Capítulo seis

Coração de pedra

Alma cheia de orgulho

Caminho sem direção

Casa abandonada, mundo tão vazio

O que falta em nós é o amor.

Mauro Henrique - Aonde Está Deus?

Duas semanas se passou desde que Monica chegou. E o que eu poderia dizer? Ela era louca, piradinha; mas as melhores pessoas são assim, não é mesmo?

Essa foi de longe a melhor semana que passei no último ano. Não só porque Adam não me tocou mais, mas porque eu ria vinte e quatro horas por dia. Monica tinha esse astral maravilhoso que contagiava quem estivesse por perto. Ela é um espírito livre, era assim que eu gostava de imaginá-la.

Hoje, sexta-feira, iria retirar o gesso do meu braço. Tiraria uma chapa e veria se seria preciso pôr novamente um gesso; mas com a “Dona Mandona” em casa, eu quase não me esforcei. E eu sinto que eu tirarei isso e não colocarei mais. Enfim terei a minha liberdade de volta.

— Vamos? — Monica disse, passando as mãos pela chave no móvel de entrada.

Sorri e dei um pulo do sofá.

— Claro.

Saímos tranquilamente. As crianças estavam na escola. Combinamos de pegá-las e passarmos o dia na rua. Iríamos ao shopping, ver algum filme; e comeríamos por lá mesmo. Sentia-me animada, como há tempo não acontecia, já que fazia tempo que não tinha um dia de lazer com as crianças.

Monica pisava fundo no acelerador. A estrada estava livre à nossa frente. O vento batia no meu rosto, me dando sensação de liberdade.

Dentro de mim, uma nova chama se acendia. Achava que tudo ficaria bem. Sorri com o pensamento, sorri com a sensação, sorri porque eu estava feliz.

Encostei a cabeça na janela e fechei os olhos.

— Acorda, Melanie. Chegamos! — ouvi-a dizer, me surpreendendo. Dava a impressão de que tínhamos acabado de entrar no carro.

— Nossa, mas já?

— Claro, sou boa no volante — disse, num tom convencido.

— “Barbeira” você quer dizer, né? — falei num tom brincalhão.

— Hey...

Ela me deu um tapa no ombro e colocou seus óculos de sol. Eu não sei como ela estava sozinha. Monica era uma mulher linda, inteligente e tinha um corpo escultural. Todos os homens olhavam para ela quando passava, e até algumas mulheres.

Fiz minha ficha na recepção e esperei ser chamada. Monica mexia freneticamente no celular. Respirei fundo e fiquei levemente irritada, afinal, o que tanto ela mexia naquela coisa, que não me dava atenção? Ok, eu sei, sou ciumenta; mas é que fazia tanto tempo que eu não tinha a companhia dela, e queria um pouco mais de atenção...

— Mel? — escutei alguém me chamar.

Eu reconheci a voz dócil e suave.

Levantei o olhar e sorri de imediato quando vi ele parado na minha frente.

— Will, oi — disse, me levantando e o abraçando. Ele retribuiu ao abraço, me segurou entre seus braços e me apertou como se fizesse muito tempo que não me via.

— Oi. — Ele disse, me soltando. — Tudo bem com você?

— Sim, vim tirar o gesso — falei com um sorriso.

— Seu rosto melhorou bastante.

Ele tocou em meu rosto, e eu olhei no fundo daqueles lindos olhos verdes... Até que fui tirada do transe com alguém pigarreando ao meu lado.

— Desculpe. — Virei-me para a minha cunhada — Will, esta é Monica, minha cunhada e amiga — disse, levemente sem graça, olhando de um para o outro.

Ele sorriu, pegou a mão da Monica e a beijou. Eu nunca a tinha visto ficar envergonhada por tão pouco.

— Prazer. Sou o Willian, mas pode me chamar de Will. — Ele se apresentou.

— Oi, sou a amiga... Quer dizer: Monica — Monica disse, se enrolando nas palavras.

Comecei a rir. Monica ficou realmente engasgada ao falar com Will. Eu sei, eu a entendia. Ele era lindo, facilmente causava esse efeito nas mulheres.

— Melanie Oliveira — uma enfermeira chamou meu nome.

— Sim, eu. — Virei-me para onde me chamaram.

— Pode entrar, querida. Vamos retirar esse gesso e tirar a chapa.

— Gê, pode deixar, eu a atendo! — Will falou rapidamente.

— Mas, Will, você...

— Ela é minha amiga, pode deixar. — Ele a cortou.

— Tudo bem, só não deixa o Sr. Gilmar te pegar. Já passou a crachá?

— Relaxa, Gê. — Ele então olhou para mim e sorriu docilmente. — Vamos, Mel?

— Claro! — Olhei para a minha amiga — Você vem, Monica?

— Óbvio que não — respondeu-me, com um sorriso maroto nos lábios.

Caminhei ao lado de Will sem falar nada. Às vezes eu o olhava, e ele sorria, coisa que me deixou extremamente feliz, mesmo sem saber o motivo.

 Chegamos a uma sala toda branca com aparelhos para a retirada do gesso.

— Venha aqui, deixa eu te ajudar a subir na maca.

Ele colocou uma escadinha e estendeu a mão para mim. Olhei-o e sorri. Segurei sua mão, e uma energia gostosa se apossou de mim. Senti minhas pernas bambas e meu coração disparar. Foi então que pensei que “beijaria o chão”, mas Will foi mais rápido: passou o braço pela minha cintura, me segurando junto a si. Sua respiração se misturou com a minha, e eu senti seu perfume amadeirado invadir minhas narinas. Fechei os olhos, totalmente nervosa e tonta com a aproximação.

— Tudo bem, Mel? — Ele perguntou.

Olhei para baixo, totalmente envergonhada.

— Sim, acho que escorreguei. Desculpe! — respondi.

— Sem problemas. Venha, deixa eu te pôr ali sentada.

— Como?

Ele me pegou no colo e me colocou sentada na maca. Sorriu e deu as costas para mim. Minha Nossa Senhora do frio na barriga! O que foi isso que senti??? Meu coração batia descompassado, o suor começava a descer pela minha testa. De repente, estava tão quente aqui dentro... De repente eu... Eu... Não, sem possibilidade de isso acontecer, NÃO!!

— Mel?

— Não! — falei, num tom mais alto do que deveria e sem nem mesmo perceber.

— O que foi? — Ele ficou visivelmente assustado com meu grito.

— Desculpe, estava distraída — falei, sem graça.

— Com o quê?

— Você.

— Eu? — Ele me olhou, ergueu uma sobrancelha e cruzou os braços.

— Sim, estava aqui pensando se não terá problemas por minha causa — inventei.

— Ah! Relaxa. — Descruzou os braços e voltou a mexer nos equipamentos para retirar o gesso.

— Mas...

— Se eu tiver problemas, valerá a pena — interrompeu-me. — Vamos começar? — Virou-se com uma maquininha em mãos.

— E... Eu... Sim.

— Ótimo. Deixe-me pôr esses óculos em você!

Ele pegou óculos de proteção e colocou em mim, afastando alguns fios teimosos que ficavam escapando do prendedor. Will não tirava os olhos da minha direção. Seu olhar estava fixo no meu. Comecei a me sentir quente. Uma vontade louca de enlaçar meus braços no seu pescoço, trazê-lo para perto de mim e beijá-lo. Umedeci meus lábios. Senti ele se aproximar, meu coração acelerar e aquele calor insuportável tomar conta de mim. Eu não podia, não era certo!

Balancei a cabeça, tentando tirar esses pensamentos de minha mente.

— Will? — chamei-o.

— Sim.

— Vai doer tirar isso do meu braço?

— Não, claro que não. — Ele desviou o olhar do meu, pegou uma serra elétrica e a ligou.

 “Desculpe, Will, mas eu não podia me envolver com você, muito menos me apaixonar...” Tentei repreender meus próprios pensamentos.

Ele cantarolava baixinho uma determinada música, enquanto a serra fazia seu trabalho. Embora Will prestasse atenção no que fazia, às vezes me olhava e sorria. Eu sorria de volta, mas logo desviava o olhar. Eu não podia me aproximar assim dele, não era justo! Afinal, se ele estivesse sentindo o mesmo por mim, o que eu poderia lhe oferecer? Uma; duas noites? E se Adam descobrisse? Não, nem pensar!! Eu sabia o que meu marido era capaz de fazer!

— Só mais um pouco, Mel, é... Isso saiu. — Ele disse e sorriu para mim.

— Ai, que alívio — falei suspirando.

— Vem, vamos tirar a chapa. — Ele esticou a mão, cuja aceitei e desci da cama, sem fazer o papelão de cair.

— Tomara que eu não precise mais pôr isso, é ruim!

— Sente dor? — Ele perguntou, examinando meu braço.

— Não.

— Ótimo, é um bom sinal!

— Will? — chamei-o.

— Sim. — Ele parou no batente da porta, cruzou os braços e me olhou.

— Que música era aquela que estava cantando? — perguntei, curiosa.

— Quem canta é Imagine Dragons, e o nome da música é Birds. Por quê?

— Por nada. Achei bonita. E qual é a tradução dela?

— “Estações vão mudar, a vida vai fazer você crescer, os sonhos vão fazer você chorar; chorar; chorar... Tudo é temporário, tudo vai deslizar. O amor nunca vai morrer; morrer; morrer.

— É linda — falei, sorrindo para ele.

— Sim, é meu trecho preferido! — Ele sorriu de volta.

— Por quê?

— Não e óbvio? Ela quer dizer que tudo muda; que às vezes, sonhos te fazem chorar, mas que tudo bem, porque tudo é temporário, menos o amor.

Senti-me emocionada com o que ele disse. Disfarcei as lágrimas que formavam em meus olhos.

Ele me deu passagem, e em seguida me encaminhou até a sala de radiografia. Ajudou-me a sentar na maca, e o técnico tirou a chapa. Os dois conversavam olhando para mim. Senti-me apreensiva.

— Bom, Mel, você irá passar com um médico de plantão, porém, já adianto que não vimos nada. Você provavelmente terá apenas que fazer alguns exercícios com a mão, para que ela volte ao normal.

— Sério?

— Sim, Senhora, sério — Will disse, em tom de brincadeira.

— Obrigada. — Eu dei um pulo e o abracei. Ele retribuiu ao abraço. Estendi a mão para o radiologista, e ele sorriu, apertando-a.

Will pegou a chapa, a minha ficha e foi até a sala do médico. Saiu de lá sem os papéis na mão. Segundos depois, o médico chamou meu nome. Assim que me sentei na cadeira, ele já foi me recomendando fisioterapia e cuidado. Disse que eu tive sorte na fratura, pois poderia ter sido perigosa. Ele me deu alguns papéis e disse que eu posso ir para casa.

Assim que saí, vi Will parado na porta. Ele lançou a mim um dócil sorriso e me acompanhou até a recepção, onde Monica me aguardava.

— E aí, está de alta? — Ela perguntou assim que me aproximei.

— Sim. — Eu a abracei, e ela sorriu.

— Foi um prazer, Will! — Ela disse a ele assim que a soltei. Vi que ela sorriu para Will.

— O prazer foi meu, Monica. Cuide dela, ok! — Ele disse, apontando o dedo para mim.

— Pode deixar, ficarei de olho. — Ela piscou para ele.

— Até mais, Mel — Will se despediu de mim.

— Até, Will.

Ele apenas sorriu e balançou a cabeça. Deixei-o para trás com um sorriso nos lábios e a certeza de que essa coisa que eu sentia era bem maior do que uma simples atração.

Depois de ter passado horas andando de um lado para o outro e ter assistido a dois filmes no cinema com as crianças, fomos para casa. Assim que chegamos, fiz as crianças tomarem banho, e em seguida elas caíram duras em suas camas. Estavam cansadas do passeio.

Desci ajeitando uma blusa de frio que colocara. O clima mudara, e agora estava frio.

 Monica estava no banho. Ela também estava cansada, já que brincou a tarde toda com as crianças.

Comecei a mexer nas panelas. Olhei para o relógio. Marcava sete da noite e vinte e quatro minutos. Assustei-me com o horário. Logo Adam estaria em casa, e não tinha comida pronta.

— Meu Deus, não vai dar tempo de fazer comida!! — falei em desespero, só de imaginar o quanto isso iria irritar Adam.

Coloquei rapidamente duas panelas com água para ferver. Faria um macarrão à bolonhesa. Era rápido, fácil e Adam gostava.

Assim que comecei a refogar a carne, ouvi o barulho da porta se fechando e, em seguida, passos apressados se aproximando da cozinha.

— Mel? — Era Adam me chamando.

— Oi, Adam! — falei, com o coração disparando.

— Cadê as crianças?

— Dormindo. Saímos hoje à tarde para um passeio!

— Passeio? E quem deu autorização para um passeio? — Ele perguntou de modo irritado. Engoli em seco.

— Eu fui com sua irmã! — falei.

— Piorou! Pode ser minha irmã, mas sei o quanto ela é atirada... — Olhou ao redor — Ah, e o jantar? — perguntou ao perceber que a mesa não estava servida e que ainda tinha panela no fogão.

— Vai atrasar um pouco, querido! — disse, tentando sorrir, porém eu estava com medo demais para isso. — Por que não vai se lavar, enquan...

— Como assim não está pronto?! — Ele gritou, me cortando.

— Desculpe, amor. Eu me atrasei, é... — Eu tentava falar, me virando na direção dele.

Porém, ele não me deixou terminar. O soco no estômago veio com força, assim como a joelhada no meu nariz. Caí no chão de imediato.

— Atrasou porque você foi bater perna feito uma vagabunda! Você não presta pra nada, sua porca; para nada! — Ele gritou comigo.

Senti um chute contra minhas costelas, o que me fez cuspir sangue.

— Mas, o que é essa gritaria aqui? — ouvi Monica questionar na porta da cozinha. Olhei com dificuldade para ela. Vi o quanto ficou estupefata assim que me viu caída no chão. — Ai, meu Deus, você fez isso com ela?! — Monica exclamou, colocando a mão na boca.

— Saia daqui, Monica, agora!! — Adam gritou, furioso.

— O quê?? — Ela balançou a cabeça, parecia estar digerindo o que viu. — Mas, é claro que não! Nem fodendo! — disse.

Monica correu para me ajudar.

Quando consegui me erguer, vi que Adam estava com uma das panelas de água fervente em mãos. Meus olhos se encheram de lágrimas. Ele ia tacar isso em mim se não fosse a Monica... Comecei a chorar compulsivamente, e todas as palavras que ele um dia disse para mim vieram na minha mente: “Você é uma puta!”; “Sua vagabunda!”; “Gorda imprestável!”; “Queria poder te matar asfixiada, vagabunda!”; “Toma, é isso que puta merece!”

— Saia daqui, Monica! Não se meta! Me deixe matar essa piranha, me deixe! — Ele colocou a panela em cima do fogão e passou as mãos em seus cabelos.

— Você está louco, Adam?! Fumou algo?! — Monica disse, com espanto no olhar, enquanto me segurava em seus braços.

— Saia da minha frente, ou vai apanhar também! — Ele gritou, o que fez com que ela me soltasse e se levantasse para encará-lo.

— Vamos lá, seu puto, bate! Bate, que eu não sou a Mel, vai ter troco! — Ela disse, furiosa.

Monica o encarou. Ele babava de ódio.

— Vamos, seu puto, me bate, anda! — continuou repetindo, o que o deixou sem reação.

Ela o empurrou, mas ele não saía do lugar, parecia uma rocha.

Até que desistiu e foi embora. Então chorei mais ainda. Uma dor foi invadindo meu peito, uma angústia, e eu não conseguia respirar. Minha cabeça dava voltas e mais voltas.

— Calma, Mel, calma. Vamos, respira! — escutei Monica falar, parecia preocupada... — Vamos, Mel, reage!

— Mamãe? — escutei a voz de Pedro me chamar.

Fixei o olhar. Ele estava atrás da Monica, com os olhos arregalados, provavelmente de medo. Desci o olhar até ver que ele estava segurando uma faca. Eu congelei.

— Solte isso agora, Pedro! — Eu mandei, apavorada.

— Mas ele...

— Eu mandei soltar! — já fui o interrompendo.

Ele largou a faca no chão, veio até perto de mim e se ajoelhou. Passou a mão em meu nariz, limpando um pouco de sangue, e me abraçou em seguida.

— Estou bem, querido! — falei, passando a mão no rosto dele.

— Ele te bateu de novo — Pedro disse, chorando.

— “De novo”??? — Mônica repetiu, de maneira incrédula. Parecia ter pensado que essa fosse a primeira vez.

— Sim, tia. Ele bate escondido na mãe. O braço dela foi ele que quebrou! — Pedro despejou isso de uma vez em cima da Monica.

 Ela me olhou com expressão espantada. Em seus olhos pude notar a dor, a angústia e a decepção, afinal, Adam era o seu irmão.

— Pedro... — falei, num tom de repreensão.

— Não, mãe, ela precisa saber! Eu não aguento mais; não aguento, mãe! Tenho medo de que um dia ele te mate!

Ele começou a chorar compulsivamente. Eu o abracei e beijei sua cabeça. Monica me olhava com o semblante ainda mais assustado, até que também começou a chorar.

Eu sabia que Adam era violento; que ele já havia feito muitas coisas comigo, porém, como não havia me batido mais, eu não esperava que isso fosse acontecer de novo. Eu acreditei estupidamente que as agressões finalmente tivessem acabado, mas agora via que estava enganada! Essa fora apenas pior, pois ele ia jogar água fervente em mim, se Mônica não tivesse aparecido. E ainda, meu filho... Ele estava com uma faca, o que teria feito se Monica não tivesse entrado na cozinha antes dele?!

Com certeza vê-lo com uma faca na mão foi, de longe, a pior cena que vi na minha vida!

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