Capítulo IV

Na manhã seguinte, Simon estava deveras incomodado com aquele diário. Havia passado desde o amanhecer lendo e relendo seus trechos, organizando informações em sua cabeça e decorando maneiras de falar. Ele havia se convencido de que, cedo ou tarde, ele teria de voltar às farsas para sobreviver. Simon começara com estes trabalhos de farsante desde a morte dos pais, há dois anos, quando ficou sem dinheiro e sem meios de sustentar seus irmãos. Seu amigo, Jared, que havia crescido a seu lado, o convenceu de que esta poderia ser uma maneira simples de conseguir dinheiro suficiente para comprar comida para os irmãos, sem ter que abandonar a única casa que eles tinham em toda Londres. Simon, mesmo incomodado com a ideia da mentira, entendeu que nada era simples e que seria aquilo, ou se matar de trabalhar na lavoura ou lojas para ganhar o dinheiro suficiente para comprar apenas um pedaço de pão. Ele não podia deixar seu irmão morrer. Aprendeu a ler, escrever e tudo o que pode, enquanto vigiava e roubava livros da casa de nobres que possuíam algum tipo de negócio. Quando estudava um nobre o suficiente, ele o fazia desaparecer por um dia e assumia sua identidade para comprar comida, roupas, pegar livros e outros tipos de necessidades que por alguma razão precisasse. Algumas vezes, chegava a fazer dois tipos de farsa durante a semana, para ter meios suficiente de comer e ainda comprar ervas para cuidar da saúde de Robbie e Lizzie. Mas, desde que sua irmã havia desaparecido, Simon não havia feito uma farsa se quer. Ele começava a entender que, ou retornava, ou passaria fome dependendo dos vizinhos, isso era tudo o que ele não queria, afinal, prometera a seus pais que cuidaria bem de seus irmãos por toda sua vida.

— Simon! Simon!

— Oi amigão, estou aqui! — Simon voltou sua atenção para a porta do quarto.

— Pensei que havia saído... O que você está fazendo? — Robert caminhou calmamente até a mesa e se sentou, enquanto esfregava os olhos com o dorso da mão.

— Eu estava esperando você acordar para sairmos juntos, o que acha? — Ele sorri, debruçando-se sobre a mesa empoeirada.

— Verdade? Posso mesmo ir com você?! — Robbie abre um sorriso de orelha a orelha.

— Pode sim. Vamos, vá lavar o rosto e então saímos. — Simon da leves toques em seu ombro, o motivando a se levantar.

— Espere por mim!

Robert sai correndo pela casa até o corredor, localizado poucos metros à direita da entrada do quarto, quase tropeçando na caixa velha atrás da mesa. Colocou-se na ponta dos pés para alcançar o velho tanque de pedra oval, com um balde grande de água dentro dele. Robbie esticou o braço e agarrou o pequeno copo de metal que usava para pegar água, com ele despejou-a sobre o rosto e correu de volta para a cozinha, secando o rosto com a ajuda da manga da blusa. Logo, ambos saíram de mãos dadas.

Andaram por toda a rua, cruzando com vizinhos, carruagens e velhas barracas que vendiam doces, pães, roupas, sapatos, utensílios de lavoura, entre outras diversas coisas do dia a dia. Robert por pouco não tropeça em um dos tortos e quebrados paralelepípedos, que compõem a estrada das margens do tamisa ao palácio de Hinxtone. Poucos metros à noroeste deles estava a praça pública onde todos ouviam os decretos e mensagens daquela semana. As coletas de impostos foram antecipadas, orações todo domingo de manhã na Abadia de Westminster haviam sido canceladas para duas horas mais tarde no próximo domingo, já que o Bispo havia adoecido e todos souberam da morte do rei da Escócia. Simon especialmente se interessava pelas notícias, mas Robert só se importava com o cheiro dos pães vindos da padaria do outro lado da rua.

— Simon, podemos comprar um pão? — questiona ele, erguendo o olhar esperançoso.

— Não Robbie, sinto muito. Mais tarde eu prometo que você vai comer, tudo bem? — Simon engoliu seco, forçando um sorriso.

Andaram metros pela cidade, até chegarem ao início da estrada distante, onde Simon havia encontrado aqueles homens mortos. Ele se preocupava que ainda estivessem lá, por isso, segurou firme nas mãos de Robert e seguiu devagar. Por todo o trajeto, ambos gritavam pela irmã e observavam por dentre as árvores, floresta à dentro, esperançosos em ver a garota passar ou sair de lá com um sorriso, sã e salva. No entanto, o que Simon viu fora algo mais preocupante. Homens vasculhavam a carruagem destruída, metros à frente. Simon puxou a mão de Robert, seguindo para o meio das árvores, até pararem em um ponto longe da vista da estrada.

— Escuta amigão, agora eu preciso que você seja obediente, tudo bem?

— O que houve? — Robert murmurou confuso, encarando-o sem expressão.

— Lembra de onde eu encontrei essas roupas? — Robbie maneou a cabeça — Pois então. Essas são as roupas de um duque muito importante, que infelizmente morreu. Você quer comer, certo? O que você acha de eu ser o duque?

— Mas isso é perigoso, é errado! Mamãe sempre disse que mentir leva a gente para o lugar ruim! — Robbie o encarou com preocupação.

— Eu sei que é, Robbie, mas pense que estamos com muita fome, não temos como trabalhar, temos que procurar pela Lizzie. Ele está morto, ninguém sabe como ele é, se fizermos isso, só por um tempo, podemos comer e ter uma forma de procurar pela Lizzie... O que você acha? Vamos, amigão, seja legal só desta vez, tudo bem? Prometo que tudo sairá bem!

— Você me promete que isso não vai machucar ninguém e que será por pouco tempo?

— Eu juro de dedinho!

Simon ergue o dedo mindinho e sela a promessa com o irmão. Um sorriso brota em seu rosto, contagiando Robert. Simon lhe explica o que ambos fariam e então sorri quando, por fim, o mais novo afirma estar pronto. Simon pega sua faca do bolso, corta seu braço, pouco abaixo do pescoço, faz pequenos arranhões no rosto e suja suas roupas e as de Robbie com terra. Logo, ambos saem de entre as árvores, tomando a atenção dos guardas da realeza, que seguravam suas espadas, prontos para atacá-los.

— Acalmem-se, sou eu, duque de Devonshire, Simon Edward Louis I Mountbatten, este é meu irmão mais novo, Robert Winston Louis Albert I Mountbatten.

— Como assim, você tem a coragem de mentir descaradamente? Acabamos de ver o duque morto dentro da carruagem! — O chefe da guarda exclamou, apontando-lhe a espada.

— Este era meu mordomo, sir Vincent d'Austen, trocamos de roupa para enganarmos os ladrões. Aqui, vejam meu anel, o brasão dos Mountbatten!

— É verdade chefe, é o brasão da casa Mountbatten... E sendo sincero, ninguém conhece as feições do duque, se lembra? — sussurrou o guarda, ao pé do ouvido de seu chefe.

— E este é seu irmão? Quer que acreditemos nisso? Como não soubemos dele? — retrucou o chefe da guarda, meio à balbucias.

— Creio que seja por culpa minha. Nunca divulgamos nossa vida intima à corte, não depois de minha reclusão, acredito que meu mordomo deva ter falhado ao notificar o séquito que me acompanharia na viajem, assim como errou quando disse em cartas que me chamava Gregory.... Como se receber o nome de meu avô fosse uma grande honra! — Simon murmurou encenando estar indignado com a situação.

Robert permanecia em silencio até então, no entanto, puxou a manga das vestes de seu irmão, antes de falar.

— Simon, este guarda irá nos ferir também? Pensei que cuidariam de nós... Quero ir para casa! — diz ele em tom de choro.

— Acalme-se pequeno, eles não cometeriam tal infâmia para com nossa família... Acredito que o rei George esteja me aguardando neste momento, ao menos é o que dizia a carta que enviou há cerca de duas semanas. — Simon demonstrou firmeza e seriedade, enquanto mantinha o queixo erguido.

Os guardas ficaram desconcertados e logo se curvaram em pedido de desculpas. Ambos começam a arrumar as coisas do duque, após baixarem as espadas.

— Peço que nos perdoe, duque. É nosso dever garantir a verdade, para evitar problemas. Espero que entenda. — Ele se curvou novamente, ajoelhando uma de suas pernas.

— Não se incomode, sei que está fazendo seu trabalho, entendo perfeitamente. Peço apenas que nos perdoe pelos trajes em que estamos. Acabamos nos ferindo e dormimos na floresta, por medo de retornar. Viemos hoje, na esperança de poder procurar ajuda...

— A claro, seus ferimentos. Peço que vossa excelência não se preocupe, cuidaremos para que possa curar suas feridas e se lavarem antes de seguirmos para a corte. — O guarda se ergueu num sobressalto, reverenciando-o antes de se juntar aos outros.

Todos começaram a organizar as coisas do duque, fecharam os baús e moveram tudo para colocarem sobre os cavalos. Por fim, Simon e Robert os acompanharam em direção ao palácio de Hinxtone. Mal podiam acreditar que realmente haviam conseguido assumir tais identidades. Tanta sorte certamente seria uma dádiva entregue por Deus, e finalmente teriam meios de procurar sua irmã.

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