Melaria, a joia élfica do continente, não era apenas uma cidade — era um organismo vivo que pulsava em sincronia com a própria essência da floresta de Lóthien. Oculta sob as copas entrelaçadas de árvores milenares e guardada por uma névoa encantada que apenas os de coração puro conseguiam atravessar, Melaria florescia em uma simbiose perfeita entre natureza e magia. Seus caminhos serpenteavam entre raízes espiraladas e flores luminescentes, e as moradas élficas, construídas nas próprias árvores vivas, pareciam crescer junto com o povo que as habitava. As pontes suspensas, feitas de galhos flexíveis e enfeitiçados, conectavam os espaços da cidade com leveza e graciosidade, como se a própria floresta as houvesse moldado com intenção. Era uma cidade silenciosa, mas não vazia — o tipo de silêncio preenchido por música sutil do vento entre as folhas, pelo farfalhar das asas de fadas e pelos cantos dos druidas em harmonia com a terra. Os elfos de Melaria eram guardiões do equilíbrio natura
Acordou sobressaltada. O despertador piscava inutilmente no criado-mudo, mudo como sua própria voz, quando percebeu que já passava das oito. O coração acelerou como se fosse sair do peito, e o primeiro pensamento foi uma enxurrada de palavrões abafados. O tempo estava contra ela.Pulou da cama, vestiu a primeira roupa que encontrou no cabide — uma camisa amassada e uma saia que não combinava com nada — e desceu as escadas do prédio tropeçando nos próprios sapatos. O céu estava fechado, carregado de nuvens densas como chumbo. Nem teve tempo de pegar o guarda-chuva. Quando colocou os pés na calçada, a tempestade caiu com uma fúria quase pessoal.As gotas batiam no rosto como pequenos tapas. O ônibus atrasou, o trânsito estava um caos e, a cada minuto, seu estômago reclamava pela ausência de café da manhã. Chegou à empresa encharcada dos cabelos às meias, sentindo a roupa colada ao corpo, a maquiagem derretida e os olhares curiosos dos colegas de trabalho que disfarçavam mal os sorrisos
A escuridão foi se afastando aos poucos, dissolvendo-se em ondas suaves de calor e luz tênue. Marina sentiu-se flutuar num espaço sem forma, como se estivesse sendo embalada por braços invisíveis. Não havia dor. Nem memória. Apenas um estranho vazio sendo preenchido por sensações novas: o toque de algo macio, um som agudo como o assobio do vento… e depois, o som mais intenso que já ouvira: o próprio choro. Era o seu primeiro respiro. Era o início. O mundo explodiu ao seu redor em cores suaves e sons abafados. As pálpebras minúsculas se abriram com esforço, revelando olhos ainda úmidos, perdidos em um brilho difuso. Tudo parecia tremular, como se o mundo estivesse sendo visto através de uma fina camada d’água. A claridade machucava, mas logo se tornava familiar. Sentia o corpo pequeno, frágil e molhado, os pulmões lutando por ar, as mãos se movendo involuntariamente. Foi quando sentiu algo a envolvendo com firmeza, mas também com carinho. Um par de mãos fortes, porém delicadas, a
Três anos haviam se passado desde o dia em que abri os olhos neste novo mundo — um mundo de céu aberto, ventos cantantes e criaturas magníficas de asas resplandecentes. Já não era uma recém-nascida confusa envolta em mantos e cantos estranhos. Agora, com três anos, eu havia me adaptado à vida entre as harpias. Aprender a falar a língua delas foi um desafio no começo. Suas palavras tinham sons sibilantes, agudos e notas guturais que pareciam imitar o próprio vento. Mas, como tudo que uma criança determinada deseja entender, aos poucos, cada som se tornava familiar, cada sílaba era domada com o tempo e a repetição. Muitas noites, eu adormecia com a boca ensaiando palavras novas, e nas manhãs seguintes, corria para testá-las com minha mãe. O nome dela era Jenevive Norton. Só de ouvi-lo, meu peito se aquecia. Jenevive era tudo o que eu admirava: forte como as raízes que sustentavam as plataformas da nossa cidade, e doce como o néctar das flores que pendiam dos galhos mais altos. Ela me
A dualidade entre as minhas memórias humanas e esta nova existência como harpia é um sussurro constante, às vezes doce, outras vezes brutal. É uma batalha silenciosa travada em mim desde os primeiros suspiros da infância, quando eu deveria apenas descobrir o mundo com a inocência de quem nunca viu além do presente. Mas eu me lembrava. Não com clareza, mas com a profundidade do que é sentido no peito. Recordações surgiam como relâmpagos em dias calmos — uma risada ao longe, um cheiro que não existia naquele mundo, o nome de alguém que eu nunca conhecera aqui. Fragmentos de uma vida anterior, humana, complexa. Fragmentos de mim mesma. Essas memórias humanas, tão intrusas e familiares ao mesmo tempo, me acompanharam enquanto eu crescia entre penhascos e nuvens. Eram como sombras projetadas na parede do novo mundo ao meu redor: um toque de saudade quando tudo parecia novo demais. Eu me via dividida, como se metade da minha alma pertencesse ao céu e a outra metade ao chão de uma terra q
Treze anos se passaram desde que minhas asas cortaram o céu pela primeira vez, desde que o mundo mágico das harpias se tornou meu lar. Hoje, aos dezesseis, atingi um marco que não é apenas simbólico — é visceral. O baile de debutante não celebra apenas a juventude, mas o despertar da identidade, da coragem e do futuro. E pela primeira vez, senti que deixava de ser a menina que sonhava com um passado esquecido, para me tornar uma jovem harpia com sede de tudo o que está por vir. A noite caiu serena sobre a montanha ancestral. As estrelas refletiam-se nas rochas polidas como espelhos celestiais, e lanternas flutuantes enchiam o céu com um brilho cálido, como se os próprios ancestrais estivessem nos observando, silenciosos e orgulhosos. O perfume de flores raras se misturava ao som de risos, música e asas que cortavam o ar suavemente. Era como se a cidade cantasse em uníssono, uma sinfonia de tradição e promessa. Estávamos todas adornadas em trajes sagrados, cada detalhe refletindo nos
Após quatro anos de árdua dedicação, suor e persistência, me tornei uma jovem harpia não apenas sábia, mas também habilidosa nas artes mágicas e na guerra. Quando olho para trás, vejo o quanto mudei — não apenas nas técnicas que dominei ou nos feitiços que hoje moldo com facilidade, mas na forma como enxergo a mim mesma e ao mundo ao meu redor. A magia do vento, que um dia me parecia indomável e imprevisível, tornou-se uma extensão natural do meu ser. Era como se as correntes de ar respondessem aos meus pensamentos antes mesmo de eu conjurar uma palavra. Essa sincronia impressionava meus professores, deixava meus colegas boquiabertos e, acima de tudo, fazia meu pai, um líder respeitado e treinado na arte da guerra, erguer os olhos com orgulho. Com o tempo, minha habilidade de manipular o vento deixou de ser apenas uma ferramenta. Ela se tornou minha linguagem, minha dança, meu vínculo com a natureza viva. Com um gesto, podia dobrar a direção de uma rajada. Com uma palavra, domava te
A chegada da carta foi como um sussurro de destino, um fio invisível puxando-nos em direção ao desconhecido. Era uma manhã comum, o sol ainda lutava para se erguer por entre as nuvens pesadas do início da primavera. Mas a normalidade foi quebrada pelo bater de asas suaves — um som quase mágico, que fez com que todos ao redor levantassem os olhos em uníssono. O pássaro, de penas azuis iridescentes e olhos de um dourado vívido, pousou com uma graça quase ensaiada diante de meu pai, no parapeito da varanda. Carregava presa às patas uma carta selada com cera vermelha, marcada com o brasão real de Heits: um falcão envolto por espadas cruzadas e uma estrela prateada. O silêncio reinou enquanto meu pai cuidadosamente removia o lacre. Eu sentia meu coração acelerar, um misto de expectativa e reverência percorrendo meu corpo. O cheiro do papel envelhecido misturado ao perfume das penas do pássaro criava uma aura misteriosa ao redor daquele momento. Mesmo antes de ler, sabíamos: aquilo não er