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Capítulo 2 – Um sinal usando jaqueta de couro

Com o fim do semestre, as férias de verão se tornam uma realidade cada vez mais próxima. Estou ansiosa, por vezes, quase me esqueço que toda a minha vida não é resumida a este campus e a um punhado de tarefas chatas. Sim, eu tenho uma vida lá fora, e é surreal imaginar que tudo parece em pausa enquanto sigo minha vida acadêmica pouco turbulenta e sem muitas surpresas.

Em alguns dias, entrarei em meu carro e não vou parar até que esteja em casa. Algumas horas de estrada serão o suficientes para fazer com que eu deixe toda a tensão da faculdade para trás por uns bons dias e finalmente possa ver os meus pais. Sinto tanta falta de tudo, sinto falta de toda aquela gente e da minha estranha cidade pequena onde tudo parecia definitivamente mais simples.

— Céus — Alessia resmungou tirando sua franja ruiva do rosto — Você não está brava comigo ainda, está?

Olho para ela com o canto do olho e arrumo minha última mala. Sexta retornamos para casa, sei que ainda tenho algum tempo para me preparar, mas sempre escolho deixar tudo perfeitamente em ordem antes de partir. Não me importo se isso soa demasiadamente controlador, um pouco de organização não faz mal a ninguém, e eu simplesmente não sei viver sem qualquer planejamento.

Não é nada reconfortante dirigir quinze quilômetros com Ally cantando Black Sabbath e pintando as unhas do pé no painel do meu carro, quero dizer, eu nem sei como ela consegue fazer isso.  Jogo a mala meio aberta debaixo da cama e chuto um pouco mais para o fundo, torcendo para que Ally não tenha deixado a janela aberta outra vez, não seria nada interessante encontrar outro esquilo debaixo das minhas cobertas.

Tivemos sérios problemas com esquilos esse semestre, especialmente porque Alessia deixou a janela aberta e saiu para a aula de estudos sociais há dois quarteirões do alojamento. Por algum infortúnio do destino, uma pequena família de roedores selvagens decidiu que fazer ninho debaixo da minha cama era algo bom, e assim roubaram uma porção de barras de cereais escondidas pelo quarto e roeram meus tênis favoritos.

— Estou brava com você até que pare com essas loucuras. — Enfio o celular dentro da bolsa e pego os livros que tenho de devolver na biblioteca antes que eu pague outra multa absurda sobre eles — Você vai ser reprovada em pelo menos três matérias e não parece se importar.

— São quatro matérias. E seu mal humor está me matando — ela b**e as unhas pretas na escrivaninha — Onde está o seu namoradinho quando precisa dele? Ops. Me esqueci, do outro lado do país.

Fuzilo a ela um olhar.

— Ele está na faculdade, estudando. Que por acaso, é como você supostamente deveria estar.

Pelo menos é o que eu quero acreditar que ele faz durante os meses que nós não nos falamos. E uma espécie de acordo, na verdade, achei que seria mais fácil para nós dois se terminássemos todo início do ano letivo e voltássemos quando estivéssemos em casa para o início do verão. Não é como se ele pudesse dirigir por todo o país para me ver por apenas um fim de semana, quando, por acaso, eu estaria preocupada demais estudando ou dormindo no pouco tempo livre que eu consigo ter.

Jesse nunca pareceu realmente satisfeito com esse tipo de coisa nos dois últimos anos, mas não o suficiente para me chutar de vez e me trocar por alguma garota inteligente peituda que faz dietas sem glúten. Muita coisa mudou desde a formatura no ensino médio, menos a minha condição honoraria de “única virgem a chegar a faculdade” ou de “única garota virgem em um raio de 6 quilômetros”. Ainda sou a Jane insegura de sempre.

Quero dizer, é o que se acontece quando está ocupada demais focando nos estudos para ter tempo para namorar como qualquer um. Jesse e eu nos aproximamos meses antes de completamos dezoito, e quando o ensino médio ficou para trás, a realidade das paixonites adolescentes nos atingiu como um trem desgovernado. Eu havia sido aceita para uma faculdade no Colorado, enquanto isso, Jesse se inscreveu para todas da Ivy League. Concordamos que seria melhor para os dois que levássemos em frente o nosso relacionamento à distância, o que pareceu fácil no início.

Mas não foi.

Não somos mais adolescentes, e não é como se tivéssemos acompanhando um ao outro enquanto crescíamos, nem todas aquelas chamadas de vídeo ou ligações durante o dia supriam a necessidade de estar junto. Às vezes sinto como um estorvo em sua vida, uma lembrança boa do passado que Jesse não está exatamente pronto para deixar para trás, e por essa razão continua seguindo com esse relacionamento em frente.

Eu o amo, mas eu não sei mais se somos apenas amigos ou um casal consistente. E quando finalmente estamos juntos nos poucos feriados e verões que conseguimos nos encontrar, nunca estamos realmente sozinhos. Tenho de dividir a atenção dele com a dos meus pais, o que nem sempre é uma tarefa fácil.

Ally b**e à porta atrás dela e eu a espero na ponta do corredor.

— Não me faça rir. Você é ingênua Jane, enquanto você se guarda para aquele imbecil, aposto que ele está saindo com todo o campus. Você sabe o efeito que ele causa nas garotas, você cresceu convivendo com isso.

Talvez ela esteja certa, mas eu não vou dar razão as suas desconfianças. É exatamente isso que ela quer, mexer com o meu psicológico mais uma vez sobre toda essa situação.

— Desculpe se o seu relacionamento não deu certo. — Reviro os olhos e cruzo os braços contra o corpo — Confio no meu namorado, Ally. Não é como se você tivesse confiado em Ross, por isso as coisas foram por água abaixo.

— Os garotos não são confiáveis, são traiçoeiros. Você confia demais nas pessoas, Jane. Jesse só é perfeito na sua mente. Cresça.

Um silêncio constrangedor toma conta do corredor enquanto caminhamos para fora do prédio. As ruas estão abarrotadas de estudantes apressados, outros descansam por um momento sentados sobre a grama, a movimentação usual do campus continua sempre a mesma, e talvez um pouco mais frenética em reta final de semestre.

Eu não sei qual foi o motivo que fez com que Alessia e Ross terminassem, era unanimidade que os dois eram a combinação perfeita, mas ela não gosta de falar sobre isso. Ally sempre diz algo sobre como as pessoas crescem e que namoros do ensino médio não são para uma vida toda. Isso não é verdade. Tento não acreditar nisso com todas as minhas forças, afinal de contas, eu tive todo esse tempo para fazer o minucioso planejamento de meu futuro.

Quando me formar, Jesse e eu vamos nos casar, e espero que isso com certeza seja para sempre. Meus pais também se conheceram no ensino médio, e bem, eles estão juntos desde então. Sempre sonhei com um casamento tão bonito quanto o deles, meio que invejo a sintonia deles, sempre me fizeram acreditar que o amor é real.

Imagino que Alessia só não quer admitir que ainda gosta de Ross. Sei muito bem que ela ainda está chateada sobre o término, mesmo que odeie transparecer os seus reais sentimentos. Alessia é casca dura, suas botas de couro e casacos jeans pesados são seus acessórios favoritos, e apesar de ter deixado para trás toda a sua fase gótica, permanece exatamente a mesma. Criar confusões e atritos sempre foi o seu forte, estou mais do que acostumada.

É quase como se ela quisesse um motivo para poder voltar pra casa.

— Você deveria falar com aquele psicólogo. Você sabe, talvez ainda haja um monte de assuntos não resolvidos. Não é tão ruim quanto parece, já consigo lidar com tudo o que aconteceu há quatro anos de uma forma muito melhor do que está lidando. Precisa deixar isso para trás.

— Apenas cale a boca.

— Sabe que eu não estou mentindo. Precisa falar sobre isso, Alessia, não pode fingir que nada aconteceu para sempre, muito menos fingir que está bem quando todo mundo vê que não está.  Eu tenho certeza que não é o que Eddie gostaria.

Ela se vira na minha direção, seus olhos borrados de preto parecem definitivamente zangados, e aponta o dedo em riste em minha cara.

— Se falar de Eddie outra vez... — Fungou ela — Não tem esse direito.

— É claro que eu tenho, ele também era meu melhor amigo. Eddie ia querer quer que estivesse bem agora, e não jogando todo o seu futuro no lixo.

— Eddie não quer nada Jane, repita comigo, ele está morto. Há quatro anos. — ela soluçou inconformada — Eu não vou me desculpar por estar vivendo. Porque sabe de uma coisa? Eu estou vivendo minha vida de verdade, enquanto isso, você está tão focada nos seus planos para o seu futuro perfeito que nem pode notar que a via não é cor de rosa. Apenas acorde.

Reviro meus olhos. Isso não é nada justo.

Aquela faca imaginária é enfiada no meu estômago outra vez. Odeio quando ela fala dessa forma. Como se as coisas estivessem erradas demais para consertar. Como se eu tivesse errada demais. Sei que é totalmente injusto o fato de que o nosso melhor amigo está morto agora e Victoria, a garota que fez que os fatos que levaram a esse acontecimento se sucedessem, está viva e ilesa. 

Ninguém poderia imaginar a minha surpresa quando vi o seu nome em uma coluna de fofocas na internet. Victoria tinha se casado com um milionário dono de uma rede de hotéis — vinte e cinco anos mais velho que ela — em São Francisco. Vicky tinha passado por uma porção muito grande de cirurgias plásticas para consertar as cicatrizes das queimaduras, mesmo tendo cara de pé, ela ainda parecia como uma super modelo.

Ally recortou aquela matéria e queimou com sálvia em um potinho de cerâmica na janela, não tenho ideia do que ela pretendia com aquilo ou de onde ela tirou a sálvia, mas eu não sei se gostei da ideia.

Eu queria ter dito alguma outra coisa mas Ally já tinha ido embora com a sua saia preta sacudindo contra o vento, me deixado sozinha de pé na grama como uma idiota. Sei que todos lidam com o luto a seu próprio modo, mas não é como se ela pudesse me julgar por ter aceitado o inevitável. Eddie não vai voltar, e não importa o que fizer, o tempo continuará passando depressa.

Se eu pudesse, eu pararia o tempo só para que pudesse ter alguns minutos a mais. Se eu pudesse, eu voltaria até aquela noite e o impediria de entrar naquele carro. Se eu pudesse, eu diria a Eddie que ficasse comigo naquela noite, faríamos uma sessão de filmes e pediríamos sua pizza favorita, mas eu não posso. Eu não posso mudar o fato de que naquela noite, a noite do acidente, Jesse era quem estava comigo, e eu nem mesmo consigo me recordar o que disse a Eddie quando o vi pela última vez.

Agora, eu me conformo. Me conformo com o fato de que Eddie morreu há poucos dias de concluir o ensino médio, tudo porque uma líder de torcida burra e inconsequente bebeu demais em uma festa estúpida e pegou o seu Audi novinho, isso quando mal era capaz de identificar o freio ou o acelerador, e acertou a Kombi azul gasta do meu melhor amigo naquela estrada.

Respiro fundo, permito que as lembranças passem por mim e as enfio em um canto escuro de minha mente.

Caminho pelo meio fio olhando para o nada, esvazio a minha mente turbulenta e tento retornar ao meu estado de calma absoluta.  Foi bem quando esbarrei naquele cara. De frente.

— Oh, me desculpe, eu...

Ergui meus olhos só para ver o cabelo loiro ajeitado de Dan Fletcher, seus olhos verdes muito claros me encarando de volta de um modo curioso. Dan e eu tínhamos duas aulas em comum, e preciso dizer que era um pouco perturbador assistir a uma aula inteira com alguém encarando a minha nuca, perturbador até demais.

— Olá — Ele soou descontraído, sorrindo com o canto dos lábios — Que coincidência agradável. Você me parece muito bem.

Se com “muito bem” ele quisesse dizer “não ter dormido a noite inteira procurando pela melhor amiga bêbada” e com olheiras tão fundas quanto o Grand Canyon, significava que talvez Dan fosse mesmo meio cego, ou só estava sendo gentil. Ou talvez não fosse só “coincidência”.

Sorrio desajeitadamente. Serio Eddie? Esse é o seu sinal divino?

— Legal — Digo com um sorriso forçado no rosto — Foi bom ver você também, Dan. Eu meio que estou atrasada, a gente se fala depois?

— Posso te acompanhar, se não se preocupar. Estou mesmo livre agora.

Droga.

— Bem, eu estava indo ao banheiro. Emergência feminina — eu menti pressionando os lábios.

— Emergência feminina — ele repetiu um tanto embaraçado — Eu não acho que posso ajudar com isso. Quero dizer, eu...

— Realmente não — esfrego as mãos nervosamente querendo me livrar de Fletcher — Estou mesmo apressada para a minha, uh, emergência. Quem sabe outra hora.

— Posso te levar a uma cafeteria nova há duas ruas daqui. Não seria bem um encontro, só um momento entre amigos. Se você quiser, é claro, posso te pegar às sete?

— Eu não acho que seria adequado. Me desculpe.

Ele me examinou por um segundo, talvez se perguntando que tipo de garota recusa um convite para o café da manhã de um garoto como ele. Digo, Dan me perseguiu por todos os dias desde fevereiro, talvez eu fosse um alvo em potencial. Eu não estava gostando disso, quero dizer, eu não sei nunca o que dizer em situações como essa. Esse é um dos momentos que eu queria Alessia por perto com o seu olhar das trevas para me salvar desse tipo de situação.

Ela está certa quando diz que não sei mesmo me livrar de meus próprios problemas porque sou boazinha demais. Em momento algum Dan se mexeu, permaneceu ali parado, me encarando como se eu fosse louca, na esperança que em qualquer momento eu fosse lhe dizer que era brincadeira. Vou te dizer uma coisa, Dan Fletcher não parecia ser um daqueles caras acostumados a ouvir um não.

Nunca soube exatamente de onde ele era, mas corria um boato de que o pai dele havia alugado um loft decorado só para que o filho não precisasse dormir em um dos alojamentos do campus, ele andava por aí exibindo um considerável Lexus a tiracolo. Não me entenda mal, não estou dizendo que possa vir a ser um desses mauricinhos bem mimados, ele certamente podia até mesmo ser um cara legal, mas a sua fama pelos corredores não era mesmo nada boa.

Eu não queria que ele entendesse as coisas sobre mim de forma errônea, acontece que eu tenho mesmo um namorado.

E quando eu estava prestes a lhe dizer qualquer coisa absurda mais uma vez para fugir de sua presença, uma coisa estranha aconteceu. O rondo de uma moto surgiu entre os prédios, e logo o veículo apareceu em meu campo de vista. Não demorou muito para que parasse do outro lado da rua, a moto bem colada junto a entrada do meu prédio.

Foi então que o reconheci. Meu coração saltou no peito.

— Jesse?

Aquele grandalhão de jaqueta de couro retirou o capacete e andou lentamente na minha direção. Seu cabelo castanho claro desgrenhado contra a brisa, os olhos cor de mel muito atentos.  Ele não pareceu muito satisfeito, movendo o seu olhar na direção de Fletcher.

— Jesse, o que você está fazendo aqui? — Pergunto tentando entender o motivo da súbita visita do meu namorado, que por acaso deveria estar do outro lado do país e não parado feito um Hell Angel à minha frente.

O pior de tudo, era que aquela moto não pertencia à Jesse, e sim na verdade a Ross McCartney, o que me deixou ainda mais confusa naquele instante.

— Quem é ele? — Dan franziu o cenho curioso.

— Eu sou o namorado dela, algum problema?  

— Absolutamente não — Fletcher ergueu as sobrancelhas muito perplexo — A gente se vê depois, Jane.

É claro que não, pensei com certo alívio, olhando-o se afastar pela calçada. Respirei fundo e relaxei os meus ombros, em seguida, me virei na direção de Jesse com uma porção de questionamentos mais do que válidos sobre a nossa pequena reunião.

— Olá para você também, querido — falei em tom jocoso, me segurando para não sacudi-lo pelos ombros — Estou muito feliz com a sua visita, mas sinceramente, preciso dizer que não estou entendendo nada.  

Ele sacudiu a cabeça como se não tivesse tempo o suficiente para aquela conversa. Me senti uma grande idiota, aquela reação não foi exatamente a que eu esperava, afinal de contas, não nos víamos há meses. Como ele simplesmente podia vir até aqui sem dizer nada?

— Agora não, Jane. Quem era aquele cara?

Revirei os olhos sem acreditar que aquela era sua única preocupação.

— Ninguém importante. Agora pode por favor responder a qualquer uma de minhas perguntas? Eu estou surtando.

— Precisamos encontrar a sua amiga Alessia.

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