Dois anos depois.
“LEVANTAR-SE É UM ATO DE CORAGEM”. Rita dizia isso para si mesma todos os dias, há mais de setecentos dias. Diferente de anos antes, agora ela não mais se apressava para acordar antes do sol nascer. No passado, sentia orgulho de acordar às três e meia da manhã, às vezes até mais cedo, para fazer os exercícios físicos do dia e adiantar algum trabalho.
Antes, Rita não se importava com a escuridão das madrugadas.
Antes, Rita tinha medos internos em nada comparados às possíveis ameaças ao redor. Antes, Rita vivia em um palco de teatro.
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NA TOMADA DE DECISÕES, OS PASSOS RUMO AO ABISMO SEMPRE CARECEM DE MAIS ESFORÇO. Contudo, quanto mais se aproxima aquele vazio tão aclamado em versos, metafóricos ou não, o corpo parece se convencer do inevitável, os músculos esquecem do cansaço e os impulsos fazem os pés agilizarem as passadas. Abrem-se os braços à beira do abismo e ele abraça de volta.E sorri.E devora.Rita parou em frente ao vidro. O cenário se assemelhava ao dos outros quartos, com exceção da ausência de livros nas prateleiras. A cela parecia tomada por uma friagem cromática: da fronha do travesseiro à cor do armário, dos chinelos largados a um canto à toalha estendida sobre a cadeira, tudo tinha tons cinzas. Por um breve momento, Rita se questionou se não era daltônica. Quando o homem saiu do banheiro e caminhou até
OS VENTOS BRINCAVAM POR ENTRE OS SEUS CABELOS E LEVAVAM FOLHAS PELO AR. Ainda tremia ao se sentar no banco e apoiar as mãos no volante. Por sorte, a tremedeira não fora um empecilho para manter o plano e sair do hospital. Agora, aquele dia ganhara mais um significado: era o dia do seu renascimento.Cinco enfermeiros e mais uma dezena de seguranças surgiram quando o homem se preparava para apunhalar sua cabeça. Contiveram o paciente e aplicaram uma injeção. Enquanto adormecia, sua atenção se manteve sobre a mulher. Quando as janelas estavam prestes a se fechar, seus lábios se moveram para formarem uma frase:“Fique longe de mim”.Com ou sem o conselho, ela já decidira se manter longe dali: aquele fardo não era mais dela. Aquela responsabilidade, enfim, acabara.Rita estava livre.Olhou para o relógio no painel do carro e ficou al
Henrique Gomes Gonçalves, mais conhecido como Henggo, é jornalista, artista plástico e escritor. Maranhense de São Luís, apaixonou-se pela literatura aos 12 anos, quando reescrevia os livros paradidáticos da escola para “dar mais emoção”. Amante do silêncio e das tardes sentado na areia da praia, envolto pela cultura quilombola da família, vive com os olhos voltados para as estrelas, um sentimento de curiosidade perante o mundo que permeia todos os seus textos. Acima de tudo, é um fiel defensor de histórias que mergulhem na brasilidade e na diversidade da sociedade. Afinal, há algo mais instigante do que a mente humana e suas problemáticas? Saiba mais sobre o autor em www.henggo.com.br
#pratodosverem | Descrição da capa: Ao fundo, vê-se a imagem de uma pessoa sentada diante de uma parede preta. A cabeça está coberta por um pano vermelho. As penas entrecruzadas à frente do corpo revelam parte das coxas e das nádegas. No alto da capa, em letras brancas, lê-se a apresentação “um thriller erótico de” seguido na linha abaixo pelo nome do autor em letras garrafais, “Henggo”. Em frente à imagem dessa pessoa, tem-se uma pergunta também em letras brancas: “Qual o limite da sua luxúria?”. Abaixo dessa frase, vê-se o título estilizado do livro. Em letras grandes, tem-se a palavra “Voo”. Dentro da última letra, o artigo “um” em vermelho. Abaixo desse conjunto, o complemento “na escuridão”. Assim, forma-se o título: “Um voo na escuridão”.
SENTIA-SE UM LIXO. Na terceira vez prometera parar e não conseguira. Protelou a decisão e, após dezenas de encontros, assumiu a culpa. Ao menos, agora reconhecia o erro. “A última vez. Dessa vez é pra valer...”, pensou.Jogou água no rosto, ajeitou a gravata e voltou para a mesa. O nervosismo era visível e os colegas o percebiam. Ele olhava para todos os lados, a tremedeira das mãos fazia os dedos sapatearem pelo teclado, os pés não paravam quietos. E ainda havia uma coceirinha a salpicar pelo corpo. Por fim, após quarenta minutos de agonia, a hora do almoço chegou e seus dois companheiros de sala saíram. Tomou ar. A sala pareceu inspirar junto com ele e prender o fôlego. A tensão maculava a brancura das paredes.Do porta-retrato ao lado do computador, ela o observou. Mesmo ali, em um emaranhado de tinta, cores e papel fotogr&aac
CLINT ACORDOU AINDA ENVOLTO PELA ESCURIDÃO. Fora a melhor noite de sua vida. Tateou pela cama em desespero até encontrar o corpo ao seu lado. A mão deslizou por aquela pele como se tocasse em veludo. As coxas, as curvas, o sexo, tudo parecia esculpido em uma perfeição digna dos grandes escultores. “Deus existe.”, Clint sorriu. Levou a mão ao rosto da mulher e, como o combinado, ela ainda estava com a máscara. Resistiu à tentação de a arrancar e dar-lhe um beijo. Pensou em ligar a luz para ver aquele corpo deitado ao lado e chegou mesmo a sentar na cama pronto para se levantar, quando um choque o atingiu.Não podia fazer isso. Se dissesse não ter pensado em Rita naquela noite estaria mentindo. Porém, diferente do previsto, a imagem da esposa surgiu mais como um símbolo d
A TERÇA-FEIRA CHEGOU E TROUXE NOTAS DE ESTRANHEZA DILUÍDAS PELO AR. Como de praxe, tremores passeavam pelo corpo dele e a ansiedade se misturava ao cheiro do perfume. Mas dessa vez sentia algo mais intenso, como um corredor que chega à maratona e sabe que estará no alto do pódio. Apenas sabe.Clint passou o final de semana imerso em planos para encontrar uma forma de descobrir quem era aquela mulher com quem marcara o encontro. Poderia oferecer uma boa quantia em dinheiro para ela se mostrar; poderia apenas ligar a luz e arrancar a droga da máscara. É, sim, poderia. Porém, Clint gostava do desafio; do instinto quase animalesco de se esgueirar pelas bordas para abocanhar a presa.— Eu te disse que isso não ia certo. – Ramon comentou enquanto conversavam no refeitório da empresa. O amigo acabara de lhe contar sobre o encontro misterioso ocorrido na sexta-feira e sobre os pl
RITA ACORDOU, VIROU-SE NA CAMA E O CORAÇÃO DISPAROU. Clint sorria para ela sentado na poltrona no canto do quarto.— O q-que você faz aqui? Fora. FORA! – gritou e puxou os lençóis para cobrir o busto.O sorriso dele murchou e deu lugar ao desprezo. Contudo, quando falou foi em um tom de voz pacificador.— Rita, calma. Eu preciso muito falar com você. Por favor, eu...— SAI DO MEU QUARTO, CLINT!— Rita, por favor. Por favor, me escuta!Ele nunca foi disso, Rita lembrou. Os níveis de urgência de Clint podiam ser medidos pelo lugar escolhido para uma conversa importante. Se fosse na cama, logo ao amanhecer, era algo trivial, coisas do dia-a-dia. Conversas à mesa do café-da-manhã significavam algo de importância mediana. Quando esperava por ela sentado no sofá da sala até tarde da noite, a