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                Quando o carro me deixou na frente do prédio no final do dia, eu estava exausta. Não tanto fisicamente, mas muito mentalmente.

                Subi as escadas desanimada depois de acenar para o Sr. Sales, que logo iria para casa, e atravessei meu corredor escuro observando a luz da televisão da Sra. Fring.

                Abri a porta do meu apartamento, subitamente feliz por estar em casa. Era pequeno, bagunçado e sem luxo, mas era seguro. Sem querer pensar que aquilo só era possível por causa do meu trabalho, fui até o banheiro.

                Deixei que a água morna e sem pressão caísse pelo meu corpo, e minha mente vagou por vários pensamentos aleatórios sobre as últimas horas até parar em Daren.

                Era a primeira vez que eu pensava nele em muitas horas. Depois do que aconteceu com Marco, parecia completamente inofensivo me encontrar com ele naquela noite, e desnecessária a preocupação em não passar meu endereço.

                Saí do banho e comi alguma coisa que estava na geladeira, antes de me deitar no sofá da sala para descansar antes do encontro daquela noite. Eram os últimos momentos do meu insignificante aniversário de dezoito anos, o cômodo escurecia gradativamente e eu só desejava voltar no tempo.

                Fui atraída para uma época sem preocupações com minha família reunida. Ir até a escola do bairro com outras crianças como eu, me divertir no quintal e andar de mãos dadas com minha mãe. Cair no sono sabendo que estava protegida, que papai estava logo ali se eu precisasse.

                De repente abri os olhos e percebi que estava completamente escuro. Me sentei no sofá levemente confusa pelo sonho e passei a mão no pulso, encontrando meu relógio.

                Eram dez horas e cinquenta e cinco minutos e rapidamente me senti desperta. Estava irremediavelmente atrasada para encontrar Daren, mas não podia não aparecer e deixá-lo esperando.

                Corri para o quarto e vesti a primeira coisa que consegui da pilha de roupas na cama antes de sair do apartamento a toda velocidade. Atravessei o corredor e desci as escadas em tempo recorde, apenas parando na porta de entrada.

                A rua estava deserta lá fora, mas eu não podia deixar que a pressa me deixasse descuidada. Observei a por um instante, depois abri a porta e saí devagar. Não havia nenhum movimento, como na noite anterior, mas ainda era relativamente cedo e poderia ter pessoas na rua.

                Apurei os ouvidos e comecei a andar rapidamente. Olhei para os lados muitas vezes, quase esperando ver algum vulto mal intencionado, mas logo eu estava no final da rua e estava tudo completamente vazio.

                Olhei o relógio. Estava vinte minutos atrasada e Daren não estava ali. Senti remorso pelo atraso, por mais que tivesse resistido em aceitar o convite. Eu sempre cumpria com a minha palavra quando prometia alguma coisa e agora aquele estranho devia me achar uma mentirosa.

                Parei na esquina e cruzei os braços. A rua seguinte já era o início do outro bairro, com casas e quintais e a iluminação mais clara. Não havia como errar o ponto que indiquei.

                Escutei um barulho na árvore do outro lado da rua e vi um vulto se movendo. Imediatamente me preparei para correr, dando as costas para o possível inimigo.

                - Está atrasada. – a voz soou atrás de mim e eu soltei o ar e fechei os olhos por um instante com o alívio.

                Me virei de novo, buscando manter um olhar neutro, sem demonstrar que eu tinha me abalado pelo meu atraso e que estava um pouco aliviada por ele ainda estar ali. Bem pouco.

                Daren terminou de descer da árvore e começou a andar na minha direção com um sorriso. Observei seus cachos escuros se movendo com os movimentos do seu corpo e as roupas largas balançando.

                - Vinte minutos atrasada. – ele repetiu quando chegou na minha frente.

                - Estou aqui agora. – foi tudo que eu disse, esperando que ele se contentasse com isso.

                - Fico feliz que tenha vindo. – Daren sorriu mais uma vez.

                Parecia tão simples, se alegrar com essas pequenas coisas. Eu vivia sempre em estado de alerta e desconfiada das pessoas ao redor, buscando manter minha segurança acima de tudo.

                - Precisamos sair daqui. – comentei, já me sentindo ansiosa por estar ali na rua.

                - Claro. – ele concordou e virou o quarteirão sem olhar para trás.

                Fiquei confusa, mas fui atrás dele. Era a primeira vez que eu virava naquela rua e era estranho ter os prédios de um lado e do outro lado aquelas casas com quintais. Um contraste grande no tipo de vida que aqueles moradores deveriam ter.

                - Onde estamos indo? – me coloquei ao lado de Daren.

                - Vai conversar comigo hoje? – ele me rebateu com outra pergunta.

                Fiquei em silêncio por um longo tempo enquanto pensava o que deveria responder. Meu instinto era me manter afastada o quanto fosse possível dele, não criar nenhum tipo de vínculo e nem deixar que ele soubesse nada sobre mim.

                Por outro lado, eu tinha desejado ter alguém no meu aniversário no exato instante em que ele falou comigo na piscina. Eu não era de acreditar em sinais ou destino, mas naquele momento pensei que poderia acreditar em desejos de aniversário.

                Daren seguiu em silêncio, provavelmente esperando uma resposta, e eu observei mais uma vez. Observei seus cabelos, os ângulos do seu rosto magro e a boca que estava firmemente fechada. Ele parecia mais sério do que no outro dia, talvez estivesse um pouco irritado pelo meu atraso ou pelo excesso de silêncio e minha dificuldade em manter um diálogo.

                Atravessamos a rua e ele seguiu para outra casa abandonada de meu antigo bairro. Fiquei feliz por não ser a mesma casa, mas mesmo assim ainda atraía lembranças demais.

                Daren passou direto pelo quintal e a cerca lateral, que também estava caída, e o segui com um pouco de receio. Eu sempre teria medo de encontrar com alguém mais forte, mais ágil e mais alto do que eu naqueles lugares.

                O irônico é que a única vez que eu tinha de fato encontrado alguém assim disposto a me intimidar, tinha sido naquele mesmo dia em meu horário de trabalho.

                Daren andou pelo quintal, passando direto pela piscina vazia e indo até um alçapão no chão que tinha as portas trancadas com um grande cadeado. Antes que eu pudesse estranhas a situação, ele tirou uma chave do bolso e se abaixou para destrancar o cadeado. Depois abriu a porta e tirou uma lanterna do bolso.

                - Quer ir na frente? – me perguntou oferecendo a lanterna.

                Aceitei apenas porque estava bem curiosa, então peguei a lanterna e acendi enquanto descia os degraus da escada até um cômodo fechado e pouco mobiliado.

                Havia um colchão no chão e várias almofadas espalhadas, uma prateleira praticamente vazia se não fossem pelos livros que estavam caídos e uma pequena janela no alto de uma das paredes que só servia para deixar entrar um pouco de iluminação externa.

                - Nossa. – murmurei. Aquele cômodo não existia na minha antiga casa.

                Daren entrou e trancou a porta por dentro enquanto eu observava que alguém tinha colado estrelas que brilhavam no escuro no teto.

                - Achei por acaso esse... porão. – ele disse sem muita certeza – Parece que só tem nessa casa, ou pelo menos não tem em todas. – ele andou até o colchão e se sentou. – É meio que no subsolo, sabe? Por isso as escadas. Aquela janela fica na altura dos nossos pés.

                Imediatamente adorei o lugar. Desejei que tivesse existido em todas as casas e que eu tivesse me divertido em um local como aquele quando os dias eram mais simples.

                - Arranjei esse cadeado para que ninguém estragasse, sabe? – Daren prosseguiu seu diálogo solitário – Nunca mostrei para ninguém.

                Nesse momento eu olhei para ele e ele para mim. Senti uma onda de afeição por aquele estranho que tinha caído de paraquedas na minha vida e estava sendo tão amável.

                O muro que estava construindo contra ele começou a rachar e me vi desejando ter alguma espécie de vínculo. Amizade deveria ser a palavra que eu estava pensando, mas a achava forte demais para usar naquele instante.

                - Vou. – falei respondendo à pergunta que ele havia me feito vários minutos antes.

                - O quê? – Daren franziu o cenho.

                - Vou conversar com você. – mordi o lábio inferior, ainda me sentindo estranha com aquela situação.

                Daren sorriu. As coisas com ele sempre pareciam simples e espontâneas.

                - Senta aqui. – ele me pediu gentilmente.

                Sentei no colchão ao seu lado deixando um espaço entre nós dois. Não muito pequeno que ele pudesse esbarrar em mim e não tão grande a ponto de parecer que o estava evitando, apenas o suficiente para eu ficar confortável.

                - Você mora longe daqui? – Daren perguntou. Eu podia ver a necessidade dele de saber coisas sobre mim, só não podia entender.

                - Não. – respondi sem esperar muito – Moro num apartamento.

                - Entendi. – disse apenas para preencher o silêncio que se seguiu – Com seus pais, irmãos?

                Eu não esperava por aquela segunda pergunta. Senti meu corpo se retrair no mesmo instante.

                - Só eu. – respondi apenas.

                Daren era curioso, mas sensível o suficiente para não insistir no assunto quando percebeu meu desconforto. Em primeiro momento conseguiu até disfarçar a surpresa por eu ser tão jovem e ter uma casa só para mim.

                - Feliz aniversário. – falei olhando o relógio – Você tem dezoito anos há dez minutos.

                - Obrigado. – ele sorriu mais uma vez.

                Sorri pela primeira vez para ele.

                - Você fica muito mais bonita quando se desarma.

                Eu ri que pelo jeito como ele disse aquilo e ele acabou me acompanhando. Não sabia quanto tempo fazia que eu não ria, principalmente junto com outra pessoa.

                - Onde você mora? – perguntei instantes depois.

                - Numa casa. – ele abraçou os joelhos – Não muito longe daqui.

                - Numa dessas casas? – eu estava genuinamente interessada agora.

                - Não, não... – Daren balançou a cabeça em negação – Numa bem mais simples.

                Era bom morar em uma casa, mas eu não tinha condições de pagar por uma. Tirando o fato, claro, de que era mais seguro ficar no apartamento.

                - Minha mãe é professora da escola desse bairro. – ele prosseguiu por vontade própria – E meu pai tem uma pequena horta.

                - Isso parece bom. – eram profissões que não tinham muito retorno financeiro, mas eram seus pais e estavam ali.

                -É. – ele confirmou sem muito ânimo – Tenho três irmãs.

                - Nossa. – soltei um riso – Isso é bastante.

                - Nem me fale. – ele riu também – Eu sou o número um.

                - Muita responsabilidade. – comentei.

                - É por isso que não sei o que fazer com a minha vida.

                A mudança de assunto me confundiu. O clima leve se desfez no mesmo instante e nós nos olhamos.

                - Sabe, nós vivemos com dificuldades. – Daren prosseguiu – Acho que você pode imaginar como é alimentar quatro bocas.

                - Eu imagino. – respondi. Por mais que eu não entendesse completamente seus problemas em casa, eu conseguia imaginá-los. Eu sabia como era caro um aluguel e as compras do mercado.

                - Sinto que eu deveria cuidar de mim agora. – ele continuou num tom baixo, olhando o chão – Não quero mais ser um peso em casa.

                Esse era o dilema de Daren. Talvez fosse por isso que ele tinha me chamado para passar seu aniversário com ele e me deixado conhecer seu espaço pessoal. Eu era alguém de sua idade e talvez pudesse entender seus sentimentos. Aquela necessidade de se manter, de ser responsável por si mesmo e não mais dos pais.

                O problema é que eu era independente por necessidade e não por buscar isso, como ele estava fazendo agora. Eu fora jogada no mar e obrigada a sair nadando.

                - Eu ajudo meu pai, sabe? Na hora. – ele me olhou de novo – Nós íamos bem quando éramos apenas três.

                - Você não se dá bem com suas irmãs?

                - Me dou. – rapidamente ele confirmou, balançando a cabeça muitas vezes – Eles queriam uma irmã para mim e aí tiveram trigêmeas.

                - Uau. – me espantei.

                - Por isso estamos assim. – seus ombros estavam caídos, curvados para a frente demonstrando derrota.

                Eu senti necessidade de ajudá-lo a tirar aquela angústia de dentro de si. Mas o que eu podia fazer? Aparentemente eles estavam com muitos problemas financeiros e eu era apenas uma garota tentando sobreviver.

                A imagem de Marco passou pela minha cabeça, me oferecendo ajuda na lavanderia. Os olhos insinuando o que eu poderia oferecer em troca dessa “ajuda”. Ele me daria dinheiro, eu tinha certeza. Mas o quão longe eu estava disposta a ir? Que coisas teria que fazer com ele?

                - Você trabalha? – Daren optou por mudar de assunto.

                - Sim. – respondi aliviada, deixando os pensamentos perturbadores de lado – Sou uma espécie de dama de companhia.

                Imediatamente ele se interessou. Percebi seus olhos se abrindo mais com o espanto por eu frequentar casas imensas e viver com pessoas que nadavam em dinheiro.

                - Você vê eles? – a pergunta inocente me fez rir – Não, claro que você vê, mas... – ele buscou as palavras enquanto olhava ao redor de nós.

                - Olha, Daren... – eu ri mais uma vez – Eu apenas acompanho a filha da família e faço o que ela quer. Não é nada espetacular.

                - Entendi. – sua animação murchou um pouco – Não faço ideia de como são as casas.

                - Enormes! – exclamei – Tem tanto espaço. – eu gostava da casa onde trabalhava, achava tudo lindo e bem planejado. – Mas as pessoas mal se cruzam, vivem cada uma com suas próprias coisas. – completei, pela primeira vez pensando por aquele ângulo.

                - Quer saber? – Daren esticou as pernas – Vamos parar com esses assuntos.

                - Vamos. – concordei no mesmo instante.

                Não adiantava nada remoer aqueles assuntos. Eu não podia mudar a vida que levava, nem Daren. As coisas não podiam acontecer magicamente, do dia para a noite.

                Tudo era muito mais complexo do que parecia ser. Era só olhar ao nosso redor. Eu via pessoas pedindo dinheiro todos os dias e via as caixas de papelão de outras que não tinham para onde ir. Tudo isso de dentro de um carro chique que me levava para trabalhar em um bairro rico, numa casa imensa onde moravam apenas quatro pessoas.

                - O que quer fazer em seu aniversário? – perguntei porque estava completamente sem ideias.

                Tudo que eu fazia era trabalhar, voltar para casa, ficar inerte no sofá e dormir. As últimas duas noites tinham sido exceções muito grandes da minha vida.

                A verdade é que eu vivia no automático. Estava me mantendo segura, alimentada e viva. Nada além disso tinha feito parte dos meus planos até ali.

                - Não comemoro aniversários. – Daren disse – Depois que minhas irmãs nasceram tudo ficou mais difícil, sabe?

                Uma ideia surgiu na minha mente, não sei porque eu queria fazer uma coisa boa por aquele garoto confuso e solitário que acabara de conhecer, mas queria.

                Pensei que Daren merecia uma coisa boa, um conforto dentro do turbilhão que estava vivendo. Algo simples, mas que poderia marcar aquela data de um jeito positivo.

                - Quer um bolo? – perguntei baixo, um pouco envergonhada.

                Daren olhou para mim um pouco confuso. Não só pela pergunta, mas por eu estar oferecendo alguma coisa a ele espontaneamente.

                - É sério? – havia dúvida em seu tom.

                - Quer ou não? – eu queria fazer alguma coisa, mas não teria tanta paciência para ficar insistindo.

                - Claro que sim. – ele sorriu, ainda descrente – Mas onde iriamos achar um bolo?

                Me levantei daquele colchão. Estava decidida a deixar de lado toda a cautela que havia em mim, todo aquele instinto de me manter segura o tempo todo.

                - Vou fazer para você. – anunciei.

                Daren se levantou no mesmo instante com um sorriso franco.

                - Vai me levar para sua casa? – seu tom ainda era levemente descrente, mas decidi relevar.

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