Capítulo um

Que eu seja todo dia como um girassol:

De costas pro escuro e de frente pra luz

Priscila Alcântara — Girassol

Dirigindo o carro por aquela estrada imensa, senti meu coração se quebrando. Achava que ele nunca mais poderia ficar inteiro novamente.  Ele sangrava, e aquilo doía; ardia. A sensação que eu tinha é de que ele fora partido ao meio, e as duas metades nunca mais se juntariam; e isso me deixava indignada, porque antes de tudo começar, sempre me senti inteira.

Eu sabia, eu conseguia compreender que as mágoas e cicatrizes eram necessárias para que eu pudesse crescer e ser uma pessoa melhor.

Mas Deus... Por que eu?

Será que tudo o que passamos em nossa vida tem realmente um propósito? Será que cada situação faz com que a gente cresça e aprenda? Ou será que elas são apenas para nos machucar e nos mostrar o quão tudo pode ser difícil? 

Essas perguntas invadiam a minha mente e me deixavam sem chão. As lágrimas eram doloridas demais, mas o que mais doía mesmo era perceber que o amor havia acabado há tempo, e eu não queria dizer adeus. Na verdade, eu não queria acreditar que Adam não era mais a mesma pessoa de antes, mesmo que o que aconteceu há algumas horas e em outras várias vezes me provasse o contrário; jogasse na minha cara que sim. Ele não era o mesmo homem com o qual eu me casara; e meu casamento... Bom..., praticamente não existia mais.

 Ele mudara, não era mais aquele cara dócil e gentil que me amava e amava seus filhos; mas mesmo assim, ainda era difícil de aceitar o quanto ele mudou, mesmo com as ameaças...

Qual era o meu problema? Por que eu me sujeitava a isso? Será que era porque eu acreditei a vida inteira que casamento é para a vida toda? Afinal, eu jurara diante de Deus que estaria com ele em todos os momentos. Será que é porque eu aprendera que quando algo se “quebra”, devemos consertar, e não jogar fora...? Mas, agora, eu me perguntava com frequência se isso tinha conserto...

Parece que a cada dia que passava; a cada agressão que eu sofria; a cada palavra cruel falada por ele..., eu tinha mais a certeza de que não.

Às vezes eu ficava pensando: se eu tivesse percebido os pequenos sinais; se eu tivesse percebido antes, mesmo que ele demonstrasse que me amava, às vezes dava alguns indícios de ser possessivo e egoísta, talvez eu pudesse ter feito alguma coisa, para não deixar que as coisas acabassem nesse ponto.

Porém, por mais que eu pensasse, eu não conseguia entender. Tínhamos pequenas brigas; algumas crises de ciúmes por parte dele, mas não conseguia encontrar o ponto de onde começou tudo isso; como o homem que namorara e com quem me casara e que era meu companheiro há mais de uma década chegara a se tornar o monstro de hoje...

Ok! Vamos lá...

Calma... Respira, inspira... Tenta livrar a sua mente, tenta esquecer. Talvez não consiga, mas tem que arriscar. Eu sei que tem gente que passa na nossa vida e deixa marcas; algumas tão grandes e dolorosas, a ponto de que não sabemos se algum dia elas irão se curar. Sabe aquelas cicatrizes tão doloridas, que só de encostar, arde? Essas são as minhas...

E esses são meus pensamentos no momento... De como a vida me detestava e me fazia sofrer.

Tudo bem, eu sabia que a vida não era sempre só felicidade; mas viver desse jeito me desesperava. Viver com medo, viver escolhendo palavras, pisando em ovos; era horrível! Só de pensar nisso, me apavorava, e as lágrimas escorriam pelo meu rosto com mais força, deixando minha visão embaçada.

Será que não seria melhor voltar no tempo e nunca o ter conhecido? Não seria melhor voltar no tempo e tê-lo apagado do meu passado?

Não. Não, definitivamente não. Sem ele eu não teria meus filhos, minhas preciosidades. Era muito melhor aguentar tudo isso e tê-los do que não os ter.

A estrada continuava majestosa à minha frente. Eu tentava limpar meus olhos, a fim de enxergá-la; mas era quase impossível, já que eu só conseguia chorar e pensar em como tudo fora e não era mais.

Era triste se dar conta de que, depois de tantos anos de casada, tinha que aceitar o fato de que meu marido, o homem com quem eu estava casada há treze anos, era meu agressor. É que mesmo com pensamentos de que a culpa fosse minha, tinha consciência de que ele fazia porque queria e gostava.

As minhas memórias felizes com Adam quase não existiam mais.

As únicas memórias felizes que eu tinha eram dos meus filhos: Pedro, de treze anos; Jonas, de oito anos; e a minha pequena e levada Beatriz, de quatro aninhos. O nascimento de cada um fora tão mágico! Lembrava-me das primeiras palavras; dos primeiros passos, e tudo era regado de amor. Eram as memórias dos meus filhos que eu levaria até o fim da vida. Não importava o passar do tempo, seriam eternamente felizes e me fariam sorrir, até nos momentos mais obscuros e difíceis.

Pisei fundo no acelerador.

Eu sabia que, depois de três filhos, deixara muito a desejar. Eu não tinha mais o mesmo corpo. Minhas coxas estavam grossas, minha cintura não era a mesma de antes, meus seios não eram mais os mesmos. Eu tinha olheiras, rugas de expressão; de preocupação, e meu semblante era triste. Eu sabia que não atraía mais meu marido como antes, mas isso não era desculpa para ele fazer o que fazia constantemente.

Eu tentara mudar, perder o peso das três gravidezes, tentara me arrumar mais, parecer mais como a antiga Melanie; mas sempre quando alguma autoestima aparecia, Adam acabava com ela ao me socar. Eu não sabia mais o que fazer, eu não podia sair de casa sem meus filhos. Ele sempre me ameaçava, ora que me mataria, ora que mataria nossos filhos ou minha mãe, ou então que tiraria eles de mim e eu nunca mais os veria.

Isso doía. Machucava-me. Eu não suportaria viver sem eles, eles eram tudo o que eu tinha agora. A única família que me restara, então, por eles eu aturava cada soco; cada tapa; cada agressão, ao mesmo tempo em que vivia com medo de ele fazer o mesmo com eles: agredi-los também. Por isso tentava deixá-los o máximo de tempo possível na casa da minha mãe, mesmo sabendo que quando eles não estavam, Adam aproveitava mais, e era mais agressivo comigo, pois sabia que não tinha que evitar os meus gritos de dor; meus choros e os barulhos de ele me machucando.

Remexi-me no banco. Estava difícil de dirigir. Minha visão estava embaçada, olhos inchados e vermelhos, e minhas costelas doíam. Certamente ele havia quebrado alguma, dessa vez.

Estiquei o braço, abri o porta-luvas, tirei de lá um saquinho de lenços umedecidos, mexi no retrovisor e limpei meu rosto. Ao menos ninguém se assustaria se me olhasse na face. Era o único lugar do meu corpo que ele não batia. Claro, para não deixar marcas visíveis para os outros, porque era o único lugar que eu não conseguia esconder.

Escutei um barulho e acabei perdendo a direção do carro. Graças a Deus estava tarde e quase não havia carros na estrada. Saí da estrada e parei no acostamento.

— Mas, que droga! — Desci do carro e olhei o pneu do meu lado.

Praguejei quando percebi que o motivo de eu ter perdido a direção era que o pneu do carro havia estourado. Chutei o pneu com força. Em seguida, passei as mãos no cabelo, em um gesto nervoso, e chorei mais ainda. Ajoelhei-me do lado do carro e gritei de raiva, deixando toda aquela dor e angústia saírem a cada grito que eu dava. E o que restava era isso: uma mágoa profunda; uma mágoa por eu ser fraca e não conseguir dizer “CHEGA”.

Depois de alguns minutos ali, ajoelhada no meio do nada, me levantei, passei as mãos pelo rosto, respirei fundo e fui até o porta-malas. Peguei tudo o que precisava ali: o macaco, chave de roda e o pneu. Tentei tirar os parafusos, mas pareciam chumbados. Por mais força que eu colocasse, eles não se moviam um milímetro sequer.

Sentei do lado do carro com as pernas cruzadas, desistindo de trocar aquele pneu estúpido. Bufei com raiva. Não havia um carro sequer passando por ali, para me ajudar.

Peguei meu celular, no bolso da calça, e olhei para o objeto.

— Ótimo, descarregado! 

Eu me levantei, entrei no carro, joguei o celular no banco do carona e liguei o rádio. A música era triste, e me fazia pensar na vida. O que eu poderia fazer para sair dessa situação? Olhei para o céu, enquanto minha mente vagava por um lugar que eu detestava ir. Não sei por quanto tempo fiquei assim, sentada. Perdi-me nas horas.

Balancei a cabeça em negativa, saindo daquele transe. Saí do carro e deitei no capô.

Eu não queria mais chorar, não aguentava mais.

Respirei fundo e encarei o céu. Estava lindo e estrelado, sem nuvens. Permiti-me, por um segundo, fingir que minha vida não existia. Coloquei os braços embaixo da cabeça e comecei a cantar a canção que tocava no rádio:

— “Chances lost are hopes torn up”. 

Eu cantarolava baixinho, e não tinha percebido que alguém estava me olhando.

— Olá. Precisa de ajuda, moça? — Dei um pulo do capô.

— Que susto! Não sabia que não se chega assim em uma pessoa distraída?

— Desculpe, achei que tivesse ouvido eu me aproximar. — Ele sorriu. — Canta muito bem.

— Obrigada — disse, de maneira envergonhada, passando a mão pelo pescoço. Se tivesse mais luzes por ali, ele com certeza iria ver minhas bochechas vermelhas. — Meu pneu furou. Pode me ajudar a trocar? Eu não consegui, parece que os parafusos estão chumbados na roda.

— Claro que ajudo. — Ele sorriu novamente.

Mesmo quase sem luz, percebi que ele tinha um sorriso bonito. Ele era bonito. Tinha cabelos escuros e ombros largos. Mesmo com a pouca luz, deu para perceber.

Ele foi até seu carro, pegou uma lanterna maior e voltou. Olhou em busca do pneu furado. Entregou-me a lanterna.

— Segura a lanterna para mim, iluminando o pneu, por favor.

— Claro.

Virei a lanterna e o iluminei. Ele já estava ajoelhado na frente do pneu estourado. Percebi que usava uniforme hospitalar: camisa e calça azuis. Era maior do que eu havia percebido no escuro, e seus cabelos eram em um tom de loiro escuro. Estavam bem cortados e penteados. O contorno do seu rosto era oval, seu nariz era fino e tinha barba por fazer.

— Faz muito tempo que está aqui parada? — perguntou, olhando para mim.

— Um pouco. — Os seus olhos pareciam verdes, não conseguia ver com clareza pela falta de luz.

— Deveria ter ficado dentro do carro, trancada. É perigoso. — Sua boca era fina e vermelha.

— Sim, eu sei.

— Então por que estava em cima do capô?

A verdade era que tanto importava se algo acontecesse comigo. Eu não fazia questão alguma de ficar viva, embora meus pequenos precisassem de mim. Eu estava farta de apanhar todos os dias.

— Já olhou para o céu hoje? — questionei, apontando para cima.

— Na verdade, sim. Eu parei a alguns quilômetros atrás e o olhei por alguns minutos. As estrelas estão brilhantes hoje.

— Sim — disse, olhando novamente para o céu.

Parecia que aqueles malditos parafusos estavam de graça com a minha cara, pois o rapaz não fez esforço algum para tirá-los. Seus braços eram fortes.

 Observei-o a trabalhar em silêncio, e em alguns minutos depois ele se levantou. Entreguei-lhe a lanterna.

— Pronto! Nem estava tão apertado assim.

— Claro que estava, e muito.

— Não, eu não quis...

— Brincadeira, eu sei que sou mole. Muito obrigada, Senhor — falei, colocando uma mecha de cabelo atrás da orelha.

— Oh, não; “Senhor” não, por favor. Não sou tão velho assim. Me chamo William, mas pode me chamar de Will.

— Prazer, Will. — Sorri. — Me chamo Melanie, mas pode me chamar de Mel.

— O prazer é meu.

Ele pegou minha mão e a beijou. Era estranho um homem ser tão simpático assim comigo, eu não estava acostumada... Se bem que o meu modelo de homem não tinha comparação alguma com ele.

— Dirija com cuidado para casa, Mel. — Ele falou enquanto colocava o pneu furado dentro do meu porta-malas.

— Sim, você também. Muito obrigada pela ajuda.

— Não tem de quê. 

Eu não conseguia mais ver seu rosto, o que era uma pena.

Entrei no carro e dei partida. Ele fez o mesmo. Por algum tempo andamos um ao lado do outro; depois, numa bifurcação, eu virei à esquerda, e ele seguiu reto na estrada.

Para onde eu iria? Não sabia, só sabia que eu não voltaria para casa. Ele estava lá, bêbado, fedendo feito um gambá. Eu tinha que ser mais rápida para evitar que ele me batesse... Mas alguns hematomas não eram nada demais para quem tinha medo de morrer de pancadas.

Dirigi até o dia amanhecer, sem rumo. Apenas deixei a estrada me levar, e quando achei apropriado, fui para a casa da minha mãe. Eu sabia que era cedo e que ela ainda estava dormindo, mas assim que ela abriu a porta de casa, com cara de sono, eu a abracei apertado.

— Posso passar umas horas aqui com a Senhora?

— Claro, querida. Aconteceu algo? — Balancei a cabeça em negativa. — Entre, vou fazer um café.

A primeira coisa que fiz foi subir até o quarto das crianças. Eu os vi dormindo. Meus três pequenos tesouros. Eu faria de tudo para mantê-los em segurança, nem que eu tivesse que sofrer por eles.

— Mamãe?

— Oi, princesa.

— Deita aqui comigo.

Ela bateu a pequena mãozinha na cama.

Fui até ela e deitei juntinho. A menina passou a mãozinha pequena em meu rosto, me beijou e ficou me fazendo carinho, até que novamente ela fechasse seus olhinhos e adormecesse. Eu respirei fundo e tirei os cabelos loiros de seu rostinho. Nesse momento me senti a mulher mais feliz do mundo. Apesar de tudo, eu era feliz por causa deles, e por eles eu faria tudo.

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