Dois

Helida

— É na casa ao lado, você não percebeu, mas temos um novo vizinho. — Seu olhar vai para todas as partes, menos para os meus.

— Tem alguém morando na casa dos Albuquerque? Isso é estranho. — E uma coisa que não me é muito fácil de aceitar.

— Estranho, por que? — Será que não é óbvio?

— Filha, é natural que uma casa tão bonita seja vendida, alugada ou o que quer que seja.

— Mãe, essa casa não deveria ser passada para outra pessoa, o Caio a construiu para nós dois, era para estarmos juntos agora tomando café da manhã na cozinha, rindo um com o outro...

— Chega, Helida! Pare de se torturar! Não se lembra que você assinou um documento abrindo mão de qualquer herança, a casa estava inclusa e os pais dele podem fazer o que quiserem com ela.

— Sim, mas não pensei que seria tão rápido! Afinal, só se passou um tempo.

— Rápido? Você deve estar brincando, já se passaram cinco anos e meio, você não vê o mundo à sua volta?  — Na verdade não.

— Mãe, pare, não comece, eu não vou ouvir essa ladainha toda novamente. — Será que ela não enxerga que está me matando?

— Pois não escute! — Grita irritada. Nossa, ela nunca gritou comigo assim, seus olhos ficam marejados. — Só viva, por favor. Há pessoas que passaram por isso e continuaram a viver depois, você também pode.

 Ela fala como se fosse possível viver quando a pessoa que te mantinha viva não está mais aqui. O pior disso tudo é que, por mais distante que eu fique, que tenha tentado proteger aqueles que amo da dor, minha família sofre comigo mesmo assim.

— Mãe, tudo bem, eu vou ficar bem! — Tento controlar as emoções dentro de mim, não suporto o olhar de piedade que me diz o quão sem vida estou, sei que se olhar no espelho estarei parecendo um zumbi.

— Sabe, você bem que poderia tentar conhecer os nossos vizinhos! —Sua fala mansa de quem não quer nada, em nada me engana.

— Eles têm filhos? Se sim, é bem provável que eu conheça mesmo! — Não vou cair no seu jogo, dona Laura.

— Não, vi um casal saindo outro dia, mas não voltei a vê-los, então acho que apenas um filho, ou filha esteja morando lá. — A voz que ouvi era claramente masculina, ou é o “filho” ou namorado da moradora. Estranho minha mãe sugerir uma aproximação, quando sabe que sou péssima em fazer amigos.

— Você já o, ou a conheceu, não é mesmo? Por isso está toda estranha olhando para os lados! Te peguei dona Laura!

 Estreito os olhos e algo inusitado acontece, uma risadinha sai de mim, a primeira em anos, assustando a minha mãe, que parece ver a realização de um milagre diante dos olhos.

— Eh, a senhora pode me dar licença? Eu preciso de um banho. — Peço constrangida.

— Tudo bem, claro, filha! Espero você lá embaixo para tomarmos café juntas! — Sua voz está embargada de emoção. Um pouco desajeitada, ela me sopra um beijo e sai, essa realmente é uma manhã atípica, algo dentro de mim está diferente, ainda não sei o que e não sei se gostarei da resposta quando descobrir.

Ethan

— Mãe, já pode parar de me ligar a cada meia hora, sim? Estou aqui há uma semana e nenhum bicho papão veio pegar meu pé no meio da noite.

Ouço seu riso fácil encher a linha, gosto de ouvi-la rir.

— Além disso, se quer saber porque não atendi antes, foi por estar no banho, com o som ligado, você sabe que música me distrai!

Minha mãe já teve que aguentar tanta coisa nos últimos dois anos e meio por minha causa, que saber que agora seu riso vem fácil, alegra-me de uma forma surpreendente.

— Certo, rapazinho! Acho que você já pode atravessar a rua sem a minha supervisão!

É a minha vez de rir, ela usa a mesma frase que me disse aos doze anos de idade, quando estávamos em frente à escola de música onde fazia aulas de violino e me deixou atravessar a rua sozinho, fingi não perceber ela entrando no café ao lado, para ficar me observando pela vitrine.

Tenho a mesma sensação agora, de que estou pronto para encarar o mundo de cabeça erguida, tudo que vivi até hoje, fica para trás, voltarei a ser feliz, essa é minha meta de agora em diante.

— Uau! Agora posso ir para meu primeiro dia de trabalho no HCA, depois do voto de confiança da excelentíssima Sra. Alice Scott? Estou pronto para enfrentar um exército de feridos com traumas ortopédicos!

— Seu bobo, nada de exército, apenas faça um bom trabalho, como sempre, tente não ficar apenas lá e no consultório, viva um pouco mais, conheça sua nova cidade, faça amigos, apaixone-se por alguém interessante, quero muitos netos!

            — Certo, vou conhecer minha futura esposa no próximo fim de semana e em pouco mais de um ano estaremos tão apaixonados, que doce de leite com coco, será menos enjoativo!

            — Tá, engraçadinho, vá se vestir e lembre de se alimentar bem, não gostei nada da sua magreza.

            — Mãe, eu estava na África, como voluntário, não em uma colônia de férias! Estou perfeitamente saudável para um homem de vinte e sete anos, sou médico, posso afirmar com toda certeza!

            Não posso culpá-la por se preocupar comigo, não deve ser nada fácil para uma mãe receber um telefonema no meio da noite de alguém desconhecido, falando que seu filho desaparecido há uma semana, está em um hospital, nada bem.

            — Ok, Sr. Médico, agora me deixa ir, tenho uma cliente daquele tipo para o café da manhã!

Ela ri, é nossa piada interna, para suas clientes de classe alta, que apesar de darem carta branca para que ela, como designer de interiores, gaste o quer for preciso, ainda assim acabam dando uma certa dor de cabeça.

            —Te amo, rapazinho!

            — Também amo você, Coisa Linda! — Desligo e começo a me arrumar, hoje o dia promete, cidade nova, emprego novo e a minha mais que merecida vida nova!

Helida

Às vezes me pergunto, para que tantos sinais de trânsito em um lugar tão pequeno?

Bom Sossego é uma cidade minúscula, situada na pequena faixa litorânea do estado do Piauí, no Nordeste brasileiro. O tipo de cidade onde todo mundo se conhece. As mesmas famílias residem aqui há gerações, são raros os novos moradores, por isso a maioria dos casamentos são realizados entre amigos, como foi o meu caso, ou parentes, provendo assim a continuação das famílias, no entanto, há uma família que está prestes a deixar de existir por aqui. 

Nós os Morales!

Sou filha única de um casal de outros dois filhos únicos e não pretendo levar em frente o legado da família, não mais, então me resta alguns anos de solidão nesse lugar que há muito foi meu lar e hoje me serve como refúgio, porém, não é hora para lamentações, tenho muito o que fazer. 

Trabalho em um pequeno consultório pediátrico, na verdade o único da cidade, onde passo o meu dia e algumas vezes, boa parte da noite. 

— Bom dia, Dra. Morales! — Minha melhor amiga e fiel escudeira Gianna¹ me cumprimenta quando entro na recepção, o prédio comporta outros seis consultórios particulares, sendo dois por andar, o que fica ao lado do meu está fechado por tempo indeterminado, eu espero, não sei como reagiria ao ver alguém no consultório que deveria ser do Caio.

— Bom dia, Gianna! Quantos temos para hoje? — A pergunta típica de todas as minhas manhãs!

— Bom, até agora, dez pela manhã e outros dez à tarde, mas como sempre, deve aparecer alguém de última hora.

 Sua expressão de indignação com as pessoas que resolvem misteriosamente aparecer na sexta-feira ao fim do expediente é hilária, não tinha percebido esse detalhe até hoje.

Curiosamente também não tinha percebido tantas outras coisas sobre ela, como a cor castanho escura que ela insiste em colorir os cabelos, que deixa seus olhos ainda mais verdes e sua pele ainda mais pálida. Um contraste simples que a deixa tão bonita.

— E é claro que não preciso dizer a você o que fazer, já sabe bem! — Na verdade hoje nem eu mesma estou sabendo bem o que fazer, respiro fundo, concentrando-me no aqui e agora.

— Claaaaro, você não deixa de atender ninguém, é um exemplo de profissionalismo, deveria receber um prêmio, sabia?  — Diz enquanto revira os olhos, um hábito seu de muitos anos, que por incrível que pareça, me faz rir.

— Eu já recebo, Gia, vejo papais tranquilos e crianças saudáveis.

Ela tem sido minha assistente desde que me formei. No fundo acho que essa é sua forma de manter um olho em mim, esteve comigo durante toda minha vida e tem sido a minha ligação com o mundo exterior, como costuma dizer.

 — Mande entrar o primeiro, por favor.

— Claro! — Ela me responde como sempre, com o seu sorriso que ilumina o dia de qualquer pessoa, menos o meu.

Lembro de como gostávamos de nos divertir juntas, bons tempos aqueles. Argh! Tenho que parar com essa nostalgia, hoje realmente não estou bem, para resolver isso, nada melhor que muito trabalho, assim evito ficar pensando no que não é tão fácil de digerir.

— Com licença, bom dia, Dra. Morales! —A primeira mãe entra com sua filha de dois anos no colo.

— Bom dia! — Coloco o meu sorriso profissional e nada autêntico em ação. — Por favor, sente-se, Sra. Moura. Como está essa pequena princesa?

 Olho para os olhinhos castanhos que estão focados na mesa com diversos brinquedos multicoloridos e educativos, as crianças os adoram!

Faço uma nota mental para pedir à Gia que providencie mais, esses já podem ir para doação.

— Não muito bem. — Ela começa o relato do que tem acontecido com sua filha nas últimas vinte e quatro horas.

Ouço atentamente, minha mente, enfim entrando nos eixos, começando a consulta e mantendo minha cabeça focada no trabalho. A noite vejo como ela estará, porém, agora tranquei a porta para qualquer outro assunto que não seja crianças, viroses e outras doenças típicas da infância.

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