A escuridão foi se afastando aos poucos, dissolvendo-se em ondas suaves de calor e luz tênue. Marina sentiu-se flutuar num espaço sem forma, como se estivesse sendo embalada por braços invisíveis. Não havia dor. Nem memória. Apenas um estranho vazio sendo preenchido por sensações novas: o toque de algo macio, um som agudo como o assobio do vento… e depois, o som mais intenso que já ouvira: o próprio choro.
Era o seu primeiro respiro. Era o início. O mundo explodiu ao seu redor em cores suaves e sons abafados. As pálpebras minúsculas se abriram com esforço, revelando olhos ainda úmidos, perdidos em um brilho difuso. Tudo parecia tremular, como se o mundo estivesse sendo visto através de uma fina camada d’água. A claridade machucava, mas logo se tornava familiar. Sentia o corpo pequeno, frágil e molhado, os pulmões lutando por ar, as mãos se movendo involuntariamente. Foi quando sentiu algo a envolvendo com firmeza, mas também com carinho. Um par de mãos fortes, porém delicadas, a ergueu. Um rosto apareceu, borrado pela distância e pelo olhar ainda imaturo: era uma mulher, ou algo que lembrava uma mulher, com cabelos dourados que pareciam refletir a própria luz ao redor. Sua pele era bronzeada e seus olhos, penetrantes, como os de uma ave de rapina. Atrás dela, algo se mexia — algo que se estendia em grandes arcos para os lados. Asas. Ela tinha asas. Marina ainda não sabia dar nome àquilo. Mas as asas eram parte de sua primeira imagem do mundo. E elas pareciam belas. — Ela está bem — murmurou a mulher, com a voz baixa, quase reverente. — Uma garotinha forte… Outra figura se aproximou. Os olhos verdes dessa segunda mulher brilharam quando viu Marina. Ela esticou uma mão, tocando suavemente o rostinho enrugado da recém-nascida, que ainda chorava, embora mais fraco agora. — Parabéns, pequena — sussurrou com um sorriso largo. — Você chegou… A terceira figura era masculina, e sua presença parecia sólida, protetora. Ele tinha cabelos negros e pele dourada, e suas asas eram negras como uma noite sem luar. Estava em silêncio, apenas observando com os braços cruzados, mas seus olhos transmitiam paz. Era como se dissesse, sem palavras: “você está segura agora”. Marina não compreendia o que se passava. As palavras, o som, o ambiente — tudo era novo, estranho. Mas seu instinto — essa centelha primordial que nascia com ela — sentia segurança ali. O calor dos braços que a seguravam. O pano morno e perfumado que agora a envolvia. O som ritmado do coração da mulher contra seu pequeno corpo. — Ela vai ter o que merece — disse a primeira mulher. — Liberdade. Céu. O mundo que nenhum de nós teve ao nascer. A mulher de olhos verdes assentiu. — Já podemos levá-la. O ninho está pronto. Hoje é um dia abençoado. Elas começaram a andar, e Marina foi embalada com suavidade. A luz ao redor era quente, como o entardecer tocando folhas secas. A construção em que estavam parecia feita de pedras claras, raízes e galhos entrelaçados. Havia odores que lembravam flores e terra úmida. O som do vento zunia lá fora, mas ali dentro tudo era calmo, quase sagrado. Assim que saíram da câmara, Marina viu — ou sentiu — mais daquelas criaturas aladas. Harpias. Mas ela ainda não sabia que esse era o nome. Para ela, tudo ainda era forma e luz. Asas que se abriam majestosamente, penas em tons de cobre, bronze, marfim. Mulheres com feições afiadas e belos olhos selvagens. Alguns homens. Crianças que passavam voando por janelas largas, rindo e brincando com penas coloridas. Marina sentia o mundo em movimento ao redor, um mundo que não conhecia concreto, poluição ou prédios. Era um vilarejo aéreo, suspenso entre penhascos altíssimos, onde os ventos sopravam com liberdade e tudo era conectado por plataformas de madeira viva e redes entrelaçadas. Chegaram até um espaço amplo, onde havia um grande ninho feito de folhas secas e penas. A mulher de cabelos dourados se ajoelhou com cuidado, deitou Marina ali e a cobriu com um tecido tão leve quanto o vento. A pequena sentiu o contato do ninho abaixo de si. Era quente, confortável. Seu choro cessou por completo. As três figuras permaneceram ali por um tempo. O homem, agora ajoelhado à frente do ninho, disse com voz profunda: — O nome dela será Kaelara. Aquela que renasce do silêncio. A mulher de olhos verdes sorriu. — Ela vai voar mais alto do que todas nós. A mulher dourada inclinou-se e sussurrou perto do rosto da bebê: — Descanse agora, pequena Kaelara. Quando abrir os olhos de novo, o céu será seu. Asas cobriram o ninho com delicadeza, como uma cúpula protetora. Marina, agora Kaelara, sentiu o sono chegar. Era um sono novo, sem memórias. Mas lá no fundo, numa camada quase imperceptível da alma, havia uma lembrança… tênue, frágil… de uma mulher caminhando na chuva… de uma xícara de café esquecida na mesa… de uma voz furiosa por trás de uma porta de escritório. Mas aquilo não importava mais. Kaelara adormeceu no calor do ninho, embalada pela canção baixa que a mulher dourada murmurava. Um canto antigo, da linhagem das harpias, destinado apenas aos que renascem. E lá fora, o vento anunciava: uma nova vida começava.Três anos haviam se passado desde o dia em que abri os olhos neste novo mundo — um mundo de céu aberto, ventos cantantes e criaturas magníficas de asas resplandecentes. Já não era uma recém-nascida confusa envolta em mantos e cantos estranhos. Agora, com três anos, eu havia me adaptado à vida entre as harpias. Aprender a falar a língua delas foi um desafio no começo. Suas palavras tinham sons sibilantes, agudos e notas guturais que pareciam imitar o próprio vento. Mas, como tudo que uma criança determinada deseja entender, aos poucos, cada som se tornava familiar, cada sílaba era domada com o tempo e a repetição. Muitas noites, eu adormecia com a boca ensaiando palavras novas, e nas manhãs seguintes, corria para testá-las com minha mãe. O nome dela era Jenevive Norton. Só de ouvi-lo, meu peito se aquecia. Jenevive era tudo o que eu admirava: forte como as raízes que sustentavam as plataformas da nossa cidade, e doce como o néctar das flores que pendiam dos galhos mais altos. Ela me
A dualidade entre as minhas memórias humanas e esta nova existência como harpia é um sussurro constante, às vezes doce, outras vezes brutal. É uma batalha silenciosa travada em mim desde os primeiros suspiros da infância, quando eu deveria apenas descobrir o mundo com a inocência de quem nunca viu além do presente. Mas eu me lembrava. Não com clareza, mas com a profundidade do que é sentido no peito. Recordações surgiam como relâmpagos em dias calmos — uma risada ao longe, um cheiro que não existia naquele mundo, o nome de alguém que eu nunca conhecera aqui. Fragmentos de uma vida anterior, humana, complexa. Fragmentos de mim mesma. Essas memórias humanas, tão intrusas e familiares ao mesmo tempo, me acompanharam enquanto eu crescia entre penhascos e nuvens. Eram como sombras projetadas na parede do novo mundo ao meu redor: um toque de saudade quando tudo parecia novo demais. Eu me via dividida, como se metade da minha alma pertencesse ao céu e a outra metade ao chão de uma terra q
Treze anos se passaram desde que minhas asas cortaram o céu pela primeira vez, desde que o mundo mágico das harpias se tornou meu lar. Hoje, aos dezesseis, atingi um marco que não é apenas simbólico — é visceral. O baile de debutante não celebra apenas a juventude, mas o despertar da identidade, da coragem e do futuro. E pela primeira vez, senti que deixava de ser a menina que sonhava com um passado esquecido, para me tornar uma jovem harpia com sede de tudo o que está por vir. A noite caiu serena sobre a montanha ancestral. As estrelas refletiam-se nas rochas polidas como espelhos celestiais, e lanternas flutuantes enchiam o céu com um brilho cálido, como se os próprios ancestrais estivessem nos observando, silenciosos e orgulhosos. O perfume de flores raras se misturava ao som de risos, música e asas que cortavam o ar suavemente. Era como se a cidade cantasse em uníssono, uma sinfonia de tradição e promessa. Estávamos todas adornadas em trajes sagrados, cada detalhe refletindo nos
Após quatro anos de árdua dedicação, suor e persistência, me tornei uma jovem harpia não apenas sábia, mas também habilidosa nas artes mágicas e na guerra. Quando olho para trás, vejo o quanto mudei — não apenas nas técnicas que dominei ou nos feitiços que hoje moldo com facilidade, mas na forma como enxergo a mim mesma e ao mundo ao meu redor. A magia do vento, que um dia me parecia indomável e imprevisível, tornou-se uma extensão natural do meu ser. Era como se as correntes de ar respondessem aos meus pensamentos antes mesmo de eu conjurar uma palavra. Essa sincronia impressionava meus professores, deixava meus colegas boquiabertos e, acima de tudo, fazia meu pai, um líder respeitado e treinado na arte da guerra, erguer os olhos com orgulho. Com o tempo, minha habilidade de manipular o vento deixou de ser apenas uma ferramenta. Ela se tornou minha linguagem, minha dança, meu vínculo com a natureza viva. Com um gesto, podia dobrar a direção de uma rajada. Com uma palavra, domava te
A chegada da carta foi como um sussurro de destino, um fio invisível puxando-nos em direção ao desconhecido. Era uma manhã comum, o sol ainda lutava para se erguer por entre as nuvens pesadas do início da primavera. Mas a normalidade foi quebrada pelo bater de asas suaves — um som quase mágico, que fez com que todos ao redor levantassem os olhos em uníssono. O pássaro, de penas azuis iridescentes e olhos de um dourado vívido, pousou com uma graça quase ensaiada diante de meu pai, no parapeito da varanda. Carregava presa às patas uma carta selada com cera vermelha, marcada com o brasão real de Heits: um falcão envolto por espadas cruzadas e uma estrela prateada. O silêncio reinou enquanto meu pai cuidadosamente removia o lacre. Eu sentia meu coração acelerar, um misto de expectativa e reverência percorrendo meu corpo. O cheiro do papel envelhecido misturado ao perfume das penas do pássaro criava uma aura misteriosa ao redor daquele momento. Mesmo antes de ler, sabíamos: aquilo não er
A manhã se anunciava tranquila, com o cheiro da terra molhada ainda suspenso no ar após a fina garoa da madrugada. Depois de concluir as tarefas com os ajudantes da casa e verificar as anotações de nossos estudos mágicos, decidi aproveitar o sol que surgia entre as nuvens para ir ao jardim com Annya. Ela sempre preferia as primeiras horas do dia para cuidar das plantas. Dizia que era quando elas estavam mais receptivas à magia e às palavras. Caminhávamos entre os canteiros floridos, os pés tocando a relva macia enquanto o vento gentil balançava os galhos das amoreiras. – Esta flor amarela aqui… – disse ela, com aquele brilho nos olhos que surgia sempre que falava de ervas medicinais. – Chama-se Sulyia. Cresce apenas nas encostas voltadas para o norte e só floresce sob a luz da lua cheia. É ótima para tratar febres, e quando combinada com folha de Tenebril, pode até desacelerar venenos… Ela foi interrompida subitamente por um som. Não, não apenas um som — um grito agudo, metálico
Ele era negro como a noite, com linhas prateadas esculpidas em sua superfície, formando runas que pareciam dançar suavemente, pulsando com a mesma energia do feixe. Tinha pelo menos vinte metros de altura, cravado no chão como uma lança divina. – Parece a Bifrost… – murmurei, mais para mim mesma do que para os outros. Mas era diferente. A Bifrost era a ponte das divindades, um elo entre mundos. Aquilo parecia uma chave. Uma fenda. Um aviso Minha primeira reação foi me aproximar, quase em transe. Mas a mão de meu pai me deteve no ombro. – Espere – disse ele, com a voz baixa, mas firme. Ele desceu lentamente até o chão, os pés tocando a grama queimada ao redor do obelisco. Uma fumaça branca e tênue ainda se erguia das bordas da cratera onde a estrutura se fixara. As runas prateadas piscaram uma última vez… e se apagaram. Então algo aconteceu. Uma figura surgiu de dentro da névoa, emergindo do lado oposto do obelisco. Era uma mulher. Ou, ao menos, parecia ser. Seus ca
Assim que Selyra desapareceu, tudo ao seu redor se desfez como névoa ao vento. O obelisco, as luzes, os vestígios de sua presença — tudo sumiu, como se jamais tivesse existido. Por um breve instante, pensei que pudesse ter sido apenas uma miragem. Mas o colar frio em minha mão dizia o contrário. — Esdras! — bradou Altair com urgência, já assumindo o comando da situação — Sim, senhor! — respondeu ele, de prontidão. — Você e Uric ficarão de guarda aqui. O restante do esquadrão, espalhem-se pela floresta. Fiquem atentos a qualquer sinal anômalo. Não é o nosso ambiente natural, então redobrem o cuidado — disse ele, a voz firme como aço. —Kaelara, você vem comigo. — Sim, senhor… — respondi, mesmo desejando permanecer. Algo dentro de mim queria continuar ali, tentar entender o que havia presenciado. Mas desobedecer meu pai não era uma opção. Erguemo-nos aos céus, cortando o vento com rapidez em direção à cidade. A Torre dos Magos logo surgiu no horizonte, imponente e antiga, com s