Três Vezes Você
Três Vezes Você
Por: Paula Albertão
1

                Olhei pela janela, afastando levemente a persiana cinza chumbo com os dedos. Lá fora a lua estava cheia, majestosa, iluminando a cidade completamente silenciosa.

                Era tarde, ou muito cedo, dependendo do ponto de vista. Três horas da manhã mais ou menos. Não olhei o relógio para conferir, mas percebi que estava passando a mão pelo relógio em meu pulso.

                Desci a mão e deixei apenas a que estava abrindo espaço para o mundo exterior. Meu olhar percorreu a rua lá embaixo, havia alguns carros velhos estacionados aleatoriamente, e estavam lá há muito tempo. Me perguntei se por acaso alguém podia estar usando-os de abrigo aquela noite.

                Deixei a persiana e voltei o olhar para dentro, para o meu minúsculo apartamento escuro e um tanto bagunçado. Parecia impossível morar ali com mais pessoas, mas meus vizinhos de cima não pareciam ver problemas nisso. Várias vezes cruzei, na entrada do prédio, com o casal e seus quatro filhos.

                O sofá estava gasto e já não era confortável, mas muitas vezes eu acabava dormindo ali mesmo. Era o que tinha acontecido aquela noite, até eu acordar e decidir espiar a rua, depois de um pensamento cair sobre mim enquanto encarava o teto.

                Era meu aniversário.

                Atravessei a sala e entrei no meu quarto. A cama estava feita, mas havia uma pilha de roupas limpas em cima, que eu estava enrolando para guardar e que suspeitava que ia usar tudo antes de sequer abrir o guarda-roupa.

                Peguei meu moletom preto para colocar sobre a regata que estava usando, e procurei meus tênis pelo chão, o que era um pouco difícil com a luz apagada.

                Me ajoelhei e acabei os encontrando debaixo da cama, ao lado de uma caixa de madeira que já estivera em melhores condições tempos atrás. A empurrei mais para o fundo, assim como as memórias que ela emanava.

                Devidamente vestida e calçada, voltei para a sala decidida a sair daquele apartamento. Por um instante, hesitei parada em frente à porta, para logo afugentar qualquer insegurança e destrancar a fechadura.

                O corredor estava deserto enquanto eu trancava novamente a porta, como eu esperava. Colocando a chave no bolso comecei a andar lentamente, evitando fazer algum barulho e olhando para o chão para não tropeçar.

                Meu apartamento era o último do corredor. Ninguém nunca passava por ali atoa, eu nunca ouvia passos dos moradores, apenas quando as portas abriam e fechavam.

                Depois do meu apartamento era o da Sra. Fring. A luz da televisão piscava pelo vão da porta vinte e quatro horas por dia, e aquela noite não era diferente. Apurei os ouvidos, mas o som da televisão não passava de um murmuro.

                Segui lentamente, passando pela última porta do corredor sem dar muita atenção. Um homem havia se mudado havia pouco tempo e eu não sabia como era, nem sua idade. Tive apenas um vislumbre do seu corpo num casaco numa manhã algumas semanas antes.

                A outra parede do corredor era quase toda de vidro e a vista seria a do outro prédio, mas sempre permaneciam com as persianas fechadas. Quando eu espiava entre as cortinas, vez ou outra, tinha a impressão de que os dois prédios estavam tão próximos que eu poderia passar para o outro tranquilamente.

                Resolvi evitar o elevador porque dois meses antes uma mulher tinha ficado presa e o socorro viera quatorze horas depois. Se fosse comigo, não sei o que eu faria. Se todo dia eu rezava o curto período dentro do elevador, depois disso percebi que não seria tão mal descer os três andares pelas escadas.

                Abri a porta com o desenho de escadas na frente e então acelerei o passo com o coração aos pulos. Estava escuro e não dava para saber se alguém estava ali também, o que me deixava levemente ansiosa.

                Quando abri a porta para o saguão respirei aliviada, mas me perguntei se tudo bem mesmo estar saindo àquela hora, já que só as escadas já me deixavam nervosa.

                Balancei a cabeça, afastando o pensamento, e continuei andando. Meus passos ecoavam no ambiente silencioso e me perguntei se isso acordaria o Sr. Saint, nosso glorioso porteiro que dormia o tempo todo.

                Ele continuava atrás de seu balcão, sentado na cadeira e encostando o rosto na parede. A boca estava entreaberta produzindo um leve ressonar, completamente entregue ao sono mais profundo.

                Finalmente cheguei até a porta da rua e, com uma respiração profunda, a abri e saí para a calçada, já lançando um olhar para os carros parados em busca de algum movimento.

                Não havia nada. Nenhum som, nenhum movimento, nem mesmo o som do vento arrastando alguma coisa pelo chão ou balançando as folhas das poucas árvores que haviam ali.

                Comecei a andar pela calçada, desviando dos latões de lixo e das caixas de papelão muito comuns ali. Sempre havia alguém sendo despejado e desistindo de parte de suas coisas porque simplesmente não tinha para onde levar.

                Quatro quarteirões depois a paisagem começou a mudar, era um bairro composto por casas com quintais, algumas sem muro, mas a maioria com um muro alto ao redor. Havia uma árvore na frente de cada casa e a iluminação era mais clara e menos amarelada do que perto do meu apartamento.

                A casa para qual eu estava indo não tinha muro, a grama do quintal estava descuidada, as paredes descascando um pouco e a janela da frente tinha um pedaço de vidro quebrado como se uma pedra tivesse atravessado por ela.

                Não entrei. Por um momento apenas fiquei parada na frente olhando e lembrando de como era bonita antigamente, exatamente como as casas ao redor. Muito diferente, com vida e cuidada.

                Atravessei o quintal e contornei até os fundos. Costumava ter uma cerca alta de madeira que agora estava destruída no chão. Apenas pulei o monte de madeira com marcas de pichação e sujeira tentando não me lembrar de como eu gostava quando tudo estava em pé.

                A piscina parecia muito menor agora que eu estava maior, mas mesmo assim meu coração se apertou. Eu amava ficar na água, e não via como uma tarde poderia ser melhor do que ficar ali no quintal.

                Andei até a escada e percebi que a piscina estava completamente vazia. Tinha sujeira no fundo, vinda pelo vento e provavelmente por alguém também.

                Toquei o metal frio, lembrando de todas as vezes que me sentei ali, batendo os pés na água morna, rindo de alguma brincadeira infantil ou apenas observando os brilhos dos raios de sol na água.

                Sentar naquela mesma posição, no escuro daquela casa vazia com a piscina vazia, me fez sentir um estranho sentimento de solidão.

                Eu estava acostumada a ser sozinha. Tão acostumada que nem tinha mais consciência da solidão diária. Não me incomodava as refeições sentada sozinha, os intermináveis domingos sem um único som de voz ecoando e nem o fato de viver muito dentro da minha própria cabeça.

                Mas naquele instante, as memórias de bolos de aniversário, o cheiro da água da piscina e o som de risos, me fizeram desejar ter alguém ali comigo.

                - Não é perigoso estar aqui sozinha?

                O som da voz me gelou por dentro, lançando arrepios pelo meu corpo. Sem conseguir raciocinar pulei para dentro da piscina, para só depois perceber que ficava um pouco encurralada ali dentro.

                Claro que eu poderia usar os braços, mas eu não era a pessoa mais ágil do mundo, e com certeza o dono da voz me alcançaria sem grande esforço.

                Meus olhos arderam mas engoli as lágrimas que queriam vir. Não podia acreditar que eu acabaria morta dentro de uma piscina vazia naquela casa abandonada.

                - Calma. – o som saiu abafado por uma risada. Meu medo parecia ser motivo de graça.

                Virei para encarar o dono daquela voz. O vulto estava na borda da piscina, quase onde eu estava sentada instantes antes, parado contra a iluminação que vinha da rua.

                Eu não conseguia ver seu rosto, mas a silhueta parecia de um corpo masculino, não muito alto e nem muito forte.

                - Assustei você de verdade. – sua voz não tinha mais humor – Pode sair daí. – ele se afastou da piscina.

                Eu hesitei, mas seria mais fácil usar a escada, então a subi o mais rápido que pude enquanto planejava correr para a rua o mais rápido possível e só parar em casa.

                Mas ele estava parado no caminho para a rua com os braços cruzados e os olhos em mim.

                Foi quando eu realmente o vi.

                Devia ter mais ou menos a minha idade e mais ou menos a minha altura. Não parecia tão ameaçador, mas mesmo assim eu ainda receava.

                - Está tudo bem. – ele falava de um modo calmo agora, parecendo perceber o quanto aquela situação era intimidante para mim. – Eu só não esperava encontrar outra pessoa aqui. – ele deu de ombros suavemente.

                Comecei a andar, disposta a desviá-lo e voltar para a casa, mesmo que meu coração ainda martelasse contra minhas costelas com toda força.

                - Você vai embora assim? – ele me perguntou quando eu estava bem ao seu lado.

                Isso me deteve sem que conseguisse raciocinar direito. Seria pelo meu desejo de ter alguém no dia do meu aniversário comigo?

                Ele virou seu rosto para mim enquanto eu permanecia encarando a rua. Estava logo ali, era só ir em frente. Se ele quisesse fazer alguma coisa, já teria feito.

                Virei meu rosto em sua direção e nossos olhos se cruzaram. Os olhos dele eram castanhos e brilhantes, com uma intensidade que eu não conhecia.

                Seus cabelos caiam pela testa em cachos suaves e a boca, de lábios grossos, estava entreaberta. Não era nada ameaçador e meu medo se evaporou rapidamente dando lugar a uma certa curiosidade.

                - Meu nome é Daren. – ele virou todo o corpo na minha direção, aparentemente decidindo que eu não iria sair correndo.

                - Isabel. – respondi finalmente, depois de todo aquele silêncio, também virando meu corpo para ficar de frente para ele.

                - Desculpa pelo susto. – Daren pediu antes de qualquer coisa – Eu não costumo ver gente da minha idade.

                Não respondi nada, meus olhos apenas passearam por aquele rosto novo. Eu estava muito acostumada ao silêncio e não ficava desconfortável, mas Daren se remexia levemente.

                - Vamos sair da visão da rua. – ele pediu enquanto voltava para os fundos da casa.

                Segui atrás dele, observando que seus passos eram bem silenciosos e suas roupas um tanto largas, mas de um jeito que parecia que ele não se alimentava bem e não porque era como gostava.

                - Você sempre fala pouco? – ele encostou as costas na parede da casa, dobrando um dos joelhos e colocando a sola do tênis ali também.

                - Quase. – respondi evasivamente. Eu podia estar curiosa, mas não me abriria tão facilmente com um estranho, naquela casa, no meio da madrugada e no dia do meu aniversário.

                - Quantos anos você tem? – Daren parecia sentir necessidade de preencher qualquer lacuna com conversa.

                - Dezoito hoje. – eu mal podia acreditar que tanto tempo tinha se passado. Eu conseguia me lembrar de meu último aniversário comemorado ali como se tivesse sido ano passado.

                - Mesmo? – ele ergueu as sobrancelhas levemente e eu apenas mantive meu olhar, sem sentir a necessidade de confirmar. – Bem, por hoje você é mais velha do que eu.

                - Amanhã é o seu aniversário? – perguntei um pouco surpresa pela coincidência.

                - Uma frase completa. – ele sorriu – E sim, amanhã eu faço dezoito.

                Balancei a cabeça para indicar que tinha entendido e observei seu desconforto com a interrupção da conversa que por um momento ele acreditou que iria engrenar.

                - Você mora por aqui? – mais uma vez ele seguiu por um caminho cuidadoso, uma pergunta banal no terreno das conversas que eu não dominava.

                - Não. – a resposta saiu mais seca do que eu realmente esperava – Pareço alguém que moraria por aqui? – quando dei por mim já estava acrescentando uma frase menos hostil.

                Daren sorriu por um instante, mas não comentou minha segunda frase completa. Seus olhos me percorreram de cima a baixo, me deixando um pouco desconfortável como se estivesse sem roupa.

                - Acho que não. – acabou respondendo com uma expressão de divertimento nos olhos.

                Novamente nos encaramos e eu achei que já era hora de finalizar. Precisava ir para casa e descansar um pouco para ir trabalhar em poucas horas sem uma expressão de cansaço.

                - Eu preciso ir. – falei acenando para a rua com o polegar.

                Antes que Daren abrisse a boca comecei a andar torcendo para que ele não falasse mais nada. Eu realmente queria sair daquela casa e enfiar as memórias que ela ecoava bem no fundo da minha cabeça.

                - Quer que eu a acompanhe? – a voz dele veio de logo atrás de mim, quando eu já estava passando pela cerca.

                - Não é necessário. – respondi sem me virar e nem desacelerar o passo. Por que eu iria querer mais daquela conversa enfadonha?

                Cheguei até a calçada e comecei meu caminho com determinação. Não conseguia imaginar que horas já seriam e tudo que eu não queria era chegar com uma aparência muito ruim no trabalho e atrair alguma atenção indesejada.

                - Isabel? – Daren me chamou. Sua voz estava um pouco longe de mim e eu quis muito apenas seguir adiante e ignorá-lo, mas por alguma razão me peguei hesitando mais uma vez.

                Virei meu corpo em sua direção, já me repreendendo pelo movimento, e o vi parado com as mãos nos bolsos da calça larga e com o queixo erguido.

                - Sim? – estimulei diante do seu silêncio, tentando não soar rude ou impaciente.

                - Passa meu aniversário comigo?

                O pedido me pegou de surpresa e me vi sem palavras. Eu devia estar negando sem questionamentos, meu lado lógico indicava isso, mas vendo-o ali sozinho diante daquela casa me dava uma sensação de solidão muito grande.

                - O que você quer dizer? – perguntei para entender melhor seus planos e ganhar tempo na minha aparente indecisão.

                - A noite de sexta para sábado? – o modo como ele disse soava como uma pergunta, mas também soava como se ele soubesse que estava dizendo o óbvio, porque eu já sabia que seu aniversário era no dia seguinte ao meu.

                - Essa noite. – eu disse a mesma coisa de forma bem mais sucinta.

                Daren deu de ombros, aguardando minha resposta pacientemente, enquanto eu não entendia porque ainda não tinha negado e ido embora.

                - Certo. – concordei afinal, deixando meu lado lógico abafado pela primeira vez em muito tempo.

                - Mesmo? – ele abriu um largo sorriso e eu me controlei para não revirar os olhos – Onde busco você?

                Imediatamente fiquei alerta. Por que ele precisaria saber meu endereço?

                - Onde nos encontramos? – corrigi com outra pergunta.

                - Sério? – Daren jogou a cabeça para trás por um instante – Deixa eu ir te buscar. – pediu juntando as palmas das mãos.

                - Eu não conheço você. – justifiquei enquanto me aproximava – Preciso ser cautelosa, entendeu?

                Olhei ao redor. Ficar ali parada jogando conversa fora me deixava inquieta e insegura. Eu precisava finalizar aquilo de uma vez por todas.

                - Vou te encontrar no começo dessa rua. – apontei adiante – Que horas?

                - Onze? – ele perguntou com um olhar derrotado.

                - Certo. – concordei e virei as costas.

                Enquanto acelerava o passo contive a vontade de olhar para trás para ver se ele me observava, mas só fiz isso quando já estava na metade do meu caminho, para ver que não havia ninguém além de mim na rua e respirar aliviada.

                Quando estava perto de casa, com as luzes amarelas das ruas, me perguntei o que havia de errado comigo. Primeiro aquela ida furtiva até aquela casa no meio da madrugada, e depois eu aceitava o convite de um completo estranho.

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