O QUARTO DE RAMON SANMARIS ERA UMA EXTENSÃO DA ORGANIZAÇÃO DO SEU DONO. O cinza das cobertas da cama se destacava ao centro ladeado pela palidez do guarda-roupas, algumas prateleiras da mesma cor e uma mesinha de cabeceira onde repousavam uma imagem de São José e um terço desgastado. Clint entrou naquele mosteiro e logo tratou de escancarar as cortinas e abrir a varanda. Se o amigo não tivesse um filho ou não estivesse enrolado em um processo de separação, juraria que ali era a morada de um padre.
Preferia ter ficado em casa, mas o amigo insistiu em levá-lo para o apartamento ao ver o estado em que Clint ficara após a notícia sobre ser o novo presidente da companhia siderúrgica. Sentou-se na cama e encarou as paredes. A placidez quase divina do quarto estava replicada em todos os demais aposentos.
CLINT CHEGOU EM CASA E DEIXOU-SE DESPENCAR NO SOFÁ DA SALA. As paredes giraram e um gosto azedo lhe veio à boca em uma brincadeira de subir e descer pelo esôfago. Fez um esforço para engolir o desconforto e observou os móveis. Nem ele nem Rita tinham uma religião definida. Assim, não havia imagens, cruzes ou rosários espalhados pela casa dispostos a bater um papo com ele.Sentiu o celular vibrar no bolso da calça. Não teve coragem de atender. Queria desaparecer. Se o termo “diretor de projetos” já era pesado, imagine a palavra “presidente”. Como teria cabeça para assumir a Durlland&Co. e ao mesmo tempo lidar com toda a situação com Rita?Olhou para o teto. O zunido do motor da geladeira era uma música estranha. Nunca o notara antes. Mesmo com a cozinha a certa distância, o som chegava até ali
— E AÍ, NADA MESMO? – Beatriz terminava de arrumar a bolsa e já estava com a chave do carro nas mãos. — O Clint não é de recusar chamadas... Ainda mais a uma hora dessas da manhã. Eu o conheço, ele costuma acordar cedo... — O Clint que você conhecia, né, Rita? Porque, não sei se você percebeu, agora as coisas pioraram de vez. Não sei como você ainda consegue pensar em ligar pra ele... — Elas adoram o pai, Beatriz. Além disso... sabe... — Além disso o quê? – a irmã encarou a outra no esf
CERCADO POR CAIXAS E CORREIRA, FRIEDRICH PREPARAVA SUA MUDANÇA. Com os documentos encaminhados, reuniões realizadas e chantagens reforçadas, a saída do país seria tranquila. Em dois dias, teria a festa de apresentação de Tenner como novo presidente, uma oportunidade perfeita para encantar a opinião pública e justificar seu afastamento da empresa. Deixar a Durlland&Co. não foi tão fácil como previu. Não era como se livrar de livros velhos ou doar roupas usadas para outras pessoas. A Durlland era fruto de muito trabalho, muitas dores de cabeça e, não podia negar, milhões e milhões distribuídos para as “pessoas certas”. “Um mal necessário.”, ele justificava para si mesmo. Recebeu a empresa das mãos do pai
J.W. ABOTOAVA A CAMISA DE OLHO EM LEONA. Desde a assinatura de tudo e o anúncio oficial da mudança de presidente, a mulher, cujo nível de efusividade beirava o limite do bom senso, andava calada. — O que é que você tem, hein?! — Por quê? O olhar dela em direção à ele condizia com o seu nome. Iria atacar ao primeiro vestígio de fraqueza. — Não.... É que, sabe, você tá t-tão... calada. Tá esqui-quisita... Pela janela, Leona observou seus pensamentos correrem em dire&ccedi
DO OUTRO LADO DA CIDADE, RITA SE LEVANTOU DA CAMA COM DOR DE CABEÇA. Não gostava daquilo. Suas enxaquecas sempre vinham como o prenúncio de uma catástrofe. A última, duas semanas antes, despontara no dia da conversa com Clint sobre a tal festa da Durlland&Co. Ironia ou não, a dor decidira voltar um dia antes da comemoração, talvez para lhe chamar de “burra”. Mesmo após a briga com Clint, Rita decidiu ir à tal festa. Beatriz vociferou e gritou, chamou-a de “escrava de Clint”; de uma “mulher sem amor próprio”. Rita apenas ouviu sem nada dizer. Em sua consciência, ela pensava, devia essa última empreitada ao lado dele, afinal, havia um segredo, um último segredo. Se Clint agora chegava à presidência da empresa, o trunfo também era de
CLINT OLHOU PARA O LADO. Se lhe dissessem que acabara de despertar no inferno, ele não duvidaria. Havia pessoas por todo o canto daquele quarto, algumas pelo chão, outras no sofá e pelo menos umas cinco emboladas com ele na cama. Mulheres e homens nus como em um quadro medieval feito para representar o pecado. O cheiro de sexo poluía o aposento e era quase palpável, a luxúria a impregnar as roupas e os móveis. Era como se Calígula, De olhos bem fechados e Saló ou 120 dias de Sodoma fossem aglutinados para formarem um novo filme onde ele, senhor de todos os pecados, seria um deus dos prazeres.Tenner se sentou na cama e só então notou um detalhe: todos estavam sem máscaras. Sátiros, ninfas, mênades e príncipes cujas juventudes dos rostos estavam petrificadas pelo sono, todos vestidos apenas pela marca do Columbia: uma tatu
REDAÇÕES DE JORNAIS FERVILHAM, É UM FATO. A cada segundo, a cada minuto, os acontecimentos não param. Algo pode acontecer na esquina e, de repente, todas as pautas mudam, repórteres correm, telefones tocam, caixas de e-mail travam, celulares gritam e linhas e mais linhas de texto florescem com uma rapidez invejável. Johnn Kélvi, como sempre, corria de um lado para o outro. Já fizera duas entrevistas com estagiários, “Decepcionantes”, dissera aos colegas após o término das audições, realizara algumas dezenas de ligações e bebera muitos copinhos de café. Diga-se de passagem, café demais até para os padrões jornalísticos.Há alguns meses, ele fora chamado na sala do diretor do jornal e recebeu uma missão: apurar uma série de denúncias relacionadas ao todo poderoso Friedrich Du
RAMON ESTAVA EM UMA CADEIRA LONGE DA JANELA, ENCOBERTA PELA ESCURIDÃO DO ANOITECER. À frente, na mesa de centro, aquele pequeno quadrado de plástico e metal o incomodava como se lançasse perguntas, dúvidas e seduções. Não sabia de onde tirara coragem para entrar na sala da presidência da Durlland&Co. e copiar os documentos do velho Durlland. Na verdade, pensava agora, aquilo tudo fora quase um milagre.Friedrich não era tolo ao ponto de deixar um HD externo daquele tipo no cofre da empresa. No entanto, sua precaução o deixou vulnerável: havia uma segunda mídia escondida em outro cofre embutido atrás da parede de troféus de Durlland. Ciente do perigo de um ataque à qualquer momento, a raposa velha queria garantir a divulgação dos dados, uma vingança post mortem. Contudo, raposas com fome de poder t&eci