego? — Essa curiosidade toda em encanta.— Encontrei a sua antiga casa e o consultório à venda, através de uma amiga dos meus pais que conhecia os proprietários. El