Acordei de um breve cochilo no sofá para ir trabalhar meu último dia daquela semana. Por um momento apenas sentei e passei a mão pelo pescoço enrijecido pela má postura, e pensei nos acontecimentos da madrugada.

                Agora, com a luminosidade transpassando levemente pelas persianas, tudo parecia muito distante. Como um sonho ou uma memória do passado.

                Me levantei e fui pegar meu uniforme em cima da cama: apenas uma camiseta de gola branca e uma calça jeans, nada demais.

                Não comia em casa nunca, então apenas escovei os dentes e prendi meu cabelo. Quando me olhei no espelho, avaliei que meu rosto não demonstrava minha pequena aventura.

                Saí e tranquei a porta. O corredor estava deserto e escurecido, a única luz continuava saindo por baixo da porta da Sra. Fring, mas dessa vez não tentei detectar som algum.

                Atravessei o corredor o mais rápido possível e desci as escadas até o saguão, onde nosso porteiro diurno já se encontrava. Estava sentado no mesmo lugar do Sr. Saint, mas sempre se mantinha alerta, muito diferente de seu colega.

                - Bom dia, Srta. Isabel. – ele acenou para mim com um grande sorriso.

                - Bom dia, Sr. Sales. – respondi acenando de volta enquanto já me dirigia para a rua.

                Estava completamente diferente da madrugada. Agora pessoas transitavam de um lado para o outro, alguns pedintes se amontoavam nos becos ou se sentando nas sarjetas e carros passavam sem parar.

                Apurei os olhos para a rua em busca do carro que me levaria até meu destino enquanto ficava parada ao lado da porta do meu prédio. Ele não demorou a aparecer, parando bem na minha frente, preto e com os vidros escuros. Rapidamente abri a porta de trás e me acomodei no banco confortável.

                Eu já não estranhava o fato de não conseguir ver o motorista por causa do vidro escuro que me separava do banco da frente. Apenas encostava a cabeça no encosto do banco e observava as ruas do meu lugar seguro.

                Aos poucos a confusão do trânsito foi se acalmando, dando lugar a bairros cheios de árvores, com casas enormes com muros altos e câmeras de segurança.

                Ali sempre era tranquilo, seguro, sem pessoas sendo despejadas ou pedindo dinheiro. Havia algumas praças onde crianças pequenas iam brincar umas com as outras sem preocupações, a maioria acompanhada por babás.

                O carro embicou em uma casa e abriu o portão automático da garagem. Seguimos até a entrada, onde ele parou para eu descer antes de continuar o caminho até a garagem.

                Assim que desci vi a dona daquela imensa casa vindo em minha direção. Usava um vestido vermelho, saltos altos, uma bolsa no ombro e óculos escuros.

                - Bom dia, Sra. Luchi. – cumprimentei educadamente.

                - Olá, Isabel. – ela mal olhou para mim, fitava a entrada da casa onde outro carro estava estacionando – Vejo você mais tarde.

                - Sim, senhora. – respondi enquanto a observava se acomodando no banco do carro.

                Angélica Luchi era uma mulher que sempre estava impecavelmente arrumada. Desde o primeiro dia que a vi, tantos anos antes, a achei incrivelmente bonita com seus cabelos loiros escovados e olhos muito azuis.

                O primeiro andar da casa não tinha quase nada. O chão era de madeira e a parede do fundo toda de vidro, deixando a vista livre para se ver a grande piscina e a casa da piscina do outro lado.

                Subi a escada, pois meu trabalho me esperava no andar de cima. Toquei o corrimão de madeira com a mão enquanto pensava o que aguardaria nesse dia.

                Aquele andar era um grande corredor com os quartos dos filhos de um lado e o dos pais do outro lado. As paredes eram pintadas de um tom escuro que combinava bem com o chão de madeira.

                Parei em frente à porta do quarto da filha, Gabriele, e bati suavemente uma vez antes de entrar. O ambiente era do tamanho do meu apartamento todo, com uma cama, uma escrivaninha e um sofá macio.

                - Isabel! – Gabriele ergueu os braços e veio andando até mim com um sorriso – Ela já foi?

                - Já sim. – respondi já sabendo o que viria a seguir.

                Gabriele estava vestida apenas com lingerie de renda e um fino roupão aberto por cima. Eu a encontrava nesses trajes quando chegava para trabalhar há algum tempo, assim que deixou de ser uma menina e se tornou adolescente.

                - Pode sair daí. – ela gritou por cima do ombro.

                O rapaz saiu de dentro do seu closet usando apenas uma cueca preta. Imediatamente desviei o olhar sem muito constrangimento, aquela cena era comum demais agora e eu já tinha visto outros rapazes menos vestidos.

                - Já vou indo. – ele disse enquanto vestia suas roupas.

                - Ótimo. – Gabriele respondeu sem lhe dar muita atenção – Pode sair pela porta da frente.

                - Certo. – por um momento ele hesitou, sem saber como se despedir dela, provavelmente pensando se deveria beijá-la. – Vejo você por aí? – perguntou meio em dúvida.

                - Claro. – ela respondeu sem muita emoção, já entrando em seu closet.

                Ele olhou para mim, a única pessoa parada ali, e ri por dentro da confusão em seus olhos. Raramente eu os via mais do que uma vez, então provavelmente ele não veria Gabriele por aí.

                Abri a porta convidando-o a sair. Acredito que se ela voltasse e ele ainda estivesse, ali seu humor poderia se alterar. Era melhor para ele mesmo se apenas saísse.

                - Nossa. – ele disse ao passar por mim – A fama dela é real mesmo.

                Não respondi nada, apenas mantive meu olhar neutro. Eu não iria falar qualquer coisa que fosse sobre os membros daquela casa para um completo estranho.

                Quando Gabriele voltou do closet, eu já tinha fechado a porta, arrumado sua cama impecavelmente e estava concentrada em recolher os papéis espalhados e pacotes vazios de comida.

                - Não quer sentar um pouco? – Gabriele perguntou enquanto se acomodava no sofá e apertava um controle remoto para subir as cortinas.

                - Como você quiser. – respondi hesitando com os papéis na mão.

                - Antigamente você não parecia ter medo de mim. – ela sorriu.

                - Não tenho. – respondi tentando soar a frase de um jeito positivo.

                Eu não tinha medo de Gabriele, mesmo ela parecendo uma versão mais jovem de sua mãe. Eu apenas tinha mais consciência de que era minha patroa também.

                - Sente. – ela apontou para o sofá.

                Joguei o que estava segurando no lixo e me sentei na outra ponta do sofá. Gabriele sorriu e cruzou as pernas, me estudando com o olhar.

                - Você também se sente aliviada pelo fim das aulas? – perguntou com interesse.

                - Claro. – respondi tentando soar animada, mas achava que acabaria sentindo falta das aulas.

                Gabriele e eu tínhamos aulas juntas naquele quarto. Sentamos lado a lado na escrivaninha por anos e estudamos para as provas naquele mesmo sofá. Por muito tempo eu a vi como uma amiga, mas com o passar do tempo fui entendendo que seus pais pagaram o professor para me dar aulas também porque Gabriele precisava de alguém que a estimulasse.

                Eu a conhecia há dez anos, sabia que ela gostava de me tratar como uma igual, mas também não hesitava em me dar ordens. Nós não éramos amigas como ela insinuava as vezes. Amigas não são pagas para fazer companhia uma a outra.

                Eu era uma empregada daquela casa, como uma dama de companhia, e era grata pelo emprego. Sem ele eu não fazia ideia de onde estaria, possivelmente nem teria uma casa para morar ou comida na minha geladeira.

                - Acho que vou tomar café da manhã na piscina. – Gabriele mudou rapidamente de assunto.

                - Certo. – me coloquei de pé – Vou providenciar.

                Saí do quarto e desci as escadas. A cozinha ficava no andar de baixo, atrás de uma grande porta de madeira que sempre permanecia fechada.

                Quando abri a porta, as duas empregadas olharam para mim, primeiro com um ar receoso e depois de alivio. Nenhum patrão cruzava aquela porta se não fosse para reclamar de alguma coisa.

                - Bom dia. – sorri mais naturalmente para elas, eram pessoas como eu, que precisavam daquele emprego para se sustentar.

                - Oi, Isabel. – Marlene, a mais velha, me abriu um largo sorriso.

                - Oi. – Luna, sua filha, era mais reservada. Acredito que achava que eu tinha alguma espécie de privilégio por viver atrás de Gabriele.

                - Gabriele vai comer na piscina. – falei calmamente. Era apenas meu trabalho, como o que elas estavam fazendo.

                Marlene agiu rapidamente, pronta para servir com habilidade os caprichos da caçula Luchi, mas notei um olhar de desaprovação de Luna. Não saberia dizer se aquele olhar era por minha causa ou por causa de Gabriele.

                De todo modo, saí da cozinha e atravessei a porta de vidro que dava acesso a piscina. Precisava conferir se a mesa que ficava ali estava em ordem para que Gabriele pudesse se sentar.

                A mesa ficava sob uma cobertura de madeira, numa varanda cheia de vasos de flores por todos os lados. Era um dos locais mais bonitos da casa, na minha opinião, já que eu não tinha muito contato com a natureza.

                Mais adiante estava a grande piscina, mais funda de um lado do que do outro, provavelmente para que os filhos pudessem brincar quando eram crianças. No começo ela me fazia pensar em outra piscina, muito menor e muito mais simples, mas depois aprendi a afundar minhas memórias para que não atrapalhassem meu dia-a-dia.

                Foi então que eu o vi e me distraí.

                Marco Luchi, o filho mais velho da família. Alto, musculoso e, naquele momento, vestindo apenas uma sunga na casa da piscina.

                A casa da piscina era toda de vidro e estava com as cortinas todas abertas. Era o único local que eu nunca tinha entrado e provavelmente nunca entraria, já que Marco estava praticamente morando ali.

                Ele estava andando de um lado para o outro no cômodo. Eu podia ver apenas um grande sofá e uma mesa com cadeiras, mas com certeza haveria uma cama, banheiro e até mesmo uma geladeira ali dentro.

                Quando Marco abriu a porta e saiu, desviei os olhos e me foquei na mesa que estava sendo posta para Gabriele. Percebi que Luna me olhava de um modo meio condenatório, mas preferi fingir que não tinha visto.

                Escutei o som de água espirrando, anunciando que Marco tinha pulado na piscina, e Luna e eu olhamos para o corpo dele se movendo rapidamente dentro da água por um instante, depois nos olhamos sem jeito.

                Ela se afastou de mim, andando rapidamente para a cozinha. Nós sim poderíamos ser amigas, tínhamos idades próximas e éramos do mesmo lugar, mas havia uma barreira intransponível por parte dela.

                - Oi. – escutei a voz de Marco e me sobressaltei – Assustei você, princesa?

                - Desculpe, senhor. – respondi rapidamente, evitando olhar para ele, que estava parado na borda da piscina com um sorriso.

                - Você cresceu, hein? – eu podia sentir seu olhar em mim, mas continuei olhando para a mesa excessivamente cheia de Gabriele.

                O som do corpo dele saindo da água deixou meu rosto quente e minhas mãos suadas. Eu nunca ficava à vontade com Marco, principalmente se estivéssemos a sós.

                - Deixe Isabel em paz. – Gabriele surgiu com seus óculos escuros.

                - Bom dia, maninha. – Marco a cumprimentou.

                - Senta comigo, Isabel. – Gabriele disse se sentando e o ignorando completamente.

                Me sentei numa cadeira ao seu lado e observei enquanto ela escolhia entre os muitos alimentos disponíveis. Muito do que estava ali eu só via na casa dos Luchi e minha boca salivou com os aromas.

                - Sirva-se do que quiser. – Gabriele disse, como sempre.

                Eu sempre tomava café da manhã com ela, as vezes ali e as vezes no quarto. Era um costume adquirido há muito tempo e do qual eu gostava muito.

                - Olha só para ele. – Gabriele riu ao meu lado, apontando para a piscina.

                Ergui o olhar para onde ela apontava, já mordendo uma espécie de pão recheado extremamente saboroso, e vi Marco deslizando pela piscina.

                - Sempre convencido. – ela continuou, balançando a cabeça meio em reprovação e meio em divertimento. – Marco está arrasando corações.

                - É mesmo? – perguntei apenas para não ficar em silêncio no ambiente.

                - Claro. – ela riu novamente – Quebrando os corações por aí.

                Pensei que aparentemente Gabriele fazia muito mais isso, mas eu não ficava perto de Marco para saber. Além do mais, eu não duvidava nada que aquilo pudesse acontecer.

                Preferi me concentrar em comer tudo que desse antes de Gabriele decidir concluir o café da manhã. Era muito mais produtivo do que observar seu irmão.

                - Isabel, você pode buscar minhas roupas na lavanderia?

                - Claro. – confirmei terminando de mastigar.

                - Te espero no quarto. – ela terminou de beber de uma xícara e se levantou. - Sem pressa. – acrescentou atravessando a porta, mas eu sabia que se irritaria se eu demorasse muito.

                Rapidamente sai da varanda e virei para a direita, evitando olhar para a piscina onde Marco ainda deslizava de um lado para o outro.

                A lavanderia nada mais era do que um grande cômodo com janelas altas, onde ficava a máquina de lavar e a secadora, bem como a taboa de passar roupa.

                Naquele horário a funcionaria que passava as roupas já havia ido embora, deixando as roupas todas separadas e penduradas em cabides. Por um momento pensei na minha pilha de roupas em cima da cama.

                A porta fechou atrás de mim e dei um pulo, me virando rapidamente.

                - Estou te assustando mesmo hoje, hein? – Marco sorriu, pingando água no chão branco.

                - Não tem problema. – respondi tentando demonstrar que não estava intimidada. Procurei manter meu olhar numa altura que fosse respeitosa, mas não muito submissa.

                Marco manteve meu olhar por alguns instantes com um meio sorriso nos lábios, depois seus olhos azuis me observaram de cima a baixo sem pressa, lento o suficiente para me desconcertar.

                - Tenho que ir. – falei virando em direção as roupas de Gabriele.

                - Espere. – a mão dele me segurou pelo braço. Senti seus dedos molhados e minha pele se arrepiou.

                Olhei para Marco. Ninguém me tocava naquela casa, nem mesmo Gabriele com muita frequência, por mais que me tratasse como se realmente fossemos próximas.

                Na verdade eu não estava acostumada a ser tocada. Principalmente por um homem.

                - Como eu disse antes, você cresceu bastante. – Marco se aproximou lentamente de mim, ainda segurando meu braço. – Lembro de você correndo com minha irmã por aí.

                Não respondi, não sabia qual era a coisa certa a se dizer. Minha cabeça batia na altura de seu peito e precisei erguer um pouco os olhos agora que ele estava tão perto.

                - Saiba que se precisar de ajuda com alguma coisa... – ele ergueu a mão e tocou meu rosto suavemente enquanto colocava uma mecha de meu cabelo atrás da orelha. – Eu estou aqui. – completou num sussurro, aproximando seu rosto do meu.

                Minha boca ficou seca e minhas pernas trêmulas. Procurei não pensar nas implicações daquela proposta, a malícia por trás das palavras gentis.

                - Preciso ir. – me virei, torcendo para que ele soltasse meu braço e respirei aliviada quando aconteceu.

                Peguei as roupas de Gabriele com cuidado, por mais que quisesse sair correndo da lavanderia, ciente de que Marco ainda estava ali. Não queria que ele soubesse o quanto eu ficava pouco à vontade com sua presença.

                Quando saí pela porta, estava tremendo. Comecei a me dirigir até o quarto, tentando me recompor e não deixar transparecer o quanto estava abalada pelo o que aconteceu.

                Eu não podia falar com ninguém sobre aquilo. Embora fosse bem tratada, eu era uma funcionária, e a relação entre patrões e funcionários não eram estimuladas. Por mais banais que fossem. Já tinha ouvido casos de casamentos assim, com pessoas tão diferentes, mas não eram comuns e nem tão respeitados.

                Marco não tinha interesse real em mim. Sua irmã deveria estar certa sobre seu comportamento conquistador e nós, funcionárias, parecíamos uma presa fácil para ele.

                - Pode guardar no closet. – Gabriele disse quando entrei.

                Estava sentada em frente ao computador da escrivaninha, provavelmente conversando com alguns rapazes, e não tonou nada estranho em mim. Eu preferia assim, gostava de ser o mais invisível possível.

                Pelo resto do dia fiquei ali em silêncio, buscando alguma coisa que ela queria ou respondendo quando fazia alguma pergunta diretamente para mim.

                Quando me ausentei para almoçar na cozinha, Luna me lançou alguns olhares estranhos e me perguntei se ela tinha visto alguma coisa ou se Marco a tinha encurralado também.

                Pelo jeito as coisas seriam diferentes dali em diante.