CLINT ACORDOU AINDA ENVOLTO PELA ESCURIDÃO. Fora a melhor noite de sua vida. Tateou pela cama em desespero até encontrar o corpo ao seu lado. A mão deslizou por aquela pele como se tocasse em veludo. As coxas, as curvas, o sexo, tudo parecia esculpido em uma perfeição digna dos grandes escultores. “Deus existe.”, Clint sorriu. Levou a mão ao rosto da mulher e, como o combinado, ela ainda estava com a máscara. Resistiu à tentação de a arrancar e dar-lhe um beijo. Pensou em ligar a luz para ver aquele corpo deitado ao lado e chegou mesmo a sentar na cama pronto para se levantar, quando um choque o atingiu.
Não podia fazer isso.
Se dissesse não ter pensado em Rita naquela noite estaria mentindo. Porém, diferente do previsto, a imagem da esposa surgiu mais como um símbolo de culpa. A tentativa de transformar aquela mulher em uma réplica do seu casamento não dera certo.
“A primeira tentativa é sempre frustrante.”, consolou-se Clint.
Sentiu a cama mexer. Até para se mover, ela tinha delicadeza. Parecia competir consigo mesma para ver se conseguia produzir o mínimo de ruído. Como se tocasse em um objeto de cristal, afastou a mão dele e levantou-se. Mesmo após algumas horas, os poros dela ainda secretavam aquele cheiro adocicado. Ouviu a porta do banheiro se abrir e em seguida o som do chuveiro.
Ele esfregou as pálpebras por um instante, pensativo. Talvez fosse impressão, mas, Clint ponderou, ela o estava provocando, convidando-o a quebrar a promessa e correr até lá. Um convite para retirar a máscara, olhar bem aquele rosto e beijá-la como nunca fizera com nenhuma mulher.
“Será que ela também não tem curiosidade de ver como eu sou? Não é possível ser assim tão profissional...”, concluiu já excitado. Um para o outro, eram apenas vulto e penumbra. Dois amantes sem rostos, sem formas, sem humanidade.
Pensou em Rita mais uma vez, desculpou-se e correu para o banheiro.
Depois de tanto tempo no escuro, a luz fluorescente no branco dos azulejos quase o cegou. Havia algumas toalhas jogadas por sobre o armário. Conseguiu divisar o box embaçado. Sem hesitação, correu a porta de vidro e levou as mãos à frente pronto para abraçá-la. Sentiu a água nos dedos e mais nada. Não havia ninguém.
Ele estava só.
Voltou para quarto e acendeu as luzes. O único vestígio de algo ocorrido ali eram os preservativos jogados no lixo. Cheirou os lençóis e o cheiro dela havia sumido. Não poderia ter sonhado com aquilo. Fora real, palpável, carnal. Tinha certeza.
Vestiu-se de qualquer jeito e saiu a toda do quarto. Correu para o elevador. Tocou o interfone e, antes mesmo do atendente falar, perguntou.
— Onde está a garota que dormiu comigo?
— Desculpe, senhor…?
— Tenner. Clint Tenner.
— Sim, sr. Tenner. Bom dia. Pode repetir a sua pergunta, por favor?
— A garota que dormiu comigo. A que horas ela saiu?
— A empresa não fornece esse tipo de registro aos clientes, sr. Tenner.
— Ora, vocês não têm câmeras de segurança, credenciais, listas? Eu preciso saber para onde ela foi!
— Sr. Tenner, o senhor sabe muito bem que é política da empresa não revelar dados sobre outros clientes ou sobre os funcionários. O senhor sabe: para a privacidade de todos os envolvidos. O senhor deve ter lido no contrato, não leu?
Clint esmurrou o interfone e viu uma rachadura surgir no painel. A página de acompanhantes do motel oferecia diversas garantias: desde um tipo de “cartão fidelidade para trair a esposa”, com acesso irrestrito ao elevador e garantia de privacidade, até a escolha ilimitada das acompanhantes e os melhores quartos. Com certeza, em letras miúdas, deveria ter alguma cláusula do tipo “… o(a) cliente fica proibido(a) de ter acesso aos dados pessoais das(os) acompanhantes…”.
Era ridículo.
Por que não fazia como qualquer pessoa e entrava em um motel qualquer? Ou, então, saia pelas ruas, parava em algum lugar e pegava uma prostituta como sempre fizera? Agora, por culpa da esposa, estava ali, feito idiota, em pleno amanhecer.
***
CHEGOU EM CASA MEIO ATORDOADO. Não esperava passar a noite no motel. Enquanto punha a chave na fechadura, agradeceu por ser sábado. Rita estaria no asilo e ele teria paz para apagar vestígios. Entrou, foi direto para a lavanderia, despiu-se e jogou tudo dentro da máquina de lavar. Vestiu um calção e virou-se. O coração quase saiu pela boca.
A esposa estava parada à porta.
— Por que você está lavando roupa? – ela perguntou em uma mescla de curiosidade e de desconfiança. Clint notou que a voz continuava a mesma de antes. Há muito tempo não tinham conversas cordiais. O susto de vê-lo ali com a roupa na máquina, algo que ele nunca fizera, pareceu dissipar os conflitos por um breve instante.
— E-E-Eu… Eu fiquei até tarde no escritório. Muito trabalho. Então.... como não tive tempo de levar para lavar ontem e hoje a lavanderia não abre, decidi fazer eu mesmo. – Clint engoliu em seco. Era uma péssima mentira e não tinha outra na manga. Não teve nem tempo para pensar em algo. Encarou a esposa e emendou. — Eu gosto muito desse terno.
Rita olhou nos olhos dele durante algum tempo. Não parecia irritada ou furiosa. Na verdade, era o tipo de pessoa paciente, conciliadora. Jamais a veriam descontrolada, aos gritos, capaz de espetáculos em público. Contudo, naquela manhã o olhar tinha algo de diferente. Balbuciou um “ok” e fez menção de sair, mas pareceu pensar melhor e deu meia volta.
— As meninas ligaram ontem. Elas estão bem. Devem vir passar parte das férias com a gente. Estão radiantes.
— Ah, que bom! Estou com saudades. Faz tanto tempo… Moramos a apenas duas horas delas e raramente nos encontramos, não é? É esquisito...
— É, é uma pena... Falando nisso, elas estavam tão felizes que ligaram pra todo mundo. Mamãe até chorou de tanta emoção. – Rita sorriu, pensativa. Os olhos brilharam ao voltar a fitar o marido. — Sabe o que também é estranho, Clint? Elas disseram que ligaram para o escritório ainda de tarde e a secretária falou que o expediente acabou bem mais cedo ontem e que você saiu antes das dezessete horas. Não é esquisito?
Voltou a sorrir e saiu.
Clint ficou com a língua engessada.
***
RITA PASSOU O FINAL DE SEMANA NO ASILO. Apesar de não emitir opinião alguma, a atitude deixava claro o nível de aborrecimento. Desta vez, o marido ultrapassara algum dos limites abstratos até então erguidos em torno do casamento. Quando ela ligou para a mãe e combinaram de almoçar juntas, então, Clint teve certeza da situação em que estava. As duas não tinham uma relação muito dada a afagos. De fato, Rita e a mãe pareciam viver em uma disputa, mais como irmãs em rixa. No entanto, se os maridos faziam algo de errado, logo esqueciam das diferenças e viravam confidentes prontas para o combate. E nessa guerra, Clint sabia, ele era o inimigo a ser abatido.
Como sempre ocorria nesses momentos, a palavra “divórcio” flutuou entre as suas ideias. Junto a ela, porém, brotaram os termos “processo”, “pensão”, “advogados”, “dores de cabeça”, “burburinho”, “comentários”, “vizinhança”. Não. Era mais fácil e barato tentar reconquistar a esposa. “Muito mais barato.”, concluiu. E ainda tinha a vantagem de ela não desconfiar de nada, ou, mesmo se desconfiasse, não ter provas contra ele.
Enquanto almoçava na solidão da mesa, as paredes e o lustre como companhias, Clint começou a analisar a primeira dose do tratamento ao qual se propusera. Não fora tão ruim. Diferente das outras vezes, ele não estava com o rosto da acompanhante na cabeça ou ficara apegado a alguma característica mais chamativa da moça, como sinais, formato dos seios ou a cor do cabelo. Tudo parecia um sonho, quase um devaneio.
Sim, esse era o objetivo.
“Mas falta alguma coisa…”, avaliou.
O lustre deu uma balançada. Até aquele emaranhado de cristais, cuja quantidade de brilho beirava a indecência, esfregava em seu rosto a necessidade de mudança. Rita insistira em comprar a luminária um mês depois de terem reformado a casa. Disse que seria uma forma de dar mais aconchego ao lar. Clint enviesou o canto da boca. O brilho daquele lustre nunca presenciou família alguma reunida naquela mesa.
“Falta alguma coisa...”, tornou a refletir.
A luminária fora uma tentativa de dar à situação da casa algo extraordinário, tão fora da curva de normalidade ao ponto de fazer o casal esquecer das diferenças e focar a atenção naquele brilho. Uma compensação vulgar contra o vazio da casa. Algo banal em troca de um “bem maior”.
Os cristais encontraram o olhar de Clint. Acima de uma terapia, aquilo tudo ainda era uma despedida. O lustre era uma despedida, sim. As mulheres, também. Portanto, merecia algo de fato inesquecível, não? Um prêmio diante de tamanho esforço.
Como se os talheres estivessem eletrificados, ele os jogou no prato e correu para o quarto. O suor escorria pela testa e os pés balançavam, inquietos. Abriu o notebook, fez algumas buscas e foi certeiro para as antigas companhias, colegas de velhos tempos. Passou a mão para enxugar o suor escorrido pelo rosto. Conhecia cada centímetro daqueles corpos, cada gosto, cada toque. Poderia escolher qualquer uma delas e realizar as maiores fantasias. Poderia mesmo contratar um grupo para o seu gran finale. E então, os pensamentos começaram a girar, Clint ofegou e os dedos deslizaram sozinhos pelo teclado. Ao se dar conta, estava na página do Columbia.
Parou por um instante e caminhou até a janela. O carro de Rita não estava na garagem. O vizinho da frente varria as folhas da calçada. Fechou as persianas, trancou a porta e mergulhou no escuro. Procurou um pouco e achou. “Typhany”, Clint leu na descrição. Diferente do escritório, a privacidade de casa lhe dava a oportunidade para investigar os atributos daquela mulher. Mas se decepcionou. Seguindo o conceito de amor às escondidas, as fotos eram, em sua maioria, apenas da silhueta ou de um close de partes específicas como o umbigo, os mamilos ou a boca.
Era inacreditável e ao mesmo tempo tentador.
Perdido naquelas fotos, Clint só voltou a si ao ouvir o som de passos no andar de baixo. Rita não entraria no quarto. Ele sabia disso. Contudo, a simples presença dela na casa o deixava incomodado. Não tinha tempo para pensar. Clicou no ícone “CONTRATAR” e quando a tela de chat abriu digitou apenas “Cliente às escuras da sexta. Encontro terça-feira. Mesmo horário e mesmo quarto?”.
Segundos depois, Clint se arrepiou ao ouvir o som do recebimento de mensagem e ver a resposta: “Ok.”
Desligou tudo e ficou quieto. A esposa caminhava pela casa. Ao entrar na sala de jantar, ele conseguiu imaginar, Rita pararia à porta e olharia para o prato deixado sobre a mesa. Ergueria a cabeça e observaria o lustre. Talvez, apenas talvez, o olhar dela pudesse ver através do teto e ambos agora se encaravam, ele na escuridão daquele quarto, ela sob o brilho de cristais.
Clint desviou o olhar.
*
A TERÇA-FEIRA CHEGOU E TROUXE NOTAS DE ESTRANHEZA DILUÍDAS PELO AR. Como de praxe, tremores passeavam pelo corpo dele e a ansiedade se misturava ao cheiro do perfume. Mas dessa vez sentia algo mais intenso, como um corredor que chega à maratona e sabe que estará no alto do pódio. Apenas sabe.Clint passou o final de semana imerso em planos para encontrar uma forma de descobrir quem era aquela mulher com quem marcara o encontro. Poderia oferecer uma boa quantia em dinheiro para ela se mostrar; poderia apenas ligar a luz e arrancar a droga da máscara. É, sim, poderia. Porém, Clint gostava do desafio; do instinto quase animalesco de se esgueirar pelas bordas para abocanhar a presa.— Eu te disse que isso não ia certo. – Ramon comentou enquanto conversavam no refeitório da empresa. O amigo acabara de lhe contar sobre o encontro misterioso ocorrido na sexta-feira e sobre os pl
RITA ACORDOU, VIROU-SE NA CAMA E O CORAÇÃO DISPAROU. Clint sorria para ela sentado na poltrona no canto do quarto.— O q-que você faz aqui? Fora. FORA! – gritou e puxou os lençóis para cobrir o busto.O sorriso dele murchou e deu lugar ao desprezo. Contudo, quando falou foi em um tom de voz pacificador.— Rita, calma. Eu preciso muito falar com você. Por favor, eu...— SAI DO MEU QUARTO, CLINT!— Rita, por favor. Por favor, me escuta!Ele nunca foi disso, Rita lembrou. Os níveis de urgência de Clint podiam ser medidos pelo lugar escolhido para uma conversa importante. Se fosse na cama, logo ao amanhecer, era algo trivial, coisas do dia-a-dia. Conversas à mesa do café-da-manhã significavam algo de importância mediana. Quando esperava por ela sentado no sofá da sala até tarde da noite, a
AO VER OS FAROIS DO CARRO DE CLINT ENTRANDO NA GARAGEM, RITA SE PREPAROU PARA O MAIOR PASSO DE SUA VIDA. Não estava acostumada a ter aquele tipo de conversa, ainda mais uma que envolvia interesses tão delicados e o manejo de ofertas. De fato, sentia-se em um jogo de xadrez. A vantagem era que o rei estava em suas mãos.O difícil era não deixar o amor da rainha estragar tudo.Horas antes, a possibilidade de fazer um jantar para os dois lhe passou pela mente, mas desistiu ao perceber o quanto seria ridículo. Aquela conversa não seria uma reconciliação; não teriam um reencontro seis anos depois. “Você está em guerra, sua tola!”, a voz lhe alertou. Largou o livro de receitas sobre a bancada da cozinha e foi para a sala, o lugar onde, três horas depois, Clint a encontrou ao abrir a porta.Rita esperou ele se acomodar na poltrona de frente par
FRIEDRICH DURLLAND SE LEVANTOU DA CAMA COM DISPOSIÇÃO PARA CORRER E ASSIM O FEZ. O dia parecia decidido a colaborar com o humor dele e, ele assim previu ao acordar, o sol daquela manhã seria o indicativo de paz e harmonia. Voltou para casa, tomou café junto com os funcionários da residência e depois recolheu-se ao escritório para preservar o hábito de ler as notícias. Deu “olá” para o retrato da esposa, acomodou-se em uma poltrona, pôs os pés em uma banqueta e pegou o tablet. Sorria enquanto observava notas sobre a trivialidade dos famosos e continuou de bom humor diante das colunas sobre política. Deslizou mais algumas telas até uma certa imagem chamar sua atenção.Analisou-a e arregalou os olhos.Atualizou a página um par de vezes como se isso fosse fazer os pixels sumirem e desfazem o estrago na vida real. “Ele n
A SEGUNDA-FEIRA DESPERTOU VESTIDA COM FRIAGEM E NÉVOA. Muitos demoraram a sair da cama e poucos carros circulavam pela cidade. Enregelado, Ramon era um dos poucos com disposição para caminhar pelas ruas àquela hora da manhã. Preferiria ficar mais algumas horas na cama, mas a enrolada em que se envolvera o obrigava a enfrentar o frio rumo ao prédio da Durlland&Co. Enfiou as mãos no casaco e apertou o passo. A friagem não arrefeceu. “Onde é que eu fui me meter, meu Deus?”. Ao passar pela vitrine de uma loja de roupas masculinas, ele estancou. Um dos manequins trajava um terno de centenas de reais e usava um chapéu que fazia sombras sobre o rosto do boneco. Lembrou-se das palavras do pai ditas muitos anos atrás, pouco antes de o filho começar a trabalhar na companhia siderúrgica.“O trabalho é um bom lugar para conhecer amigos
O QUARTO DE RAMON SANMARIS ERA UMA EXTENSÃO DA ORGANIZAÇÃO DO SEU DONO. O cinza das cobertas da cama se destacava ao centro ladeado pela palidez do guarda-roupas, algumas prateleiras da mesma cor e uma mesinha de cabeceira onde repousavam uma imagem de São José e um terço desgastado. Clint entrou naquele mosteiro e logo tratou de escancarar as cortinas e abrir a varanda. Se o amigo não tivesse um filho ou não estivesse enrolado em um processo de separação, juraria que ali era a morada de um padre. Preferia ter ficado em casa, mas o amigo insistiu em levá-lo para o apartamento ao ver o estado em que Clint ficara após a notícia sobre ser o novo presidente da companhia siderúrgica. Sentou-se na cama e encarou as paredes. A placidez quase divina do quarto estava replicada em todos os demais aposentos.
CLINT CHEGOU EM CASA E DEIXOU-SE DESPENCAR NO SOFÁ DA SALA. As paredes giraram e um gosto azedo lhe veio à boca em uma brincadeira de subir e descer pelo esôfago. Fez um esforço para engolir o desconforto e observou os móveis. Nem ele nem Rita tinham uma religião definida. Assim, não havia imagens, cruzes ou rosários espalhados pela casa dispostos a bater um papo com ele.Sentiu o celular vibrar no bolso da calça. Não teve coragem de atender. Queria desaparecer. Se o termo “diretor de projetos” já era pesado, imagine a palavra “presidente”. Como teria cabeça para assumir a Durlland&Co. e ao mesmo tempo lidar com toda a situação com Rita?Olhou para o teto. O zunido do motor da geladeira era uma música estranha. Nunca o notara antes. Mesmo com a cozinha a certa distância, o som chegava até ali
— E AÍ, NADA MESMO? – Beatriz terminava de arrumar a bolsa e já estava com a chave do carro nas mãos. — O Clint não é de recusar chamadas... Ainda mais a uma hora dessas da manhã. Eu o conheço, ele costuma acordar cedo... — O Clint que você conhecia, né, Rita? Porque, não sei se você percebeu, agora as coisas pioraram de vez. Não sei como você ainda consegue pensar em ligar pra ele... — Elas adoram o pai, Beatriz. Além disso... sabe... — Além disso o quê? – a irmã encarou a outra no esf