SENTIA-SE UM LIXO. Na terceira vez prometera parar e não conseguira. Protelou a decisão e, após dezenas de encontros, assumiu a culpa. Ao menos, agora reconhecia o erro. “A última vez. Dessa vez é pra valer...”, pensou.
Jogou água no rosto, ajeitou a gravata e voltou para a mesa. O nervosismo era visível e os colegas o percebiam. Ele olhava para todos os lados, a tremedeira das mãos fazia os dedos sapatearem pelo teclado, os pés não paravam quietos. E ainda havia uma coceirinha a salpicar pelo corpo. Por fim, após quarenta minutos de agonia, a hora do almoço chegou e seus dois companheiros de sala saíram. Tomou ar. A sala pareceu inspirar junto com ele e prender o fôlego. A tensão maculava a brancura das paredes.
Do porta-retrato ao lado do computador, ela o observou. Mesmo ali, em um emaranhado de tinta, cores e papel fotográfico, a face da esposa parecia acusar o marido de alguma coisa. “E não têm razão?”, perguntou-lhe a consciência. Em resposta, deu um baque no culposo e virou-o para baixo. Ainda assim, não conseguiu desviar a atenção da parte de trás do objeto. Ali embaixo, ela ainda o fitava, atenta a cada movimento. Por garantia, enfiou-o na gaveta e trancou o móvel.
Sim, estava decidido.
O clique foi certeiro.
***
CLINT TENNER ERA UM EXECUTIVO PADRÃO. Não conseguira grande notoriedade nos negócios, mas conquistara um nível de respeito na área que muitos nem sonhavam em ter. Vivia em uma casa de dois pavimentos, confortável e com a geladeira sempre cheia, trocava de carro a cada três ou quatro anos e acumulara rendimentos suficientes ao longo da vida para ter uma aposentadoria digna de um sultão. Era casado há quase três décadas com Rita e dividia com a esposa o orgulho de ter duas filhas na melhor universidade do país ou, ao menos, a melhor que o dinheiro poderia pagar. Carismático, Clint era o tipo de pessoa que os vizinhos apontariam frente a uma pesquisa sobre valores familiares e bons costumes. No entanto, por baixo da máscara de sucesso, escondia anos de traições, um vício crescente em encontros casuais com prostitutas e o fato do casal Tenner dormir em quartos separados há quase cinco anos.
Clint Tenner era o pomposo regente de uma farsa.
Se lhe perguntassem onde tudo dera errado, ele não saberia explicar. A primeira traição surgiu de repente, “coisa de momento”, costumava dizer. A oportunidade se esgueirou por trás dele durante uma viagem a trabalho. A garota era linda, perfeita, sem pudores. Fazia coisas na cama consideradas impensadas para a maioria dos casais moldados em conservadorismos e regras sociais. Não dizem que quando se está casado há tanto tempo o sexo é a primeira coisa a cair na rotina? Entregue àquela fuga, ele e a outra dormiram juntos e, no dia seguinte, ela se foi, tão rápido quanto aparecera.
Era simples, rápido, mecânico e sem dores de cabeça. “Sem sentimentos.”, Clint disse para si mesmo no voo de volta para casa.
Quando chegou, abraçou a esposa e fez amor com ela como se buscasse o carinho, o aconchego, a segurança daqueles braços. Ex-nadadora profissional, Rita era professora voluntária em uma escola de natação e, aos finais de semana, dava aulas para os idosos de um asilo. O empenho a presenteou com um corpo em forma e, Clint concluiu, “muito melhor do que o daquela garota da noite anterior.” Após classificar o desvio como “uma prova de amor para Rita”, ele dormiu como um bebê.
Então, os dias viraram semanas, as semanas viraram meses e as “provas de amor” se tornaram cada vez mais frequentes. E, para piorar, fez uma grande descoberta: também poderia pagar por carinho e por aconchego.
E pagou. Muito.
Assim, a relação do casal Tenner esfriou, Rita se calou e, ao chegar a época de as filhas irem para a universidade, a casa se agigantou. Com a desculpa de evitar a solidão, Clint ficava cada vez mais tempo no trabalho enquanto Rita aceitou os dois turnos na escola de natação. Dois anos depois, veio a cereja que corou o fracasso: ela assumiu o posto de coordenadora do asilo e passou a dedicar parte das noites aos cuidados geriátricos. Alheios aos fatos, todos aplaudiram o altruísmo de Rita e os esforços de Clint para custear os estudos das filhas.
Só não percebiam o quanto os dois afundavam cada vez mais nos próprios abismos.
***
— CLINT? – a voz de Ramon bateu na porta e despertou-o das fantasias. — Cara, a gente tá te esperando pra almoçar.
Pego de surpresa, Clint não teve a chance de fechar o site. Teve tempo apenas de virar o monitor mais para si. O olhar risonho de Ramon murchou ao perceber o nervosismo do amigo.
Os dois se conheciam desde muito jovens e, com o passar dos anos, o amigo se tornou um confidente; um diário onde Tenner despejava os dejetos de sua vida. No primeiro envolvimento do amigo com uma garota de programa, Ramon ameaçou contar para Rita, mas desistiu frente ao desespero e as promessas do outro.
Naquela época, Clint ainda amava a esposa.
Tempos depois, porém, outros encontros ocorreram. Ciente de que acima da lealdade estava o bom senso de ver o quanto Clint afundava mais e mais, Ramon tomou coragem e ligou para a casa dos Tenner. Correria o risco de perder o amigo. Se esse fosse o preço a pagar para barrar a autodestruição do outro, estaria disposto a arcar com as consequências. O plano, contudo, se desfez nos primeiros segundos da ligação: quando ele se identificou e disse se tratar de um assunto delicado, Rita desabou em choro ao julgar ter acontecido algo grave com o marido. Desesperada, ela teve um pico de pressão e precisou ser acudida pelos vizinhos. Podia até ser atleta, saudável e cuidadosa, não importava: o amor àquele homem era um veneno ao qual ela ainda não se dera conta.
Ramon desistiu de contar. Rita não aguentaria a verdade.
A coragem se esvaiu e, à espera do momento certo, ano após anos ele se tornou cúmplice dos desvios sexuais do amigo.
— Eu... não acredito. Você disse que estava há meses sem procurar essas garotas e… E agora eu chego aqui e vejo todos esses... esses sites abertos.... e aqui no escritório? Ficou maluco, Clint? Você acha o quê, que as pessoas não percebem?
— É a última vez. A despedida.
— Despedida do que? Do teu emprego? – Ramon puxou uma cadeira e sentou-se ao lado do amigo. — Sinceramente, eu não sei por que você não se separa da Rita. Você não me disse que ela já deu sinais de que quer se separar?
— Sim, ela tem dito algumas coisas. – ele respondeu em um tom como se Ramon acabasse de lhe perguntar se queria bife ou frango no almoço.
— E-Então... seria até mais simples. – e enfatizou. — Não seria?
— É. Talvez.
— Talvez, cara? Talvez? Viver desse jeito só pra manter a aparência de vida perfeita é burrice.
Clint sorriu com o rosto tomado por ironia.
— Falou o sábio que já se divorciou três vezes.
— Pois é, Clint. A diferença é que eu não fiz minhas esposas sofrerem e não estou no fundo do poço... - uma funcionária entrou na sala para buscar algumas pastas, mas desistiu frente ao clima tenso entre os dois. Ramon esperou a porta bater e prosseguiu. — Clint, você sabe que o meu irmão é terapeuta…
— De novo isso?!
— Tudo bem que não seja ele, mas o William conhece muita gente, médicos que podem te ajudar, te indicar um tratamento. A cada ano você está pior, parece mais obcecado por esse assunto…
— Olha aqui: eu não preciso de tratamento e muito menos de psicólogo, terapeuta, psiquiatra ou seja lá que merda o teu irmão for, tá legal? É a última vez, eu já disse. Eu tô bem, cara, eu tô no controle da situação. Confia em mim: agora é pra valer.
Ramon coçou a testa. Aquela conversa parecia um grande déjà vu. Perdera as contas de quantas vezes já ouvira as frases “a última vez” e “confia em mim” em trechos daquele mesmo drama.
— Depois de tanto tempo, Clint, nunca é a última vez…
— Mas desta vez é! – e bateu na mesa ao ponto de fazer o monitor tremer. Ao notar a expressão assustada de Ramon, baixou o tom. — Certo... eu admito que eu estou um pouquinho fora de controle, mas é normal.
— Normal?
— Sim, exato. Eu fui pesquisar, sabe? Eu estava preocupado, é claro. E, bem... Eu vi que muitos homens entram em crise, ficam meio perdidos e acabam compensando, entende? E tem também toda a questão dos anos de casamento, as coisas mudam, o casal não é mais o mesmo, essas coisas. Cara, você não faz ideia da quantidade de gente que anda infeliz no relacionamento. Minha saída foi... bem, foi buscar carinho em outros braços. Só isso.
O relógio marcou meio-dia e meia. Ramon não acreditou que trocara parte da hora do almoço para ouvir tanta loucura. E o pior ainda estava por vir. Clint se empertigou na cadeira e aproximou-se do amigo como se prestes a revelar o maior segredo do universo.
— E quer saber mais?
— Saber o quê, Clint?
— Eu me analisei e percebi que o problema todo está no rosto dessas garotas.
Ramon demorou alguns segundos para compreender a frase. Viajou de um olho para o outro do amigo em uma tentativa de pescar algum vestígio de brincadeira. O mar de Tenner presenteou-lhe com seriedade.
— No rosto? C-Como assim?! Clint, acorda! O que você tá fazendo da vida?!
— Calma. Calma. Meu Deus! Só acompanha meu raciocínio, certo? Quando eu olho para elas, para essas garotas, o que eu quero? Eu quero encontrar a Rita. Isso é um fato. Por isso eu não paro. Entende o que eu quero dizer? O que eu busco nesses encontros, Ramon, é a minha esposa.
Clint esperou para ver se a informação surtia algum efeito, mas, ao notar a apatia do outro, cutucou a parte interna das bochechas com a língua, as narinas dilatadas. Engoliu em seco e prosseguiu em um nível a menos de empolgação.
— Certo. Pois então, eu fiz algumas buscas sobre o assunto e foi aí que eu descobri esse site aqui...
Ele virou o monitor e mostrou-o a Ramon. A tela exibia um catálogo de garotas de programas, com descrições detalhadas, números para contato, avaliações de clientes e, o mais peculiar, todas mascaradas.
— Eu ainda não entendi…
— Ora, por favor, tá na cara. Quer dizer, na cara não porque elas não mostram o rosto. Você não vê? É perfeito! Eu escolho uma delas e exijo duas coisas: máscara e luzes apagadas. Eu não vejo o rosto, não me apego e começo a me encantar de novo pela Rita. Isso sim é um tratamento! Alguns encontros depois, eu me canso, me apaixono de novo pela Rita e vamos comemorar nossos trinta anos de casados com uma festa incrível.
— Alguns encontros depois? Alguns? É óbvio que não isso não vai dar certo! É só uma desculpa pra isso tudo continuar.
— Ah, cala a boca! É genial. E, quando você nos ver felizes de novo, vai reconhecer que eu estava certo.
Ramon avaliou o amigo por algum tempo. Como das outras vezes, poderia replicar, tentar fazer com que Clint visse a loucura daquele plano, ameaçar ligar para Rita. Mas não. Àquela altura do campeonato de nada adiantaria. Clint faria qualquer coisa para continuar naquele jogo.
— Quer saber de uma coisa, Clint? - mesmo sentido, Ramon deixou os anos de amizade de lado e levantou-se para ir embora. — Eu estou com fome e a vida é tua. Aproveite como quiser. Mas eu vou te falar uma coisa: a vida ensina, sim, mas o erro é um professor muito mais cruel.
— Palmas, Ramon, palmas! Estou emocionado. Agora tchau que eu também estou com fome…
E voltou a olhar para a tela em busca de uma garota para aquela noite.
***
A CAMINHO DO MOTEL, UM SACO GRANDE BATATAS FRITAS NO COLO, CLINT COGITOU LIGAR PARA RITA. Com a mão esquerda no volante e o celular na outra, procurou o contato da esposa e clicou na chamada. Como sempre, inventaria algo sobre o trabalho. Ou será que, dessa vez, a desculpa de um happy hour com os amigos cairia melhor? Um sorrisinho surgiu no canto da boca. A justificativa era mais por egoísmo, um resquício de consciência. Há muito tempo, ele reconhecia, não se importava com os sentimentos da esposa. Encerrou a ligação antes do terceiro toque e jogou o celular no banco de trás.
Tinha sérias dúvidas se Rita ao menos notava sua ausência.
Nos últimos anos, eles viviam independentes um do outro, encontrando-se apenas quando era necessário ser um casal. Se, por exemplo, lhe pedissem para descrever a esposa, apresentaria uma imagem de seis ou sete anos antes. Não tinha noção de como estava seu cabelo, se ela engordara ou emagrecera; de como era o toque da pele, o cheiro ou até a voz. Tinha vestígios dessas características por meio de lembranças, mas nada muito sólido.
“E por que eu tô me importando com isso agora?”, perguntou-se com uma gargalhada. Era o início da despedida. Em algumas semanas, teria apenas Rita em seus sonhos. Empurrou a esposa para os porões da memória, virou a esquina e deixou o prédio à sua frente preencher as ilusões.
O Columbia era um motel considerado de alto padrão. Ficava no subsolo do principal edifício comercial da cidade e por isso era quase impossível saber quem estava ali para uma reunião ou para diversão. Por receber clientes da alta sociedade e, por vezes, pessoas públicas, tinha um acesso estratégico com elevadores exclusivos e discretos, seguranças e, é claro, um serviço digno de qualquer hotel cinco estrelas. Um luxo muito caro.
“Mas”, vangloriou-se Clint ao caminhar pelo estacionamento, “tudo vale a pena para o tratamento dar certo.”
Apresentou as credenciais ao segurança, assinou alguns papéis e entrou no elevador. As mãos voltaram a tremer. Apertou o pulso para fazê-las parar e socou o botão do interfone. Em um visor de plasma, identificou-se e confirmou alguns dados para o pagamento e o número de reserva da garota escolhida. Era inacreditável. A melhor tecnologia à serviço do sexo.
O elevador começou a descer e um frio lhe subiu pelo esôfago.
Quando as portas se abriram dois andares abaixo, Clint julgou estar em um filme do Kubrick. À sua frente, havia um corredor com portas brancas de ambos os lados que sumiam em uma curva. O vermelho do carpete era vivo ao ponto de parecer vulgar. No alto, também em vermelho, o teto refulgia a luz das arandelas entre as portas. Em um passo vacilante, ele saiu do elevador e sufocou um grito. Outro segurança o aguardava, mas esse funcionário usava uma máscara de rosto inteiro. Entregou-lhe uma chave magnética, fez um gesto com a cabeça que Clint julgou ser uma reverência e sumiu por uma porta ao lado do elevador, tão branca que se fundia às paredes.
Absorto com o ambiente, Clint seguiu até o quarto.
O silêncio era opressor. O carpete abafava o som dos sapatos e apenas o farfalhar do terno ou a respiração do homem preenchia o lugar. Tenner se sentiu observado, porém, ao se virar, apenas as portas do elevador acompanhavam sua jornada. Procurou no alto. Não viu vestígios de câmeras. Nem mesmo as portas tinham fechaduras por onde olhos pudessem espioná-lo. Por mais duas vezes parou e olhou para trás, o coração a mil, até chegar onde devia e parar diante da porta. Até ali, naquela situação, Rita estava com ele.
O número da suíte era o 30.
Encostou a chave em um dispositivo de leitura incrustado no portal e entrou. Tomou banho, bebeu algumas doses de uísque e, seguindo as diretrizes do manual, desligou as luzes e deitou-se na cama. Estava ainda mais nervoso. Aquele seria um encontro diferente não só pelas circunstâncias da “despedida”, mas por ser, literalmente, um encontro às escuras. Quando escolheu a garota e falou com ela através do chat, exigiu três coisas: escuridão, máscara e mudez. Apenas a máscara bastaria, contudo, Clint não queria correr o risco de se envolver como ocorrera das outras vezes. A garota não falaria com ele e não ligaria nenhuma luz. O objetivo era unir o prazer carnal do corpo da garota ao rosto da esposa. Portanto, o escuro seria ideal para aguçar sua imaginação.
A porta se abriu de repente e uma sombra adentrou o quarto.
O silêncio e a tensão aumentaram.
Como um predador, Clint sentiu a boca se encher de saliva, os sentidos aguçados. Ouviu as batidas do salto em direção à cama, o farfalhar das roupas sendo retiradas e o arrepio perante o passear das unhas pelas suas costas. O cheiro da pele daquela mulher o excitou. Tentou se virar para abraçá-la. Ela não deixou. Segurou seus braços e deitou-se sobre ele.
“Calma...”, ela sussurrou através da máscara.
Clint poderia ter reclamado sobre a quebra de contrato em relação à exigência de mudez, mas como o faria? Corpo com corpo, ela massageava suas costas com os seios, o púbis esfregado contra as nádegas dele.
Ele gemeu e fechou os olhos.
Estava entregue à luxúria.
*
CLINT ACORDOU AINDA ENVOLTO PELA ESCURIDÃO. Fora a melhor noite de sua vida. Tateou pela cama em desespero até encontrar o corpo ao seu lado. A mão deslizou por aquela pele como se tocasse em veludo. As coxas, as curvas, o sexo, tudo parecia esculpido em uma perfeição digna dos grandes escultores. “Deus existe.”, Clint sorriu. Levou a mão ao rosto da mulher e, como o combinado, ela ainda estava com a máscara. Resistiu à tentação de a arrancar e dar-lhe um beijo. Pensou em ligar a luz para ver aquele corpo deitado ao lado e chegou mesmo a sentar na cama pronto para se levantar, quando um choque o atingiu.Não podia fazer isso. Se dissesse não ter pensado em Rita naquela noite estaria mentindo. Porém, diferente do previsto, a imagem da esposa surgiu mais como um símbolo d
A TERÇA-FEIRA CHEGOU E TROUXE NOTAS DE ESTRANHEZA DILUÍDAS PELO AR. Como de praxe, tremores passeavam pelo corpo dele e a ansiedade se misturava ao cheiro do perfume. Mas dessa vez sentia algo mais intenso, como um corredor que chega à maratona e sabe que estará no alto do pódio. Apenas sabe.Clint passou o final de semana imerso em planos para encontrar uma forma de descobrir quem era aquela mulher com quem marcara o encontro. Poderia oferecer uma boa quantia em dinheiro para ela se mostrar; poderia apenas ligar a luz e arrancar a droga da máscara. É, sim, poderia. Porém, Clint gostava do desafio; do instinto quase animalesco de se esgueirar pelas bordas para abocanhar a presa.— Eu te disse que isso não ia certo. – Ramon comentou enquanto conversavam no refeitório da empresa. O amigo acabara de lhe contar sobre o encontro misterioso ocorrido na sexta-feira e sobre os pl
RITA ACORDOU, VIROU-SE NA CAMA E O CORAÇÃO DISPAROU. Clint sorria para ela sentado na poltrona no canto do quarto.— O q-que você faz aqui? Fora. FORA! – gritou e puxou os lençóis para cobrir o busto.O sorriso dele murchou e deu lugar ao desprezo. Contudo, quando falou foi em um tom de voz pacificador.— Rita, calma. Eu preciso muito falar com você. Por favor, eu...— SAI DO MEU QUARTO, CLINT!— Rita, por favor. Por favor, me escuta!Ele nunca foi disso, Rita lembrou. Os níveis de urgência de Clint podiam ser medidos pelo lugar escolhido para uma conversa importante. Se fosse na cama, logo ao amanhecer, era algo trivial, coisas do dia-a-dia. Conversas à mesa do café-da-manhã significavam algo de importância mediana. Quando esperava por ela sentado no sofá da sala até tarde da noite, a
AO VER OS FAROIS DO CARRO DE CLINT ENTRANDO NA GARAGEM, RITA SE PREPAROU PARA O MAIOR PASSO DE SUA VIDA. Não estava acostumada a ter aquele tipo de conversa, ainda mais uma que envolvia interesses tão delicados e o manejo de ofertas. De fato, sentia-se em um jogo de xadrez. A vantagem era que o rei estava em suas mãos.O difícil era não deixar o amor da rainha estragar tudo.Horas antes, a possibilidade de fazer um jantar para os dois lhe passou pela mente, mas desistiu ao perceber o quanto seria ridículo. Aquela conversa não seria uma reconciliação; não teriam um reencontro seis anos depois. “Você está em guerra, sua tola!”, a voz lhe alertou. Largou o livro de receitas sobre a bancada da cozinha e foi para a sala, o lugar onde, três horas depois, Clint a encontrou ao abrir a porta.Rita esperou ele se acomodar na poltrona de frente par
FRIEDRICH DURLLAND SE LEVANTOU DA CAMA COM DISPOSIÇÃO PARA CORRER E ASSIM O FEZ. O dia parecia decidido a colaborar com o humor dele e, ele assim previu ao acordar, o sol daquela manhã seria o indicativo de paz e harmonia. Voltou para casa, tomou café junto com os funcionários da residência e depois recolheu-se ao escritório para preservar o hábito de ler as notícias. Deu “olá” para o retrato da esposa, acomodou-se em uma poltrona, pôs os pés em uma banqueta e pegou o tablet. Sorria enquanto observava notas sobre a trivialidade dos famosos e continuou de bom humor diante das colunas sobre política. Deslizou mais algumas telas até uma certa imagem chamar sua atenção.Analisou-a e arregalou os olhos.Atualizou a página um par de vezes como se isso fosse fazer os pixels sumirem e desfazem o estrago na vida real. “Ele n
A SEGUNDA-FEIRA DESPERTOU VESTIDA COM FRIAGEM E NÉVOA. Muitos demoraram a sair da cama e poucos carros circulavam pela cidade. Enregelado, Ramon era um dos poucos com disposição para caminhar pelas ruas àquela hora da manhã. Preferiria ficar mais algumas horas na cama, mas a enrolada em que se envolvera o obrigava a enfrentar o frio rumo ao prédio da Durlland&Co. Enfiou as mãos no casaco e apertou o passo. A friagem não arrefeceu. “Onde é que eu fui me meter, meu Deus?”. Ao passar pela vitrine de uma loja de roupas masculinas, ele estancou. Um dos manequins trajava um terno de centenas de reais e usava um chapéu que fazia sombras sobre o rosto do boneco. Lembrou-se das palavras do pai ditas muitos anos atrás, pouco antes de o filho começar a trabalhar na companhia siderúrgica.“O trabalho é um bom lugar para conhecer amigos
O QUARTO DE RAMON SANMARIS ERA UMA EXTENSÃO DA ORGANIZAÇÃO DO SEU DONO. O cinza das cobertas da cama se destacava ao centro ladeado pela palidez do guarda-roupas, algumas prateleiras da mesma cor e uma mesinha de cabeceira onde repousavam uma imagem de São José e um terço desgastado. Clint entrou naquele mosteiro e logo tratou de escancarar as cortinas e abrir a varanda. Se o amigo não tivesse um filho ou não estivesse enrolado em um processo de separação, juraria que ali era a morada de um padre. Preferia ter ficado em casa, mas o amigo insistiu em levá-lo para o apartamento ao ver o estado em que Clint ficara após a notícia sobre ser o novo presidente da companhia siderúrgica. Sentou-se na cama e encarou as paredes. A placidez quase divina do quarto estava replicada em todos os demais aposentos.
CLINT CHEGOU EM CASA E DEIXOU-SE DESPENCAR NO SOFÁ DA SALA. As paredes giraram e um gosto azedo lhe veio à boca em uma brincadeira de subir e descer pelo esôfago. Fez um esforço para engolir o desconforto e observou os móveis. Nem ele nem Rita tinham uma religião definida. Assim, não havia imagens, cruzes ou rosários espalhados pela casa dispostos a bater um papo com ele.Sentiu o celular vibrar no bolso da calça. Não teve coragem de atender. Queria desaparecer. Se o termo “diretor de projetos” já era pesado, imagine a palavra “presidente”. Como teria cabeça para assumir a Durlland&Co. e ao mesmo tempo lidar com toda a situação com Rita?Olhou para o teto. O zunido do motor da geladeira era uma música estranha. Nunca o notara antes. Mesmo com a cozinha a certa distância, o som chegava até ali