– Lena, é muito importante. Sei que você não é a pessoa mais rápida para pegar essas coisas, mas quero que se esforce. O Igor, alguma vez, já demonstrou algum comportamento impróprio?
Todos olhavam para Lena com apreensão. Daniel tentava suportar a dor de cabeça cavalar enquanto reunia o maior número de respostas possível antes que Igor retornasse com os analgésicos.
Depois do choque inicial e de ter conseguido retirar o amuleto, quase o perdendo na areia durante o processo, Igor ajudou todos a irem para o carro. A primeira medida que tomaram foi deixar as Emanuelas o mais rápido possível, indo em direção à praia mais próxima. Lá, encontraram um barzinho qualquer e, dado o estado de Daniel e de Laura, pediram a Igor que fosse atrás de remédios e de água de coco, o que os deixaria suficientemente a sós para que Daniel pudesse tirar uma dúvida importante.
– Eu preciso de uma definição de impróprio. – Lena pediu. – A maioria das pessoas que eu conheço está cheia de comportamentos desnecessários, imprudentes ou nocivos. Eu os consideraria todos impróprios. Ele, por exemplo, perde muito tempo vendo jogos de futebol, o que eu acho um desperdício de...
– Estou falando de comportamentos obscenos. – Daniel explicou, sem paciência. – Como ele se comporta com você, ou com outras mulheres? Ele é do tipo grosseiro, ou inconveniente? Faz piadas sujas, comentários maldosos, essas coisas?
Lena pensou um pouco, vasculhando as memórias e buscando algo que pudesse se encaixar no que Daniel estava descrevendo.
– Nunca. – Lena respondeu. – Não sob essa definição de impróprio. Eu jamais precisei adverti-lo acerca de qualquer circunstância semelhante. Sob esse aspecto, ele é totalmente adequado. Entretanto, não conheço seu comportamento durante as folgas. Se ele é um homem vulgar na companhia de outros homens, ou longe de minha presença, ignoro totalmente.
– Na boa, eu achava que ele era gay. – Nandini comentou. – Ele é tão... você sabe, tão mordomo de cinema. Eu sei que nenhuma de nós é uma página de calendário de borracharia, exceto você, Laura...
– Vai se lascar. – Laura respondeu, de mau humor.
– ...mas os caras sempre dão uma olhadinha em um decotinho ou uma perninha de fora. Ele não. Está sempre sério, sisudo. E a gente sempre nota quando tem um cara nos secando. Também pode ser que esse foda-se seja só comigo, que não tenho cinquenta de coxa. Ele já te deu umas olhadelas, Laura?
– Nunca reparei. – Laura respondeu. – E eu meio que estou acostumada com esse tipo de coisa. Teria notado.
– Como é modesta... – Nandini ia começar, mas Daniel a interrompeu:
– Nandini, você prometeu.
– Só tô dizendo – Nandini insistiu – que a gente se conhece há mais de um ano e onde quer que a gente vá sempre tem algum marmanjo comendo a Laura com os olhos. É tipo uma regra. Vai ver o Igor só...
– Ele disse que se tivesse uma prima gostosa desse jeito, não perdoava. – Daniel interrompeu. – Disse em tom de incentivo. Disse para me provocar.
Por alguns instantes, ninguém falou nada. As palavras flutuaram um pouco sobre todos antes de se assentarem sobre a mesa.
– ...que nojo. – Laura quebrou o silêncio, abraçando o peito instintivamente. Nandini também franziu o cenho de ojeriza, muito desconfortável.
– Não parece algo que ele diria. – Lena insistiu.
– O que nos leva à questão do amuleto. – Daniel prosseguiu. Eu o pus na tentativa de ver se havia algo errado com ele.
– Aí você e a Laura caíram. – Nandini confirmou. – Eu também senti uma pontada forte de dor de cabeça, mas acho que foi mais fraca porque eu estava mais longe.
– Eu não senti nada. – Lena informou. – Mas Igor me avisou para ficar onde estava.
– O ponto é que eu nunca tinha sentido tanta força, tão hostil e vinda de todos os lados como ontem. – Daniel Explicou. – Eu não consegui sentir a direção. Só a intensidade. E era muito, mas muito forte.
– Agora vem o momento em que você sugere que a gente volte. – Nandini adiantou.
– Não. – Daniel discordou. – Agora é o momento em que eu sugiro que vocês voltem. O que quer que haja naquela pousada é forte o bastante para tentar nos atingir ainda na praia. Além disso, a gente está lidando com uma ameaça desconhecida. A gente supõe que seja um obsessor, mas não temos certeza. Pode muito bem ser outro demônio. Ou algo ainda mais perigoso e desconhecido.
– Um obsessor poderia influenciar o Igor da forma que fez? – Lena perguntou.
– Só se a gente assumir que ele tinha algum... – Daniel tentou responder – ...algum tipo de, você sabe...
– Tara. – Nandini completou.
– Não exatamente. – Daniel insistiu. – Não precisa ser forte assim. Um obsessor vai pegar algum sentimento ou desejo que você tenha e te manipular para te fazer tentar consumá-lo, como se fosse a coisa mais importante da sua vida.
– Você está dizendo que se isso continuar ele pode... de repente tentar me atacar? – Laura perguntou, assustada.
– É uma possibilidade. – Daniel respondeu. – O obsessor vai intensificar o desejo até que ele vire uma obsessão. Até que você não pense em mais nada a não ser naquilo. Por isso eu estou sugerindo que, se a gente for fazer isso, o Igor não venha com a gente. Ele fica no carro, bem longe da praia das Emaunelas.
– Eu pretendia sugerir isso. – Lena concordou. – Ele pode se hospedar em alguma outra pousada e ficar de prontidão. Suponho que longe da presença do obsessor ele não seja um perigo, não é?
– Se for um obsessor, não. – Daniel observou.
– A gente não pode ficar no “se”. – Laura objetou. – Estamos falando da possibilidade de estupro, não é isso? Eu vim aqui para lidar com assombrações, não para...
– Ela tem razão, Daniel. – Nandini fez coro. – A gente tem de se certificar que aquilo não seguiu o Igor. De que ele voltou ao normal. E... e tem mais uma coisa.
Daniel temia que a conversa chegasse àquele ponto. Sabia que era uma possibilidade, mas estava esperançoso de que ninguém enveredasse por ali.
– O quê? – Ele perguntou, se preparando.
– Não me leve a mal, mas você também é um homem. – Nandini observou. – Tem tanto... hum... potencial de causar estragos quanto o Igor.
– Menos. – Lena observou. – Igor é treinado em combate corporal e tem porte de arma. Ele poderia matar ou forçar nós quatro sem muito esforço.
– Então concordamos que ele não é uma opção de companhia? – Daniel perguntou.
– Nem você. – Nandini insistiu. – As brincadeiras da sua avó são uma coisa. Mas eu não vou de jeito nenhum correr o perigo de que você faça um estrago em mim contra a minha vontade.
– Igor não tem como perceber que está sendo atacado, mas eu tenho. Ele também não tem as mesmas proteções mágicas que nós. Além disso, me desculpem, mas duvido que vocês deem conta do problema da pousada sem a minha ajuda.
– Achei que estávamos falando em voltar. – Laura comentou.
– Estou falando em vocês voltarem. – Daniel retificou. – Eu tenho um trabalho, e vou resolvê-lo. Mas vocês não precisam...
– Olha só que machão. – Nandini returcou. – Fico até de mamilos duros. Vocês também não ficam molhadas quando Daniel tenta nos proteger com toda a sua testosterona?
– O que você quer dizer com isso? – Daniel perguntou, irritado.
– Você não dá conta daquilo sozinho, Daniel. – Nandini respondeu. – Acho que estamos lidando com uma dentada maior que a boca. A gente devia voltar. Todo mundo.
– Eu não quero voltar. – Lena esclareceu. – Posso pedir ao Igor para conduzi-las de volta...
– O quê, o cara que disse com todas as letras que não me perdoava? – Laura interrompeu. – Eu ligo pro meu pai e ele vem me buscar aqui, ou eu pego um ônibus se for preciso. Não volto com ele.
– ...depois de nos certificarmos que ele está limpo. – Lena continuou, como se não tivesse sido interrompida. – Podemos fazer isso nós dois, se você quiser, Daniel.
– Podemos. – Ele respondeu. – Eu tento verificar se há algo errado com Igor e você puxa pra fora se tiver. A gente esconjura e depois segue para a pousada sem ele. – E se dirigiu a Nandini e Laura – vocês duas podem voltar com o Igor, podem pegar um ônibus ou podem ligar para o Seu Pedrosa.
Por um momento, os quatro se encararam pensativos. Metade deles queria ir, e a outra metade não queria deixar os companheiros enfrentarem o perigo sozinhos. A única coisa com que concordavam é que seria muito arriscado.
– Daniel, é uma ideia ruim. – Laura insistiu. – Vamos voltar, a gente fala com vovó, pede desculpas, e tenta algo mais fácil da próxima vez.
– Ele conseguiu te provocar? Diga a verdade.
Daniel olhou para Nandini, que fizera a pergunta. Ela o encarava de volta muito séria.
– Como? – Daniel desconversou.
– Ele conseguiu te provocar? – Ela insistiu. – Você sabe do que eu tô falando. Não é como se querer das uns pegas na Laura fosse o fim do mundo. Eu daria uns pegas nela, depois de meia garrafa de pinga. Certeza que se o Igor não é do time da ré no quibe deve ter pensado nisso, nem que de relance, em algum momento. Dá pra passar. Nós dois sabemos que influência sobrenatural é outra coisa. Muito mais intenso. Muito mais perigoso. Mesmo um fantasma pé-de-chinelo consegue fazer uma pessoa distraída falar merda ou ter umas reações esquisitas de vez em quando. Se você puder me garantir que apesar de tudo você está bem, eu repenso minha decisão de voltar.
Daniel pensou no desejo que sentira mais cedo, tão intenso que cogitara, literalmente, lamber a cara da prima. Já havia passado. Talvez não voltasse mais, especialmente agora que estava avisado. Olhou para ela de soslaio. Parecia assustada, cobrindo o decote do biquíni com os braços, cabelo grosso do sal do mar e pele arrepiada do frio da noite. Nele, nem sinal de surto luxurioso. Lembrou da promessa que fizera à avó, das advertências e da importância do trabalho. Pesou os prós e os contras, e calculou os riscos. Por fim, respondeu com uma meia mentira:
– Não conseguiu. Eu estou bem.
– Então, no mínimo, é prova que dá pra resistir à influência. – Nandini continuou. – A gente só precisa se acalmar, se proteger e ser muito franco uns com os outros daqui pra frente. Se a gente não esconder o que está sentindo um do outro, por mais complicado que seja, a chance dos outros perceberem a influência e reagir rápido é maior.
– Então você não vem comigo. – Laura se dirigiu à Nandini.
– Olha, eu sei que você tá com medo. – Nandini respondeu, séria. – Eu também tô, na real. Mas se a gente não puder lidar com problemas complicados como esse, nunca seremos respeitados como a cabala que queremos ser. Por outro lado, eu acho que falo por todo mundo quando digo que ninguém vai te julgar se você quiser voltar. Não dá pra brincar com certos riscos.
– Eu preciso pensar mais um pouco. – Laura respondeu. – Eu espero que vocês entendam.
– A gente entende. – Daniel confirmou. – Você tem até a gente terminar com o Igor para decidir.
– Falando nele, lá vem o carro. – Nandini avisou, apontando por cima do ombro de Daniel.
***
– Olha, pelo que eu tenho visto nas últimas semanas, vocês podem ter alucinado isso tudo. – Igor disse, enquanto cedia, de muita má vontade, as algemas que sempre carregava consigo à Lena. – Eu realmente não me lembro de ter dito isso.
– Eu sei o que é uma alucinação, Igor. – Daniel retrucou. – Na maior parte do tempo, pelo menos. Não foi uma alucinação. Precisamos saber se você estava em transe, possuído ou se de repente eu é que fui influenciado a ouvir coisas. Como rastrear e puxar uma entidade em você é mais fácil que em mim, vamos começar por aí.
Ele também retirou a pistola, desmuniciou, removeu o projétil da agulha e entregou à Lena. Ela fez menção de pedir o carregador, mas ele o guardou no bolso traseiro da calça.
– Nem pensar.
Sentou-se na cadeira e deixou que Daniel prendesse um de seus pulsos à algema e o outro à armação de metal da cabeceira da cama.
– Tomara que a tinta seja lavável. – Nandini comentava, enquanto riscava um círculo mágico na parede com giz roxo.
Estavam em uma pousada na cidade vizinha, distante poucos minutos de carro da Praia das Emanuelas. A baixa temporada garantiu que havia poucos hóspedes reparando neles e poucas perguntas por parte da gerência. Escolheram o maior quarto disponível e trouxeram as bagagens para cima a fim de não levantar muitas suspeitas.
– Pronto. – Nandini começou a explicar. Dirigiu-se à Lena e apontou para o círculo na parede. – Você apoia a mão aqui. Daniel verifica se tem alguma coisa no Igor, você puxa para fora e interroga. Quando quiser se livrar, ao invés de vomitar como da última vez você só tira a mão da parede. Esse círculo funciona como um papel cola-rato. Sua mão sai, mas o bicho fica. Só mais uma cosia.
Tirou da mochila um frasquinho pequeno contendo sangue.
– Me dá a sua mão. – Pediu à Lena, que a obedeceu a contragosto.
– Relaxe, é só sangue meu com um pouco de heparina para ficar líquido. É o catalisador para o feitiço pegar. Espalha tudo na palma da mão antes de puxar o bicho. Depois que o sangue tocar o círculo, ele vai grudar a alma mais próxima que encostar nele.
– Péra, Nandini. – Daniel interferiu. – O que acontece se não tiver nada dentro da Lena para ser grudado?
– Em teoria o círculo puxaria a alma dela. – Nandini respondeu, sob os olhares espantados de todos. – Mas relaxem, o feitiço não tem força pra tudo isso. É uma versão menor e mais fraca que eu desenvolvi para capturar alguns vagantes menores e trocar pequenos favores pela libertação deles. Não vai prender nada mais forte que uma Aparição, mas pode matar um rato ou um pombo que encostar nele sem querer. Vi acontecer, é feio pra caralho.
– O que a gente faz se o que estiver em Igor... – Daniel começou, e Igor acrescentou:
– Se tiver alguma coisa em mim.
– Se tiver alguma coisa nele, – Daniel prosseguiu – e for mais forte que uma Aparição?
– Aí a gente usa isso. – Nandini respondeu, tirando um cofre de prender Malfazejos da mochila, idêntico ao que usara para prender o demônio que capturaram na Redinha. – Fiz ontem. Está tinindo de novo. Já sabemos que dá pra prender um capiroto num desses. Se o bicho que a gente tirar do Igor for mais forte que aquele demônio do mendigo, a gente entrega a alma a Deus e reza para morrer rápido.
– Você não teria aí aquele seu aparelho de glicose enfeitiçado? – Daniel perguntou.
– Está recarregando. – Nandini respondeu. – Por isso deixei em casa. Gastei a energia toda tentando medir umas maldições menores que tinha lançado em mim mesma para praticar.
– Certo. – Daniel concluiu. – Acho melhor a gente começar.
Daniel pegou o amuleto de Nandini com cuidado. Desde o choque na beira da praia vinha evitando encostar nele. Segurou ele na palma da mão e se concentrou.
Não precisou de muito. A familiar comichão que sentia na superfície da pele se manifestou imediatamente. Olhou para Igor, algemado à cama com cara de poucos amigos. Conseguia ouvir um sussurro, indistinto, vindo de algum lugar em sua direção.
– Tem algo nele. – Daniel apontou. – Tenho certeza. Lena, sua vez.
Lena pegou o amuleto com a mão limpa e olhou Igor nos olhos. Ele retribuiu com fixidez. Ela umedeceu os lábios e lhe beijou o rosto. Quando se certificou de que estava pronta, recitou:
– Que as chamas da fúria de Marte fulminem o corpo do ente imundo que atormenta meu servo como o fogo do inferno queima a carne dos condenados, mas não o consuma até que eu o permita, misericordiosamente, seguir ao seu fim merecido. Eu invoco a força belicosa de Phaleg para que o obrigue a deixar o corpo que parasita e habite sua nova moradia, oferecida voluntariamente.
Disse isso e, com a mão que segurava o Merkabah, agarrou o rosto de Igor. Ele gemeu, sacudiu na cadeira e fez menção de agredir Lena com a mão livre, mas Daniel o segurou a tempo. Pouco depois Lena se afastou e imediatamente pôs a mão no círculo do tamanho de um prato desenhado na parede.
Igor apagou por alguns instantes – tempo suficiente para que Daniel o encostasse na cadeira. Nandini segurava o cofre pronto para abrir, e Laura observava atenta embora não soubesse muito o que fazer. Lena olhou primeiro para Laura, por algum tempo. Depois para Daniel. Parecia sonolenta. Ofegava.
– Lena, está tudo bem? – Daniel perguntou.
– Não me interrompa. – Ela respondeu.
Todos se calaram por mais algum tempo. Ela seguiu ofegando, respirando fundo, e em alguns momentos seu rosto se contraiu de dor. Por fim, sem aviso, tirou a mão do círculo.
– O que houve? – Nandini perguntou.
– Na minha bolsa há um pacote de lenços umedecidos. – Lena pediu a Daniel. – Me traga três ou quatro, por favor.
Daniel fez o que ela pediu. Enquanto limpava o sangue das mãos, explicou:
– O que havia em Igor já estava muito fraco para seguir existindo por muito mais tempo. Acho que usou todas as forças que tinha para possuí-lo e fazê-lo dizer as palavras que confundiram Daniel. Eu não pude extrair muita informação, já que o ato de tirá-lo à força quase o destruiu. O que posso afirmar com certeza é que não tinha qualquer intenção libidinosa real direcionada à Laura ou a qualquer um de nós. O que eu senti com mais intensidade durante a nossa breve comunhão foi medo. Ele estava apavorado. Mas não estava com medo de mim. Em dado momento ele fez tanta força para se libertar, mesmo que soubesse ser impossível, que só posso pensar que estava tentando se destruir. Se destruir, talvez, para não ser forçado a falar.
O cheiro desagradável de sangue maldelazento e madeira podre chamou a atenção de todos para as pústulas que se abriram na madeira da parede, sobre o exato local onde o círculo mágico havia sido desenhado.
– Mas que merda é essa? – Nandini perguntou.
– Pode ser ectoplasma. – Daniel respondeu, olhando de perto. – O cadáver de um fantasma. Deve ter morrido, seja lá o que isso signifique para algo como ele. Sei como resolver isso.
Depois que Daniel havia se livrado do ectoplasma e que Nandini camuflara o círculo mágico para parecer uma pichação vulgar, Ambos conversavam com Laura enquanto desciam as bagagens de volta ao carro. Igor, apesar de ainda sentado, já recobrava as forças, ocasião em que Lena, a sós com ele, lhe devolveu a arma.
– Então tinha mesmo algo em mim. – Ele comentou, recarregando a pistola.
– Aparentemente. – Lena comentou, olhando de relance para a porta e se certificando de que ninguém os ouvia. – Mas há algo que continua me incomodando.
– E o que seria? – Ele perguntou.
– A aparição, fantasma, ou o que quer que fosse me pareceu fraco demais para possuir alguém, especialmente com sua presença de espírito. Se você fosse do tipo subjugável, jamais teria sido escolhido para me proteger.
– Não estou entendendo, senhora.
– Você sabia – Lena começou a explicar enquanto manuseava a ponta da gravata de Igor entre os dedos – que meus pais, por razões óbvias, queriam uma mulher como minha guarda-costas? Ou um homossexual? Havia boas opções disponíveis que correspondiam a ambos os requisitos.
– Não sabia.
– Fui eu que insisti em você. Você é forte, apesar de jovem. É bem treinado, mas flexível o suficiente para ser moldado. É bonito, e não me orgulho de que algumas das minhas fantasias íntimas tenham tido tal peso em uma escolha tão importante.
– Senhora, eu...
– Mais importante que tudo isso, você é confiável. – Ela o interrompeu. – Sei que não vai mentir para me agradar ou manter o emprego. Sei que, independente do que eu perguntar, será sincero.
Igor suspirou. Olhou Lena nos olhos, com a mesma determinação que a levara a escolhê-lo entre tantas outras opções.
– Eu ainda não ouvi a pergunta, senhora. – Disse.
– Eu não acho que o que tirei de você tenha sido o único responsável pelo que houve na praia. Como eu disse, me pareceu que o fantasma tinha muito medo de alguém ou alguma coisa. Acho que o tal obsessor que iremos exorcizar teve papel nisso também, mas para que ele exercesse influência sobre você, deveria haver algo em seu comportamento que o atraísse.
– Está querendo saber se eu tenho alguma segunda intenção com suas amigas? – Igor perguntou.
– Ou comigo. – Ela respondeu. – Nunca me preocupei em dividir minha casa com você porque você nunca demonstrou qualquer interesse inadequado em mim. Por mais... frustrante que isso seja em alguns aspectos, garante total confiabilidade em nosso relacionamento. Apenas quero me certificar de que continua assim, ou de que eu devo tomar precauções para que sua atenção não seja desviada do objetivo, que é a minha segurança.
Igor olhou para Lena por alguns instantes, como se elencasse as próximas palavras a partir de uma seleção muito ampla de opções. Então sorriu com o canto da boca, pelo nariz, de desdém.
– Senhora, com todo o respeito. – Disse, levantando. – Você teria de ser pelo menos sete anos mais velha e uns bons dez quilos mais encorpada para começar a chamar minha atenção. O mesmo se aplica às suas amigas. Por mais bonitinhas que sejam eu mal consigo diferenciar vocês da minha irmãzinha de treze anos. Não existe a menor chance de isso ser um problema para mim.
– Como eu dizia, frustrante. – Lena suspirou. – Mas totalmente satisfatório. Pegaremos um táxi para o hotel. Você pode se hospedar onde quiser, mas não exagere. Fique de prontidão caso liguemos.
Já passava das nove quando os três feiticeiros aprendizes, parados à frente da fachada azul-piscina da Bombordo, acenaram para o táxi em um sinal inconfundível de que deveria partir. A friagem e o tapete espesso de nuvens que cobria a lua anunciavam uma noite chuvosa à beira mar, mas por hora apenas o som da maré enchente preenchia os espaços de escuridão entre a luz fraca dos postes na rua. O quarto componente do grupo, que carregava a bolsa mais pesada, finalmente se juntou aos demais. – Você veio passar um mês? – Nandini perguntou a Laura enquanto ela trazia a bagagem para a calçada. – Metade disso é material de magia. – Ela respondeu. – Você vai me agradecer mais tarde. A mochila era só para
Lena acordou quando a claridade que entrava pela janela se tornou suficientemente forte para atravessar mesmo as cortinas entreabertas. Apesar da boca seca e da bexiga cheia, sua pele ainda formigava de excitação pelo sonho que acabara de ter. Sonhara com o menino. O menino cujo nome não descobrira, porque entregara seu cadáver semimorto a um dos seus iguais. O menino que se alimentara de Laura e de outras mulheres durante uma semana ou duas. O menino que esfaqueara até o desespero e quase à morte. Que sentira se debater entre suas pernas enquanto o coração acelerado bombeava sangue quente para fora do rasgo que lhe abrira na garganta. Mais que isso. Sonhara com o prazer lascivo, se espalhando em ondas desde o baixo ventre até as pontas dos dedos, com que se regozijara ante o sofrimento
Nandini desceu ao porão da adega por falta de opções. Havia dois seguranças a procurando na cozinha, e foi por uma sorte imensa que nenhum dos atarefados funcionários percebeu sua presença. Em um último instante de sensatez percebeu que os amigos não vinham em seu encalço, e que não chegaria à porta dos fundos antes de ser vista e perseguida. Esperaria lá embaixo até ter alguma segurança de que poderia subir – apesar de não ter ideia do que faria em seguida. O porão era só um aposento grande com paredes feitas em tijolo de barro, algumas colunas e uma adega repleta de vinho caro. Além do chão de terra batida, o único detalhe incomum era a parede recém rebocada e os materiais usados para o serviço, além do odor sutil e desagrad&aacu
– Nossas opções são bastante limitadas. – O feiticeiro comentou, sentado junto com Nandini no tapete do saguão. – Na forma em que estou serei de pouca ou nenhuma ajuda. – Você foi uma ajuda do caralho derrubando a adega no porão. – Nandini agradeceu. – Sem você eu não teria saído de lá viva. – O problema é que isso me custou muito da força que eu ainda tenho. – Ele explicou, mostrando a mão que já começava a empalidecer. – Não posso fazer nada daquele tipo novamente. Preciso de um corpo. Preciso daquele seu amigo médium. – O Daniel? – Nandini perguntou. – Ele não incorpora. Fala, escuta e até expulsa.
– Eu não esperava encontrá-los aqui. – Mercedes dizia, com o cano da arma apontado para o peito de Daniel. – Não importa, a essa altura. Está tudo quase pronto. Entrem, os três. Não tentem nenhuma bobagem, ou eu juro por Deus que os mato. Mercedes parecia ter passado por maus bocados. Estava descabelada e suja. Seus olhos, encovados, pareciam à beira da insanidade. Enquanto os três se espremiam no canto oposto do chalé, ela abria o pingente da correntinha de Laura com uma das mãos, mas não desviava a atenção deles. – O que está acontecendo aqui, Mercedes? – Daniel perguntou. – Você não precisa nos ameaçar, nós viemos ajudar. – Sei que um d
Já fazia algum tempo que o sol despontara no horizonte. Os raios majestosos banhavam a praia das Emanuelas e faziam o mar longínquo cintilar como o brilho de milhares de cristais sobre a sua superfície. Do terraço da Bombordo, pousada notavelmente assombrada e fechada havia meses, era possível sentir a brisa marítima, salgada e oleosa de maresia. Daniel observava a área dos chalés sentado na beirada do parapeito raso. Lá embaixo conseguia distinguir Laura, que cambaleava aos prantos, e Lena, que tropegava exausta, ajudadas por Igor, em direção ao chalé vinte e oito. Ao seu lado, também sentada na mureta, uma menininha bonita de longos cabelos escuros que bailavam ao sa
Já passava das quatro da tarde quando Daniel tornou a abrir os olhos, sentindo a mudança sutil de temperatura no quarto. Sentou-se, desorientado, acordado de um sonho sensacional. Nele, revelava a Nandini seus sentimentos e os dois selavam a união com o amasso mais quente de que ele se lembrava na vida. Olhou ao redor, confuso. Lena, ainda em sua camisola de duas peças, teclava penosamente em um laptop apoiado no colo. Os dedos enfaixados tornavam a tarefa difícil, além de lenta. – Você deve estar faminto. – Ela comentou, sem tirar os olhos da tela. – Sei porque também estava quando acordei. – Pensa r&aa
Em noites anteriores... O dono de uma loja de cosméticos situada em um dos maiores shopping centers da cidade passa pelo pesadelo de ter sua jovem filha desaparecida por uma noite e pela alegria de reencontrá-la em um hospital dias depois – apesar de desorientada, exangue e sem qualquer lembrança do que ocorrera entre sair da casa da mãe e ser socorrida pela polícia. Passado o trauma, ficaram estranhos vestígios no comportamento da filha – predileções infantis, sonhos estranhos e desenhos representando um lugar próximo de onde havia sido resgatada, além da descoberta de que ela era apenas uma de outras tantas vítimas semelhantes em idade, sexo e cor de cabelos – todas características procuradas pelo ainda desconhecido sequestrador de loiras &nda