Na manhã seguinte, Simon estava deveras incomodado com aquele diário. Havia passado desde o amanhecer lendo e relendo seus trechos, organizando informações em sua cabeça e decorando maneiras de falar. Ele havia se convencido de que, cedo ou tarde, ele teria de voltar às farsas para sobreviver. Simon começara com estes trabalhos de farsante desde a morte dos pais, há dois anos, quando ficou sem dinheiro e sem meios de sustentar seus irmãos. Seu amigo, Jared, que havia crescido a seu lado, o convenceu de que esta poderia ser uma maneira simples de conseguir dinheiro suficiente para comprar comida para os irmãos, sem ter que abandonar a única casa que eles tinham em toda Londres. Simon, mesmo incomodado com a ideia da mentira, entendeu que nada era simples e que seria aquilo, ou se matar de trabalhar na lavoura ou lojas para ganhar o dinheiro suficiente para comprar apenas um pedaço de pão. Ele não podia deixar seu irmão morrer. Aprendeu a ler, escrever e tudo o que pode, enquanto vigiava e roubava livros da casa de nobres que possuíam algum tipo de negócio. Quando estudava um nobre o suficiente, ele o fazia desaparecer por um dia e assumia sua identidade para comprar comida, roupas, pegar livros e outros tipos de necessidades que por alguma razão precisasse. Algumas vezes, chegava a fazer dois tipos de farsa durante a semana, para ter meios suficiente de comer e ainda comprar ervas para cuidar da saúde de Robbie e Lizzie. Mas, desde que sua irmã havia desaparecido, Simon não havia feito uma farsa se quer. Ele começava a entender que, ou retornava, ou passaria fome dependendo dos vizinhos, isso era tudo o que ele não queria, afinal, prometera a seus pais que cuidaria bem de seus irmãos por toda sua vida.
— Simon! Simon!
— Oi amigão, estou aqui! — Simon voltou sua atenção para a porta do quarto.
— Pensei que havia saído... O que você está fazendo? — Robert caminhou calmamente até a mesa e se sentou, enquanto esfregava os olhos com o dorso da mão.
— Eu estava esperando você acordar para sairmos juntos, o que acha? — Ele sorri, debruçando-se sobre a mesa empoeirada.
— Verdade? Posso mesmo ir com você?! — Robbie abre um sorriso de orelha a orelha.
— Pode sim. Vamos, vá lavar o rosto e então saímos. — Simon da leves toques em seu ombro, o motivando a se levantar.
— Espere por mim!
Robert sai correndo pela casa até o corredor, localizado poucos metros à direita da entrada do quarto, quase tropeçando na caixa velha atrás da mesa. Colocou-se na ponta dos pés para alcançar o velho tanque de pedra oval, com um balde grande de água dentro dele. Robbie esticou o braço e agarrou o pequeno copo de metal que usava para pegar água, com ele despejou-a sobre o rosto e correu de volta para a cozinha, secando o rosto com a ajuda da manga da blusa. Logo, ambos saíram de mãos dadas.
Andaram por toda a rua, cruzando com vizinhos, carruagens e velhas barracas que vendiam doces, pães, roupas, sapatos, utensílios de lavoura, entre outras diversas coisas do dia a dia. Robert por pouco não tropeça em um dos tortos e quebrados paralelepípedos, que compõem a estrada das margens do tamisa ao palácio de Hinxtone. Poucos metros à noroeste deles estava a praça pública onde todos ouviam os decretos e mensagens daquela semana. As coletas de impostos foram antecipadas, orações todo domingo de manhã na Abadia de Westminster haviam sido canceladas para duas horas mais tarde no próximo domingo, já que o Bispo havia adoecido e todos souberam da morte do rei da Escócia. Simon especialmente se interessava pelas notícias, mas Robert só se importava com o cheiro dos pães vindos da padaria do outro lado da rua.
— Simon, podemos comprar um pão? — questiona ele, erguendo o olhar esperançoso.
— Não Robbie, sinto muito. Mais tarde eu prometo que você vai comer, tudo bem? — Simon engoliu seco, forçando um sorriso.
Andaram metros pela cidade, até chegarem ao início da estrada distante, onde Simon havia encontrado aqueles homens mortos. Ele se preocupava que ainda estivessem lá, por isso, segurou firme nas mãos de Robert e seguiu devagar. Por todo o trajeto, ambos gritavam pela irmã e observavam por dentre as árvores, floresta à dentro, esperançosos em ver a garota passar ou sair de lá com um sorriso, sã e salva. No entanto, o que Simon viu fora algo mais preocupante. Homens vasculhavam a carruagem destruída, metros à frente. Simon puxou a mão de Robert, seguindo para o meio das árvores, até pararem em um ponto longe da vista da estrada.
— Escuta amigão, agora eu preciso que você seja obediente, tudo bem?
— O que houve? — Robert murmurou confuso, encarando-o sem expressão.
— Lembra de onde eu encontrei essas roupas? — Robbie maneou a cabeça — Pois então. Essas são as roupas de um duque muito importante, que infelizmente morreu. Você quer comer, certo? O que você acha de eu ser o duque?
— Mas isso é perigoso, é errado! Mamãe sempre disse que mentir leva a gente para o lugar ruim! — Robbie o encarou com preocupação.
— Eu sei que é, Robbie, mas pense que estamos com muita fome, não temos como trabalhar, temos que procurar pela Lizzie. Ele está morto, ninguém sabe como ele é, se fizermos isso, só por um tempo, podemos comer e ter uma forma de procurar pela Lizzie... O que você acha? Vamos, amigão, seja legal só desta vez, tudo bem? Prometo que tudo sairá bem!
— Você me promete que isso não vai machucar ninguém e que será por pouco tempo?
— Eu juro de dedinho!
Simon ergue o dedo mindinho e sela a promessa com o irmão. Um sorriso brota em seu rosto, contagiando Robert. Simon lhe explica o que ambos fariam e então sorri quando, por fim, o mais novo afirma estar pronto. Simon pega sua faca do bolso, corta seu braço, pouco abaixo do pescoço, faz pequenos arranhões no rosto e suja suas roupas e as de Robbie com terra. Logo, ambos saem de entre as árvores, tomando a atenção dos guardas da realeza, que seguravam suas espadas, prontos para atacá-los.
— Acalmem-se, sou eu, duque de Devonshire, Simon Edward Louis I Mountbatten, este é meu irmão mais novo, Robert Winston Louis Albert I Mountbatten.
— Como assim, você tem a coragem de mentir descaradamente? Acabamos de ver o duque morto dentro da carruagem! — O chefe da guarda exclamou, apontando-lhe a espada.
— Este era meu mordomo, sir Vincent d'Austen, trocamos de roupa para enganarmos os ladrões. Aqui, vejam meu anel, o brasão dos Mountbatten!
— É verdade chefe, é o brasão da casa Mountbatten... E sendo sincero, ninguém conhece as feições do duque, se lembra? — sussurrou o guarda, ao pé do ouvido de seu chefe.
— E este é seu irmão? Quer que acreditemos nisso? Como não soubemos dele? — retrucou o chefe da guarda, meio à balbucias.
— Creio que seja por culpa minha. Nunca divulgamos nossa vida intima à corte, não depois de minha reclusão, acredito que meu mordomo deva ter falhado ao notificar o séquito que me acompanharia na viajem, assim como errou quando disse em cartas que me chamava Gregory.... Como se receber o nome de meu avô fosse uma grande honra! — Simon murmurou encenando estar indignado com a situação.
Robert permanecia em silencio até então, no entanto, puxou a manga das vestes de seu irmão, antes de falar.
— Simon, este guarda irá nos ferir também? Pensei que cuidariam de nós... Quero ir para casa! — diz ele em tom de choro.
— Acalme-se pequeno, eles não cometeriam tal infâmia para com nossa família... Acredito que o rei George esteja me aguardando neste momento, ao menos é o que dizia a carta que enviou há cerca de duas semanas. — Simon demonstrou firmeza e seriedade, enquanto mantinha o queixo erguido.
Os guardas ficaram desconcertados e logo se curvaram em pedido de desculpas. Ambos começam a arrumar as coisas do duque, após baixarem as espadas.
— Peço que nos perdoe, duque. É nosso dever garantir a verdade, para evitar problemas. Espero que entenda. — Ele se curvou novamente, ajoelhando uma de suas pernas.
— Não se incomode, sei que está fazendo seu trabalho, entendo perfeitamente. Peço apenas que nos perdoe pelos trajes em que estamos. Acabamos nos ferindo e dormimos na floresta, por medo de retornar. Viemos hoje, na esperança de poder procurar ajuda...
— A claro, seus ferimentos. Peço que vossa excelência não se preocupe, cuidaremos para que possa curar suas feridas e se lavarem antes de seguirmos para a corte. — O guarda se ergueu num sobressalto, reverenciando-o antes de se juntar aos outros.
Todos começaram a organizar as coisas do duque, fecharam os baús e moveram tudo para colocarem sobre os cavalos. Por fim, Simon e Robert os acompanharam em direção ao palácio de Hinxtone. Mal podiam acreditar que realmente haviam conseguido assumir tais identidades. Tanta sorte certamente seria uma dádiva entregue por Deus, e finalmente teriam meios de procurar sua irmã.
"...Ele é diferente do que esperava. Quando o conheci, naquela manhã, pude perceber que ele não me olhava com cuidado, ele quase despiu-me com os olhos, nunca me senti tão invadida com o olhar de alguém... Nem pelo de Henry. Talvez seja apenas um devaneio meu, ou uma sensação longa e aguda de solida que me faz sentir atraída por todos. Por que fiquei tão mexida com o olhar daquele homem? Mas por que me importar? Por que é tão errado que eu me sinta bem e queira ser desejada e olhada daquela forma? Porque somente Henry tem o direito de me humilhar e me fazer sentir horrível, beijando cada moça que cruza seu caminho e bem na minha frente! Apenas por que sou uma mulher? Nem mesmo o título de rainha me garante liberdade?... Pai, sinto-me frustrada."— Charlotte, março de 1648. Henry adentrou o salão de guerra, após dispensar os guardas que ladeavam a porta. O salão de guerra e
Henry deixou a sala poucos minutos após a saída do pai. Seu destino seguinte: encontrar-se com Jacob Somerset. Sabia que provavelmente o encontraria em algum canto do palácio bebendo ou com alguma mulher. Somerset deleitava de seu tempo sozinho, o que geravam fofocas de que ele era uma pessoa estranha, que não gostava das mulheres e que era uma pessoa perigosa. No fim das contas, os boatos provaram-se verdadeiros, exceto pelo não gostar de mulheres, pelo contrário, gostava tanto de mulheres, quanto de homens. Era um sir, ou senhor como é mais frequentemente usado, desta forma, Jacob Somerset é um nobre, mas seu título tão baixo não o faz tem tamanho prestígio para que os nobres o respeitem, além do mais, suas riquezas são quase nulas, tendo somente poucas propriedades a qual se intitular dono. Seu único poder provem do título de amigo do príncipe e seu cão de caça. Por tal motivo, é plausível julgar-se que Sir Jacob não era uma pessoa com
Charlotte sabia que momentos como aquele eram raros, principalmente na corte inglesa, portanto aproveitava. Não poupou risadas ou gritos, enquanto seu cavalo corria desenfreado e alegre pelos campos ensolarados e vazios. Observou Charles metros atrás de si, com um sorriso emburrado delineando os lábios e olhos, tão castanhos e brilhantes, semicerrados. A mechas de seu cabelo castanho escuro decaindo sobre os olhos, totalmente bagunçados, após vários galopes nada gentis de seu cavalo. — Vá com calma, quer matar meu cavalo de cansaço?! — exclamou o homem. — Talvez devesse mudar de montaria, vejo que seu belo cavalo não serve nem para um singelo passeio! — Charlotte ri, berrando por cima do ombro. — Ora, mas quem será que está convencida? Ele está apenas indisposto, seu cavalo que é ab
Quando por fim chegaram ao quarto, Simon e Robert foram deixados a sós pelos guardas que saíram assim que acomodaram seus pertences no aposento. A pedido de Simon, Robert dormiria com ele, o que deixou o menino feliz, já que detestava a ideia de se afastar do irmão. Robert havia mudado muito depois da morte dos pais; não dormia sozinho, temia sempre que fosse deixado, o que se ampliou após o desaparecimento da irmã. Simon era o mais velho e desde muito jovem ajudava os pais a cuidar dos irmãos, forçando-o a trabalhar desde seus onze anos. Ele não reclamava. Simon sabia que fazia o certo e faria mais, se significasse trazer alegria a seus pais. No entanto, a repentina doença que os assolou trouxe ao rapaz uma carga de responsabilidade maior do que ele poderia suportar. Seu trabalho já não era o suficiente para ajudar os pais, que aos poucos foram ficando debilitados. Simon chegou a se privar de fome, para que não faltasse o pedaço de pão d
Charlotte seguiu ao salão do trono onde acompanhou a rainha Caterina, que ficou sentada enquanto observava a mais nova rodeada pelas damas. Ela sentia a hostilidade de Caterina desde que se casou com o rei George, durante a primavera de seus 10 anos, em uma das viagens à corte que Charlotte fazia periodicamente em momentos importantes. Naquele tempo entendeu que, Caterina, não era uma mulher calma, gentil e humilde como diziam. No entanto ela era uma de Médici e era respeitada graças à riqueza, fama e poder de sua família. Charlotte sorria cordialmente, enquanto ouvia os nobres conversarem e bajularem a rainha inglesa. Todos a respeitavam à mesma medida que ao rei e por tal motivo, Charlotte não ousava causar conflitos, mesmo que ela não representasse nada para Henry como família. Caterina, percebendo o silêncio apático da rainha da Escócia, lançou-lhe um sorriso ensaiado e estendeu-lhe
Henry sabia que não estava agindo corretamente e embora tivesse plena consciência disso, seu corpo ignorava sua razão e fazia o que sua emoção mandava. Ele não se importava no que ela sentiria se o visse, ele só queria dar o troco e fingir, por um momento, que não estava com ciúmes. Somente por aqueles instantes ele queria sentir que não estava ligado a ela e que não estava incomodado, talvez este sentimento o convencesse de que realmente nunca sentiu nada por ela e que estava tudo bem apenas seguir em frente. Ver Charlotte em meio aos campos, cavalgando ao lado de Charles fez com que Henry tivesse seu coração esmagado entre os dedos da jovem monarca. Talvez uma reação um pouco exagerada para alguns, mas para ele era como perder seu bem mais precioso para seu arquirrival. Charlotte não era um objeto, ele sabia disso, mais que isso ele a via como o ser humano mais importante em todos aqu
O latido do cão ecoava por toda a rua, misturando-se ao som da água, correndo pelos esgotos da cidade. Os cavalos cavalgavam com cuidado, causando o tilintar de correntes e armaduras que trajavam, além do som das ferraduras chocando-se contra as pedras da rua. George observava à bela tarde de Londres através da pequena brecha na janela da carruagem que se assemelhava a uma caixa com teto oval e ornamentos dourados por sua extensão. Os poucos cidadãos que ainda circulavam pela rua, pareciam apáticos e silenciosos, apenas pequenos cochichos preenchiam os ouvidos do rei, que abriu a cortinam de veludo azul com confusão estampada em seu rosto. — O que há de errado com as pessoas, Finley? — questionou rei George, recostando-se na poltrona estofada. — Bom, vossa majestade deve saber dos constantes desaparecimentos de jovens pela cidade. O p
Do lado de dentro, George sentia-se ainda mais nervoso. Seus passos, pesados e apressados, ecoavam pela abadia conforme o monarca cruzava os arcos e portas. Após cruzar a pequena passagem, que ficava atrás do velho quadro no salão atrás do altar, George desceu um lance de escadas, que se cruzavam umas com as outras de cima à baixo, formando um conjunto de labirintos com degraus que ainda lhe causavam tontura. Apoiou-se na parede, descendo devagar à medida que analisava as palavras corretas à discursar aos nobres. Não podia ser rude, de forma alguma, e teria de ser sucinto é claro, caso contrário, de que forma os convenceria?"Talvez fosse necessário oferecer-lhes algo como da última vez?"pensou, parando por um momento próximo à janela de vitrais que iluminava o estreito lance de escadas. Conforme descia, George mergulhava-se ainda mais em seus pensamentos, a ponto de