6 – Penetras

           Lena acordou quando a claridade que entrava pela janela se tornou suficientemente forte para atravessar mesmo as cortinas entreabertas. Apesar da boca seca e da bexiga cheia, sua pele ainda formigava de excitação pelo sonho que acabara de ter.

           Sonhara com o menino. O menino cujo nome não descobrira, porque entregara seu cadáver semimorto a um dos seus iguais. O menino que se alimentara de Laura e de outras mulheres durante uma semana ou duas. O menino que esfaqueara até o desespero e quase à morte. Que sentira se debater entre suas pernas enquanto o coração acelerado bombeava sangue quente para fora do rasgo que lhe abrira na garganta.

           Mais que isso. Sonhara com o prazer lascivo, se espalhando em ondas desde o baixo ventre até as pontas dos dedos, com que se regozijara ante o sofrimento e a incapacidade de reação de sua vítima. Quase nunca na vida tinha acesso a emoções tão poderosas.

           Suspirou profundamente e olhou para Daniel, que acabara de se sentar e que cobria a virilha com um travesseiro.

           – Sonho bom? – Perguntou.

           Daniel olhou para ela tentando disfarçar. Depois, constrangido, respondeu:

           – Acontece direto. Foi mal.

           – Não comigo. – Ela respondeu, e virou-se para Nandini, que também acabava de acordar. – Com o que você sonhou, Nandini?

           – Não foi bem um sonho. – Nandini explicou, ainda desorientada. – Foi mais uma sensação. Mas é difícil explicar se nenhum de vocês já encheu a cara com cola de sapateiro.

           – Então nós três tivemos sonhos prazerosos? – Ela perguntou.

           – Péra, como assim nós três? – Daniel perguntou, finalmente se dando conta do óbvio. – Onde está a Laura?

           Nandini dormia sozinha em sua cama. A porta do quarto ainda estava aberta. O rastro contínuo de sal que deveria proteger a entrada havia sido interrompido. E havia uma mancha feia de queimadura no piso.

           Daniel levantou-se e começou a procurar nos arredores do chalé. Lena verificou o banheiro vazio. Nandini calçou uma de suas luvas descartáveis e checou a mancha no chão. Parecia que alguém havia sapateado com os pés sujos de carvão no local, mas a fuligem residual era viscosa e úmida.

           – Eu conheço isso aqui. – Sussurrou, de si para si. – Isso é ectoplasma. Ectoplasma frito.

           – O que disse? – Lena perguntou.

           – Disse que isso é o que acontece quando um fantasma parrudo atravessa uma proteção de sal. – Nandini respondeu. – A maioria vaporiza e deixa pra trás um montinho de ectoplasma que seca e evapora em minutos. Mas esse aqui não. Esse era muito forte.

           – Ela não está lá fora. – Daniel informou, alarmado, enquanto voltava ao quarto.

           – Nós fomos visitados ontem. – Nandini explicou. – Um fantasma capaz de ligar o foda-se para nossa proteção de sal e ficar aqui dentro queimando por tempo o suficiente para deixar essas marcas no chão. A gente foi burro de dormir aqui.

           – Não interessa quem entrou ou quem deixou de entrar! – Daniel retrucou, em pânico. – Temos que achar a Laura!

           – Me dá o amuleto. – Nandini pediu. – As coisas dela ainda estão aqui. Posso tentar fazer uma bússola...

           – O amuleto está com ela. – Lena interrompeu.

           – Puta merda. – Nandini concluiu. – Estamos muito fodidos.

           Puseram os pertences nas malas e as levaram, junto com as de Laura, para a recepção da pousada. Ainda chamaram, diversas vezes, por ela. Sem resposta. Dela, ou de qualquer outra alma viva. O caminho foi feito sem que ninguém os abordasse – funcionários ou mesmo outros hóspedes. Quando chegaram ao balcão, a única pessoa que viram vinha entrando pelo portão de fora. Uma mulher de meia idade, blazer, coque nos cabelos e um molho repleto de chaves. Parecia absorta demais em seus próprios pensamentos para notá-los, ao menos até cruzar as escadas e se deparar com os três próximos às bagagens ao lado do balcão e parar, assustada.

           – Quem são vocês? – Perguntou, em seu sotaque castelhano carregadíssimo. – A pousada está fechada. Quem abriu para vocês?

           Os três se entreolharam antes de responder. Nandini tornou a praguejar:

           – Puta merda.

***

           – Meu nome é Mercedes Muñoz. – A mulher dizia, servindo um pouco de café instantâneo. Parecia extremamente calma apesar de lidar com o desaparecimento de uma menor de idade dentro de seu estabelecimento. – Sou a dona do lugar. Fui eu quem contratou vocês.

           Estavam na copa, sentados ao redor de uma charmosa mesinha de aço com tampo de vidro. Dois dos cafés servidos esfriavam a olhos vistos. Lena bebericava o seu em intervalos regulares.

           – O lugar estava cheio ontem. Só tinha dois chalés disponíveis. – Daniel alegou. – Fomos atendidos por um homem que se dizia gerente, chamado Jarbas.

           – Não recebo nenhum hóspede há meses. – Ela contestou. – Na maior parte do tempo o lugar vem se gerindo sozinho à noite. Eu nunca fico aqui depois que escurece. Os esperei até quase seis horas, e presumi que não viriam. Fui embora. Planejava esperar que viessem hoje.

           – Está dizendo que as pessoas que vimos ontem... – Nandini começou.

           – Fantasmas. – Mercedes concluiu. – Eles vêm a esse lugar desde que meu pai comprou o açougue e construiu a pousada em cima. Segundo algumas pessoas da região, vinham até antes disso. A maioria é inofensiva.

           – A maioria? – Daniel perguntou.

           – Olha, dona Consuela... – Nandini começou.

           – Mercedes. – A mulher interrompeu.

           – ...que se foda o nome, – Nandini continuou – tem uma amiga nossa desaparecida, e estamos...

           – Ninguém nunca desapareceu aqui. – Mercedes insistiu. – Algumas pessoas se perdem por algumas horas, e em casos raros, um dia ou dois. Sua amiga vai aparecer. A questão é se vocês estarão prontos para tirá-la daqui quando a encontrarem.

           – O que quer dizer com isso? – Lena perguntou.

           – Eu os chamei para lidar com uma ameaça. Há um entre os fantasmas que é extremamente hostil e que está atacando e destruindo outros de sua espécie. Antes dele as coisas eram, sabe, gerenciáveis. Um susto aqui, um pesadelo ali. Depois desse, não. Minha pousada se tornou verdadeiramente assombrada. O lugar agora é hostil demais à presença humana. A única proteção efetiva que se têm é a luz do dia. Por alguma razão, os fantasmas só surgem à noite e se vão cedo pela manhã. Há apenas uma exceção.

           – Qual? – Daniel perguntou.

           – Uma menina. – Mercedes respondeu. – Ela sofreu um acidente infeliz e se afogou em uma caixa d’água destampada no terraço acima de nós. Ela ainda está lá, mas muito fraca para fazer contato. Duvido que consigam. Eu só venho aqui por ela. Está quase desaparecendo. Quando ela se for, pretendo fechar de vez o lugar. Mas desde o surgimento do hostil, a impressão que eu tenho é que os dias ficam cada vez mais curtos lá em cima, e em mais de uma ocasião eu tive problemas para sair. Por isso quero que o destruam, expulsem, ou seja lá o que fazem nesse tipo de situação.

           – Veja bem, senhora. – Daniel tentou explicar. – Nossa prioridade no momento é encontrar nossa amiga. Faremos qualquer coisa depois de a encontrarmos.

           – Vocês não vão encontrá-la agora, isso eu posso garantir. – Mercedes insistiu. – Se ela sumiu à noite, só poderá ser reencontrada à noite. Já vi acontecer. Eu posso lhes dar as chaves da pousada inteira, e vocês podem procurar onde quiserem, mas será em vão. De qualquer forma, os fantasmas não fazem mal aos vivos que entram aqui, desde que não chamem muito a atenção. Eles perturbam um pouco, e podem se tornar violentos em casos extremos, mas não são realmente capazes de ferir, só de assustar. Diferente do hostil. O hostil é um problema. Ele pode feri-los.

           – Acho então que não temos alternativa. – Lena comentou para os colegas. – Certamente teremos de lidar com o hostil enquanto procurarmos Laura à noite. Melhor usarmos nossas horas nos preparando.

           – Eu não vou esperar escurecer para começar a procurar a Laura. – Nandini insistiu. Depois, se voltou para Mercedes. – Se você vai nos dar as chaves, é melhor fazer isso agora.

           Mercedes entregou o molho de chaves e explicou a que cada grupo era destinado. Também lhes deu a maioria das informações que julgava importantes sobre os fenômenos que acometiam a pousada: lapsos de tempo, desorientação geográfica e comportamento errático de eletrônicos. Explicou que, fazia algum tempo, chamadas de telefone não eram feitas ou recebidas dentro dos limites da pousada, exceto pelo telefone fixo da recepção, e que aliás, aquele lugar era o único ambiente que o hostil evitava, qualquer que fosse o motivo. Recomendou que ficassem juntos e que fossem muito cuidadosos ao pedir orientação aos fantasmas, já que a maioria era simpática, mas notavelmente confusa.

           – Como é que a gente vai confiar na opinião de um sujeito que ainda nem percebeu que morreu, me digam? – Nandini comentava sobre o último ponto enquanto abriam chalé por chalé em busca de Laura.

           – A maioria dos mortos inquietos é vítima de algum acidente que os pegou desprevenidos. – Daniel explicava, checando os banheiros. – Esses nunca ficam vagando mais que algumas horas, ou dias. É mais comum do que você imagina. Os que não querem ir é que dão trabalho. Esses têm que ser convencidos.

           – O que nos leva à questão de como lidar com o tal hostil. – Lena disse enquanto checava embaixo das camas. – Estamos sem o amuleto. Eu consigo realizar alguns feitiços sem ele, mas eles não funcionam bem. Incorporar e capturar, por exemplo, seria extremamente arriscado nesse contexto.

           – O cofre que eu trouxe pode funcionar porque já está pronto. – Nandini explicou. – Mas meu grimório inteiro é quase inútil sem o amuleto. Nunca consigo fazer nada pegar de primeira sem ele.

           – Eu ainda conservo a maioria das minhas capacidades de ver e me comunicar com espíritos. – Daniel concluiu. – Mas aqui eles são tão frequentes e nítidos que eu nem consigo ver a diferença entre eles e os vivos.

           Procuraram no lugar inteiro. Nas dependências da recepção, onde Mercedes aguardava, sentada em sua escrivaninha e mexendo em um laptop. Em cada um dos chalés, no salão de eventos, na cozinha, nos banheiros, na área da piscina, no armazém. Nenhum sinal de Laura ou de qualquer outra alma viva. A única estranheza que notaram foi um cheiro estranho, muito sutil, no porão, onde ficava a adega – que aliás, ainda ostentava vinho de qualidade em algumas prateleiras – ao lado da qual algumas ferramentas no chão chamavam a atenção para um trecho recém-rebocado de parede.   

           Retornaram ao saguão e se deram conta de que era quase quatro da tarde.

           – Péra aí. – Nandini chamou atenção para o relógio na parede. – Acordamos não era nem sete da manhã. Não é possível que a gente tenha passado o dia inteiro andando dentro dessa pousada.

           – Não passamos. – Lena observou. – Era dez horas quando descemos até a adega.

           – Está dizendo que passamos seis horas lá embaixo? – Daniel perguntou, estupefato.

           – Fomos advertidos de que algo assim poderia acontecer. – Lena respondeu.

           – Isso nos dá muito menos tempo de preparo. – Daniel observou.

           – Não que dê pra fazer qualquer coisa além do que já estamos fazendo. – Nandini retrucou. – A gente só pode contar com o cofre e com a sorte agora. Não sei vocês, mas a minha é uma porcaria.

           Passaram as duas horas restantes antes de escurecer tentando algumas proteções básicas. Nandini usou do próprio sangue para marcar os amigos e a si própria em um ritual que, em tese, deveria tornar os fantasmas mais receptivos a ouvi-los e trocar pequenos favores. Lena tentou invocar Olímpicos três vezes, obtendo sucesso apenas na última e Daniel tentou um feitiço de sorte que usava uma mechinha do cabelo de cada um em uma bonequinha de trapos. Nada muito poderoso, mas ao menos um pouco mais garantido. O plano para lidar com o hostil era simplesmente tentar forçá-lo para dentro do cofre através de algum dos feitiços de Lena potencializados pela sorte melhorada através do feitiço de Daniel. Uma vez dentro, os três estavam razoavelmente seguros de que não conseguiria sair.

           À noite, os primeiros sinais de movimentação vieram na forma de sons de conversa do lado de fora da recepção. Mercedes havia acabado de trazer alguma comida, lanternas e avisado que iria embora e só voltaria na manhã seguinte.

           – Não esqueçam. – Ela reiterou. – O que motiva essas almas penadas é a consistência. Quanto mais consistente for essa imitação de vida que estão levando, mais imersos e menos propensos à violência estarão também. Não tentem alertá-los de que estão mortos e não estraguem a magia dessas novelinhas que eles estão fantasiando viver. Eu gerenciei esse hotel por mais de dez anos dessa forma. Se agirem corretamente, só terão de se preocupar com o hostil. Ele é quem está tentando destruir esse lugar.

           Ainda a ouviram cumprimentar uma ou duas pessoas antes de eles mesmos saírem de trás do balcão e atestar uma quantidade razoável de pessoas transitando do saguão até o salão de festas.

           – Medonho, não é? – Daniel comentou enquanto avançavam junto com os demais.

           Primeiro, resolveram se misturar um pouco e tentar reconhecer algum rosto familiar. O corredor à meia-luz e o chorinho que tocava baixo nas caixas de som espalhadas tornavam todo corredor principal extremamente charmoso, e os demais hóspedes seguiam rindo e conversando em pequenos grupos.

           Daniel, entretanto, notou algo muito sutil. Eventualmente os outros hóspedes olhavam para eles três, muito discretamente, ainda que não parecessem muito interessados uns nos outros. De uma forma pressurosa, percebeu que ele e as amigas já estavam, em algum grau, chamando atenção.

           E isso era inquietante.

           – Qual o roteiro? – Nandini perguntou.

           – O mesmo que fizemos durante o dia. – Daniel sussurrou em resposta. – Vamos na ala dos empregados, depois no terraço, descemos para os chalés e terminamos na adega. Temos a noite toda para tentar achar ela. 

           – Isso se não rolar um daqueles lapsos de tempo. E o que a gente faz se não achar ela, Daniel?

           – Aí a gente liga pra vó amanhã de manhã e pede ajuda. Mas se as coisas forem como Mercedes disse e se a gente conseguir prender o hostil no cofre, certeza que fica mais fácil de achar Laura. Então temos que ficar atentos para não perder a chance.

           O salão de festas estava apinhado de pessoas – mais de cem, seguramente. Havia uma banda tocando valsa ao fundo, e todos dançavam uns com os outros. Parecia uma festa de casamento.

           – Não são pessoas demais para o tamanho da pousada? – Lena comentou, à porta. – Eu achava que fantasmas não interagiam bem uns com os outros.

           – Não interagem. – Daniel respondeu ao comentário, preocupado. – Normalmente nem mesmo são capazes de ver uns aos outros. Fiquem de olhos abertos e... ei, Nandini!

           Nandini acabara de se afastar dos colegas para pegar uma das taças de champanhe que estavam sendo servidas por garçons. Emborcou sem cerimônia, lambendo os lábios. Daniel chegou até ela e a segurou pelo braço.

           – O que você pensa que... – Começou a ralhar, ao que ela o interrompeu, sussurrando:

           – Estou me misturando. Relaxe, sou forte pra bebida. Pegue uma e dê uma à Lena. Não estamos vestidos para festa e alguns deles já começaram a reparar nisso.

           Daniel olhou ao redor e verificou que ela tinha razão: já havia dúzias de olhares de soslaio direcionados a eles. Pegou duas das taças, sorriu brevemente para ninguém em particular e entregou uma à Lena, que só bebericou.

           – O que acontece se eles resolverem nos atacar? – Lena perguntou, baixo, a Daniel.

           – Fantasmas normalmente agem através de alucinações. – Daniel respondeu. – Precisam fazer um esforço enorme para interagir fisicamente com vivos, então é pouco provável que te machuquem, mas podem te confundir ou te desorientar. Por isso...

           – Com licença, jovens. – A voz grave e clara se fez ouvir atrás de suas costas. – Eu poderia confirmar se seus nomes estão na lista de convidados para a recepção?

           Os três se viraram e deram de cara com um homem largo de terno e óculos - Evidentemente um segurança. Mas havia algo de errado com ele – além do fato óbvio de estar morto. Um olhar mais atento revelava que seu terno parecia mofado e meio roto, além de pertencer a um modelo claramente fora de moda. Havia algo em sua pele – a textura, ou a cor, talvez – que lhe emprestava um aspecto macilento, oleoso. Carregava um caderninho encapado em couro e olhava os três com cara de poucos amigos.

           – Estamos na lista. – Lena respondeu, encarando de volta, com fixidez. – Pela luminescência de Och, exijo que reconheça nosso prestígio e nos deixe em paz.

           Cuspiu no segurança. Ele recuou, de susto e limpou o rosto com as mãos.

           E logo em seguida avançou contra os três, que correram.

           Nandini, safa, se embrenhou no meio dos convidados que dançavam e disparou no caminho da cozinha. Estivera lá mais cedo e lembrava-se de ter visto uma porta dos fundos que levava à área da piscina, e de lá à área dos chalés, de onde poderia acessar a recepção. Olhando para trás conseguia divisar Daniel, atrás de si, abrindo caminho no meio dos convidados e Lena, bem próxima a ele, mas perigosamente ao alcance do segurança. Só no meio da fuga percebeu que não tinham pensado em um plano para o caso de serem forçados a se separar. Entre esbarrões e pedidos desajeitados de desculpas, deixou o salão pela mesma porta dupla por onde entravam os garçons.

           Lena, vendo Nandini à frente, tentou segui-la, mas foi agarrada pelo segurança. Chamou alguma atenção enquanto se debatia, mas foi rapidamente arrastada para fora do salão na direção do saguão.

           Daniel correra na direção das escadarias que levavam ao terraço, mas foi agarrado por alguém que dançava no meio do caminho. Ia tentar se desvencilhar quando a voz conhecida sussurrou, com urgência, em seus ouvidos:

           – Não, não. Eu sei porque está aqui. Eu posso ajudar você a encontrar sua amiga.

           Parou de se debater e deu atenção a quem lhe falava: era Rosângela, a morena com quem flertara na noite anterior, quando chegara à recepção.

           – Como sabe sobre Laura? – Ele perguntou.

           – Não fale ainda, só dance. – Ela o orientou.

           Daniel perdera Lena e Nandini de vista. Os dois dançavam de forma desajeitada, já que ele não conseguia acompanhá-la muito bem, mas ao menos os homens de terno que perambulavam pelo salão, certamente à sua procura, os ignoraram.

           – Eu preciso encontrar minhas amigas. – Daniel insistiu, depois de algum tempo.

           – Elas vão ficar bem. – Rosângela respondeu, ao seu ouvido. – Nós estamos cuidando delas. Alguns de nós, pelo menos. Queremos reunir vocês, para que possam nos livrar da ameaça da Dama.

           – Dama? – Daniel perguntou.

           – Sim. Aquela que está nos atormentando. Veja, a maioria de nós não sabe o que está acontecendo aqui. O segurança que o seguiu, os músicos no palco ou a noiva se casando são só perdidos que vagam em busca de um pouco de conforto. Eu não. Jarbas também não. Nós, além de alguns outros, somos os anfitriões. Entendemos nossa condição e ajudamos aqueles que só buscam um pouco de paz. Sabemos quem são, e sabemos porque estão aqui. Queremos ajudar. Me deixe ajudar.

           – Nandini e Lena...

           – Jarbas as reunirá na recepção, assim como Laura. Lá a Dama não os alcança. Eu o levarei até lá quando chegar a hora, mas por hora precisa confiar em mim. Vamos dançar mais um pouco para não chamar a atenção e então eu o levarei ao meu chalé. Podemos ficar lá até Jarbas dar o sinal de que reuniu as outras duas. Desde que façamos até a meia-noite, não há risco de a Dama nos encontrar.

           Parte de Daniel tentava encontrar uma falha naquela história, algo que lhe desse razões para desacreditar de Rosângela e seguir em sua busca pelas amigas. Por um lado, parecia bom demais para ser verdade, mas por outro, a própria Mercedes lhe dissera que a maioria dos fantasmas era pacífica e que faria o que fosse preciso para proteger seu estilo de vida. Era coerente.

           Mais decisivo, porém, que seus pensamentos racionais, era o perfume.

           Rosângela era incrivelmente perfumada para uma morta. A maioria dos fantasmas que conhecia quase não tinha substância, muito menos cheiro, temperatura ou textura. Eram ecos famélicos de pessoas idas. Rosângela, por outro lado, era nítida, atraente, perfumada e, principalmente, quente. Seus braços ao redor da cintura dela sentiam o calor e a forma por baixo do vestido de festa. No pescoço, a jugular pulsava e os lábios carnudos, úmidos e convidativos, brilhavam. 

           – Venha, é nossa chance.

           Ela disse, ao seu ouvido, fazendo-o se arrepiar. Logo em seguida pegou sua mão e o guiou para fora do salão, pela cozinha. Passaram pelos funcionários atarefados e seguiram pela área da piscina, vazia àquela altura. Ela não parava, não olhava para trás e não dava explicações. Apenas quando chegaram ao chalé dezoito, ocasião em que tirou de dentro do decote uma chave e inseriu na fechadura, foi que Daniel pôde tomar fôlego.

           – Vamos, entre. – Ela pediu.

           – Por que não podemos ficar no meu chalé? – Ele perguntou.

           – Porque aquela proteção que vocês fizeram me mataria... de novo. – Ela respondeu. Quase matou a Dama quando ela esteve lá.

           – Então a Dama realmente consegue vencer esse tipo de feitiço? – Daniel perguntou, muito interessado.

           – Por pouco tempo. – Rosângela respondeu. – Agora entre.

           Daniel obedeceu. O chalé era exatamente como o que ele e as amigas ocupavam, com a diferença de ser mais espaçoso por só ter uma cama de casal. Um abajur aceso em meia-luz banhava todo o aposento em um dourado suave, e o cheiro da pele da ocupante era o mesmo que inundava o quarto inteiro.

           – O que fazemos agora? – Ele perguntou.

           A resposta foi o som de roupas ao chão, às suas costas. Como de costume, sua imaginação disparou, mas não precisou trabalhar muito porque logo em seguida um par de mãos cálidas lhe invadiu a camisa e lhe acariciou o peito.

           – Temos muito tempo até a meia-noite. – Rosângela respondeu com mais um sussurro ao ouvido. – Você sabe do que nós, inquietos, nos alimentamos.

           – Vocês se alimentam de... – Ele respondeu, a muito custo mantendo a pouca concentração que lhe restava – ...emoções. Sentimentos. Paixões.

           – Desejos. – Ela acrescentou. – Eu jamais desperdiçaria a chance de me saciar um pouco com alguém tão jovem e viçoso como você. Vamos. Você não tem nada a perder. Me sacie um pouco enquanto esperamos as coisas se resolverem.

           Daniel tentou pensar em dezenas de coisas para dizer, mas a pressão dos seios fartos contra suas omoplatas já era o suficiente para nublar seus sentidos até a incoerência boçal. O golpe de misericórdia, porém, se deu quando as mãos dela escorregaram do interior da camisa para o interior da calça.

***

           – É só deixar ela aí até o gerente chegar. – Disse o segurança ao seu subalterno. – Fique olhando. Vou procurar o garoto e as outras duas.

           Lena observava as costas do rapaz de terno e se perguntava o que teria acontecido com os outros. O segurança que a capturara havia mencionado outras duas – o que significa Nandini e Laura, obviamente. Essa era a boa notícia – alguém tinha notícias de Laura.

           A má notícia era que estava impossibilitada de contar aos outros, ao menos por enquanto.

           Seus olhos esquadrinharam a sala enquanto os homens conversavam. Havia a escrivaninha na qual Mercedes havia ficado sentada todo o dia. Havia o armário de arquivos, no canto da sala, a cadeira de escritório onde estava sentada e o pequeno sofá. Havia a refeição meio comida em cima da escrivaninha, provavelmente do rapaz que fazia a sua segurança.

           E havia o garfo e a faca de ferro largados sobre o prato.

           Lena sabia que era estupidez tentar esfaquear o segurança até a morte antes que ele estivesse imobilizado de alguma forma. Também sabia que sem o amuleto, a chance de vencer a vontade de um fantasma forte o bastante para agarrá-la e transportá-la era mínima. Tentara um golpe de sorte no salão de festas, movida pelo desespero. Não seria o caso dessa vez.

           Olhou mais uma vez para os dois à porta, e a conversa dava sinais de se esticar mais um pouco. Sorrateiramente, se esgueirou na direção da refeição.

           Tinha de ser cuidadosa, ou ele perceberia. Cuspiu duas ou três vezes em pontos diferentes do prato e imediatamente voltou à posição em que fora deixada.

           Agora vinha a parte difícil.

           Concentrou-se em seu objetivo. Na última vez que tentara aquele encantamento, conseguira fazer Neide derrubar um copo enquanto lavava a louça, vítima de uma dormência inesperada nas mãos. Era bem menos do que tentaria ali, mas além de não ter cuspido nela, havia o ritual de sorte que Daniel fizera na boneca de trapos. As chances eram melhores.

           – Eu invoco a fluidez dos espíritos da Lua. – Sussurrou. – Que a metamorfose transformadora de Phul torne veneno em cura e a cura em veneno, trave os ossos, adormeça os músculos, mas mantenha intacta a língua que me dará respostas.

           Seguiu sussurrando o encantamento enquanto esperava.

           O rapaz de terno finalmente fechou a porta e passou o ferrolho por dentro.

           – Tudo vai ficar bem se você se comportar. – Ele advertiu. – Vocês só invadiram uma festa, não cometeram nenhum crime. Fique sentadinha aí que logo vocês estarão liberados.

           Lena seguiu em silêncio enquanto ele buscava o prato para terminar de comer. Sentou-se no sofá próximo e, sem cerimônia, continuou a refeição. À medida que o conteúdo diminuía no prato, ela conseguia perceber suas reações se tornando mais lentas. Ofegava. As mãos começaram a tremer tão violentamente que derrubaram o prato e espalharam o pouco da comida restante que ainda havia pelo chão. Percebendo que ela o observava, talvez com ansiedade crescente no rosto, fez menção de se levantar, mas as pernas não obedeceram.

           – Eu... eu estou passando mal. – Pediu. – Chame ajuda, por favor.

           Lena levantou, ainda receosa, e foi à porta. Havia duas trancas: um ferrolho interno e uma daquelas chaves metálicas que ficam sempre presas à tranca. Por um momento breve se viu saindo dali e correndo para a segurança relativa da companhia dos colegas. Mas o momento passou e foi substituído por outro, em que se lembrou, assim como havia lembrado na ocasião em que atacara e quase matara o vampiro, que estava diante de uma presa indefesa, cujo destino não lhe conferiria qualquer ônus exceto o risco de ser pega em um exercício embaraçoso e difícil de explicar. Pensou no que Mercedes dissera sobre o quão longe fantasmas iam para manter a consistência de suas simulações. Olhou de relance para o rapaz imobilizado e se perguntou o quanto ele seria capaz de sangrar e sofrer antes de desaparecer em uma poça de ectoplasma. A ideia fez seu coração acelerar e seus pelos eriçarem.

           Manteve o ferrolho onde estava e reforçou a segurança girando a chave. Aproximou-se do rapaz imóvel, sentado, com os braços pendendo dos lados do corpo. Despiu o suéter e o amarrou em volta de sua cabeça, usando os braços como uma mordaça. Ele não pôde reagir, exceto pelos gritos abafados de socorro. Depois ela se abaixou e recolheu a faca de cozinha. Não era muito resistente – apenas um talher, com dentinhos minúsculos e, felizmente, uma ponta.

           – Eu tenho algumas perguntas – ela dizia, enquanto o livrava do paletó e depois da camisa – mas eu não vou acreditar nas respostas até que eu tenha certeza de que o conheço bem. Vou começar a te conhecer pelas unhas, depois pelos dedos, mãos e assim sucessivamente. Quando eu chegar nos seus mamilos, espero que já sejamos suficientemente íntimos para que possamos começar a nos entender.

           Sentou-se em seu colo, de frente para ele, mais ou menos como fizera com o menino vampiro. Segurou-lhe a mão, levou-a à boca e apertou um pouco o dedo indicador entre os dentes. Em condições normais jamais poria os dedos de um desconhecido na boca. Mais que um gesto de intimidação ou de sensualidade macabra, porém, seu intento era gustativo. Sentiu, com a superfície da língua, o metálico dos talheres que ele manuseara, um pouco de salgado do tempero de carne e, principalmente, o oleoso e ácido do pavor decantado e excretado por suas glândulas sudoríparas. Faltava apenas uma nota para completar a sinfonia:

           A doce, ferrosa, do sangue.

           Mordeu. 

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