Já passava das nove quando os três feiticeiros aprendizes, parados à frente da fachada azul-piscina da Bombordo, acenaram para o táxi em um sinal inconfundível de que deveria partir. A friagem e o tapete espesso de nuvens que cobria a lua anunciavam uma noite chuvosa à beira mar, mas por hora apenas o som da maré enchente preenchia os espaços de escuridão entre a luz fraca dos postes na rua.
O quarto componente do grupo, que carregava a bolsa mais pesada, finalmente se juntou aos demais.
– Você veio passar um mês? – Nandini perguntou a Laura enquanto ela trazia a bagagem para a calçada.
– Metade disso é material de magia. – Ela respondeu. – Você vai me agradecer mais tarde. A mochila era só para despistar o meu pai, caso ele resolvesse fazer uma vistoria de última hora.
Daniel pressionou o interfone e esperou que alguém se manifestasse. Por um minuto o silêncio total foi a resposta. Em seguida, uma voz cordial os cumprimentou:
– Bem-vindos à Bombordo. Um recanto tranquilo no qual os viajantes podem descansar antes de aproveitar as delícias de nossa terra maravilhosa. Em que posso servi-los?
– Estamos aqui para falar com Mercedes. Ela nos chamou.
– A senhora Muñoz os aguardará na sala de estar da recepção. Se precisarem de alguma coisa, eu sou Jarbas, seu criado.
A porta da frente se abriu, deslizando para o lado. Os quatro atravessaram o pátio carregando as bolsas e passaram pela guarita do vigia, que era pouco mais que uma silhueta atrás de uma janela de vidro escura. O portal do saguão era um arco alto e charmoso, mas meio descascado pela ação do tempo. Logo após ele uma recepção vazia, com um telefone sobre o balcão de pedra e o livro de registro dos hóspedes, fechado. Atrás do balcão os armários contendo as chaves.
Nada da senhora Muñoz.
Seguiram para a sala de estar do saguão – um espaço charmoso com algumas cadeiras almofadadas feitas de tiras de palha de coco e um quadro enorme ocupando toda a parede representando um navio virando à bombordo para evitar bater em um rochedo, cujo escanteio era parcialmente coberto por uma televisão de plasma exibindo uma novela. Sentada em uma das cadeiras havia uma morena muito atraente usando roupão de banho e óculos de sol. Lia alguma coisa em um dos panfletinhos que ficavam empilhados na mesinha de centro.
Sentaram-se, pousaram as bagagens e esperaram. Algumas outras pessoas também transitavam ao fundo, algumas delas indo à recepção e procurando por alguém. Talvez procurassem a senhora Muñoz, também. Pensando nisso, Daniel perguntou à mulher de roupão:
– Com licença, mas a senhora viu algum sinal da gerente?
– Nossa senhora está no céu. – A mulher respondeu, com um sorriso. Nandini revirou os olhos. – Eu não a vejo desde que cheguei. Mas acho que o gerente se chama Jarbas. Eu me chamo Rosângela.
– Daniel. Nós somos...
– ...uma caravana da Igreja de Nosso Senhor dos Santos dos Últimos Dias. – Laura o interrompeu. – Estamos aqui para um evento de jovens.
– Jarbas é um sujeito alto, de camisa social e costeletas. – Rosângela acrescentou. – Deve voltar ao balcão a qualquer hora.
Esperaram mais um pouco. Rosângela levantou-se e dirigiu-se a uma porta dupla do outro lado da recepção. Laura ainda a viu lançar uma piscadela para Daniel, ao que ele respondeu com um sorriso abobalhado. Outras pessoas vinham de fora e também se dirigiam ao local, algumas os fitando enquanto passavam. Mais alguns minutos depois e um homem alto, de camisa social e costeletas grisalhas vinha da única outra porta do local – também dupla, mas de vidro, e passava na direção da recepção quando foi percebido por Nandini, que acenou e chamou:
– O senhor é Jarbas, o gerente?
– Sim, sou eu. – O homem respondeu. – Vocês devem ser... vocês são os convidados da madame Muñoz, eu suponho.
– Sim, sim. Nandini respondeu. – Ela nos ligou para resolver um problema. Queremos falar com ela.
Jarbas pediu que o acompanhassem à recepção e atravessou o balcão. Do outro lado, verificou o armário de chaves.
– Oh, acho que temos um pequeno problema. – Ele confessou. – A senhora Muñoz me advertiu de que vocês seriam quatro, mas há somente dois quartos disponíveis. Isso é um problema muito sério para vocês?
– Na verdade não é. – Daniel respondeu. – Podemos ficar todos em um quarto, na verdade, desde que haja pelo menos duas camas de casal.
Disse isso e olhou para as colegas.
– Eu me mexo pra caralho. – Nandini avisou. – E tenho uns lances de terror noturno e paralisia do sono às vezes.
– Meu sono é muito tranquilo, mas eu acordo com facilidade. – Lena confidenciou.
– Bom, então a gente faz assim. – Laura organizou. – Eu, que durmo como uma pedra, fico com Nandini. Duvido que ela vá me acordar. Você, Daniel, que tem dificuldade pra dormir, fica com Lena, que é tranquila.
– Um só quarto, então? – Jarbas confirmou. – Lhes darei o maior, então, o vinte e oito.
– Quantos são os quartos, ao todo? – Lena perguntou.
– São trinta e cinco, senhorita. – Jarbas respondeu. Todos são chalés distribuídos pela área da pousada. Alguns são duplos, mas lamento informar que todos estão ocupados.
– Estão bem cheios para a época. – Lena comentou.
– Somos referência em hospedaria. Uma pena que tenham vindo tão tarde. Teriam apreciado o excelente jantar.
O caminho para o quarto foi silencioso. Atravessaram a porta dupla de madeira do saguão e caminharam por uma área aberta e gramada, comprida, ocupada por casinhas charmosas separadas por dois ou três metros umas das outras. A maioria das luzes estavam apagadas, e ninguém mais era visto fora dos aposentos.
Os cinco seguiram na direção do número vinte e oito, sob as desculpas de Jarbas ao alegar que os empregados já teriam se retirado, mas que ele poderia ajudá-los com as malas. Chegando à frente da porta, entregou a chave a Daniel.
– As refeições são servidas às oito, meio-dia e às dezenove. Por favor, não se atrasem. A senhora Muñoz certamente os verá amanhã. Espero que aproveitem.
– Nós... – Daniel mencionou. – Nós fomos convidados aqui para resolver um problema. Precisamos ter acesso às dependências da pousada.
– Oh, desculpe, mas eu não posso permitir. – Jarbas negou. – A senhora não me deixou nenhuma orientação do tipo. Apenas pediu que eu os acomodasse. Amanhã ela certamente lhes atenderá.
Daniel ia insistir, mas Laura tocou-lhe o braço:
– Deixa. Estamos todos cansados, mesmo. A gente dorme e amanhã começa de verdade.
O quarto era confortável. Havia duas camas de casal, televisão, frigobar, banheiro com banheira e ar-condicionado. Os quatro foram pousando as mochilas e organizando a ordem dos banhos e das trocas de roupa. Em menos de meia hora, três deles estavam já limpos e vestidos para dormir. Laura pedira para ser a última porque queria o banheiro só para ela sem pressão. Enquanto ela cantarolava na banheira, Daniel e Nandini faziam uma proteção de sal grosso e uns pentagramas no umbral da porta e nas janelas. Quando Laura finalmente saiu, ainda levou quinze minutos no secador de cabelo barulhento antes de se deitar com os demais. Nandini zapeou os canais de tevê até se dar conta de que todos eram igualmente entediantes e finalmente desligou.
Por algum tempo, nenhum deles conversou, mas também não dormiu. Lena não gostava da sensação de dividir uma cama menor que a sua com outra pessoa, por mais quieta que ela estivesse. O problema de Daniel era outro. O perfume suave do sabonete e o hálito mentolado da respiração de Lena eram incrivelmente gostosos e o fato do nariz dela estar a menos de um palmo de distância o perturbava bastante. Laura havia se empacotado toda em um edredom que ocupava setenta por cento de sua maior mala, mas a temperatura no quarto estava mais quente do que se acostumara em seu quarto e Nandini achou o espaço que lhe sobrara de cama pequeno demais para se espalhar.
Seguiram assim por quase uma hora. Volta e meia, Nandini dava uma risadinha sufocada que fazia os demais rirem baixo, exceto Lena, que seguia quieta. Ou alguém se mexia, e o barulho cortava o silêncio. Resistiram até que Nandini resumiu o sentimento de todos:
– A gente devia ter ficado em dois quartos.
Como ninguém mais se manifestou, a ideia perdeu força. Passado mais algum tempo, um a um, todos dormiram.
***
– Meu bem. Ei, meu bem.
A maciez da voz precisou se combinar com o toque suave da mão nos cabelos lisos para acordar Laura. Os olhos abriram sonolentos, se acostumando à claridade mínima vinda da iluminação sutil que entrava pela janela. A primeira reação de Laura seria um susto, mas a paz que a envolvia era tamanha que apenas ergueu-se, sentada na cama e observou melhor quem a acariciava.
Não conseguia distinguir quase nenhum aspecto particular da silhueta feminina que, parada ao seu lado e entrecortada pelo escuro do quarto, oferecia a mão como um convite a se apoiar nela e levantar por completo. Mas a voz... a voz ela conhecia. Assim como a impossibilidade de ouvi-la àquela altura.
– Venha, meu bem. Você está tão bonita. Eu quero passear na praia com você, como fazíamos.
– Você não é a minha mãe. – Laura respondeu. – Não pode ser. Minha mãe morreu.
– E que lugar melhor para rever alguém morto, além de uma pousada onde os vivos e os não vivos se encontram, meu amor?
Laura a observava, tentando encontrar alguma coisa que pudesse ajudá-la a ver além da escuridão e da silhueta. Seus olhos perseguiam o rosto na penumbra, e percebiam uma forma quase familiar, mas sempre que se acostumavam à escuridão, a cabeça mexia e a fazia ter de recomeçar o processo.
– Por que você demorou tanto para me procurar, mãe?
– Você nunca esteve em um lugar propício, meu bem. Todas essas proteções mágicas que você fez em si mesma dificultaram muito nosso contato. Eu nunca a deixei. Mas nunca pude me comunicar com você, também. Não até hoje. Mesmo agora, veja, o amuleto que você está usando me impede de te tocar e te abraçar.
Laura levou a mão ao Merkabah. Haviam decidido que ela deveria estar com ele por ser a que melhor se beneficiaria através das inúmeras defesas passivas que seus rituais lhe proporcionavam, além de O Mel e o Fel dividir essas proteções com o resto do grupo. Nunca imaginou que o amuleto pudesse ser um impedimento caso sua mãe tentasse contato.
– Venha para a luz. – Laura pediu, desconfiada e tateando em busca do telefone. – Eu quero ver seu rosto.
– Você lembra como eu morri, meu amor? – A sombra perguntou.
A pergunta evocou uma lembrança que Laura realmente não queria trazer à tona: sua mãe, no leito do hospital. Só pele e osso. Sem cabelos, com os olhos encovados, entubada, vinte anos mais velha do que sua idade realmente lhe conferiria. Cheirava a hospital, uma mistura azeda de álcool setenta e quimioterapia. Apenas uma sombra, uma caricatura grotesca do que um dia fora a mulher mais forte e impressionante que conhecera.
– Preferiria não me lembrar.
– Então não me peça para vir à luz. Para seu bem, e para o meu. Não me obrigue a estragar nossa primeira oportunidade de estar juntas. Há tanto que eu quero saber. Tanto que eu quero dizer. Por favor, me dê a chance de conversar com você como fazíamos.
Laura hesitou, com a mão firme no amuleto. A dor no peito, porém, era forte demais. À medida que a desconfiança desvanecia, as lágrimas encontravam o caminho da superfície e brotavam.
– Não chore, meu bem. Vai acordar seus amigos e eu terei de ir embora. Vamos fazer esse momento durar. O que você acha?
Laura não disse mais nada. Tirou o amuleto e ia deixá-lo na cama, quando sua mãe a interrompeu:
– Não, meu amor. Esse lugar é perigoso. Seus amigos estarão seguros aqui dentro, mas você se arriscará se sair daqui sem ele. Apenas ponha nos bolsos do pijama. Assim você pode usá-lo sempre que quiser.
Ela obedeceu. Fez o possível para não acordar os amigos enquanto abriu a porta do quarto, extasiada, e nem reparou que chutara parte do rastro de sal grosso no umbral, ou que deixara a porta aberta.
Também não viu a multidão de pessoas que entrou no quarto quando o deixou para trás, de mãos dadas com sua mãe.
Lena acordou quando a claridade que entrava pela janela se tornou suficientemente forte para atravessar mesmo as cortinas entreabertas. Apesar da boca seca e da bexiga cheia, sua pele ainda formigava de excitação pelo sonho que acabara de ter. Sonhara com o menino. O menino cujo nome não descobrira, porque entregara seu cadáver semimorto a um dos seus iguais. O menino que se alimentara de Laura e de outras mulheres durante uma semana ou duas. O menino que esfaqueara até o desespero e quase à morte. Que sentira se debater entre suas pernas enquanto o coração acelerado bombeava sangue quente para fora do rasgo que lhe abrira na garganta. Mais que isso. Sonhara com o prazer lascivo, se espalhando em ondas desde o baixo ventre até as pontas dos dedos, com que se regozijara ante o sofrimento
Nandini desceu ao porão da adega por falta de opções. Havia dois seguranças a procurando na cozinha, e foi por uma sorte imensa que nenhum dos atarefados funcionários percebeu sua presença. Em um último instante de sensatez percebeu que os amigos não vinham em seu encalço, e que não chegaria à porta dos fundos antes de ser vista e perseguida. Esperaria lá embaixo até ter alguma segurança de que poderia subir – apesar de não ter ideia do que faria em seguida. O porão era só um aposento grande com paredes feitas em tijolo de barro, algumas colunas e uma adega repleta de vinho caro. Além do chão de terra batida, o único detalhe incomum era a parede recém rebocada e os materiais usados para o serviço, além do odor sutil e desagrad&aacu
– Nossas opções são bastante limitadas. – O feiticeiro comentou, sentado junto com Nandini no tapete do saguão. – Na forma em que estou serei de pouca ou nenhuma ajuda. – Você foi uma ajuda do caralho derrubando a adega no porão. – Nandini agradeceu. – Sem você eu não teria saído de lá viva. – O problema é que isso me custou muito da força que eu ainda tenho. – Ele explicou, mostrando a mão que já começava a empalidecer. – Não posso fazer nada daquele tipo novamente. Preciso de um corpo. Preciso daquele seu amigo médium. – O Daniel? – Nandini perguntou. – Ele não incorpora. Fala, escuta e até expulsa.
– Eu não esperava encontrá-los aqui. – Mercedes dizia, com o cano da arma apontado para o peito de Daniel. – Não importa, a essa altura. Está tudo quase pronto. Entrem, os três. Não tentem nenhuma bobagem, ou eu juro por Deus que os mato. Mercedes parecia ter passado por maus bocados. Estava descabelada e suja. Seus olhos, encovados, pareciam à beira da insanidade. Enquanto os três se espremiam no canto oposto do chalé, ela abria o pingente da correntinha de Laura com uma das mãos, mas não desviava a atenção deles. – O que está acontecendo aqui, Mercedes? – Daniel perguntou. – Você não precisa nos ameaçar, nós viemos ajudar. – Sei que um d
Já fazia algum tempo que o sol despontara no horizonte. Os raios majestosos banhavam a praia das Emanuelas e faziam o mar longínquo cintilar como o brilho de milhares de cristais sobre a sua superfície. Do terraço da Bombordo, pousada notavelmente assombrada e fechada havia meses, era possível sentir a brisa marítima, salgada e oleosa de maresia. Daniel observava a área dos chalés sentado na beirada do parapeito raso. Lá embaixo conseguia distinguir Laura, que cambaleava aos prantos, e Lena, que tropegava exausta, ajudadas por Igor, em direção ao chalé vinte e oito. Ao seu lado, também sentada na mureta, uma menininha bonita de longos cabelos escuros que bailavam ao sa
Já passava das quatro da tarde quando Daniel tornou a abrir os olhos, sentindo a mudança sutil de temperatura no quarto. Sentou-se, desorientado, acordado de um sonho sensacional. Nele, revelava a Nandini seus sentimentos e os dois selavam a união com o amasso mais quente de que ele se lembrava na vida. Olhou ao redor, confuso. Lena, ainda em sua camisola de duas peças, teclava penosamente em um laptop apoiado no colo. Os dedos enfaixados tornavam a tarefa difícil, além de lenta. – Você deve estar faminto. – Ela comentou, sem tirar os olhos da tela. – Sei porque também estava quando acordei. – Pensa r&aa
Em noites anteriores... O dono de uma loja de cosméticos situada em um dos maiores shopping centers da cidade passa pelo pesadelo de ter sua jovem filha desaparecida por uma noite e pela alegria de reencontrá-la em um hospital dias depois – apesar de desorientada, exangue e sem qualquer lembrança do que ocorrera entre sair da casa da mãe e ser socorrida pela polícia. Passado o trauma, ficaram estranhos vestígios no comportamento da filha – predileções infantis, sonhos estranhos e desenhos representando um lugar próximo de onde havia sido resgatada, além da descoberta de que ela era apenas uma de outras tantas vítimas semelhantes em idade, sexo e cor de cabelos – todas características procuradas pelo ainda desconhecido sequestrador de loiras &nda
Por ser uma de muitas praias turísticas do litoral norte, as Emanuelas não seria, exatamente, uma das mais destacadas em um panfleto turístico. Sua curta extensão a colocaria, talvez, em terceiro ou quarto lugar entre as mais conhecidas, independentemente de suas águas ostentarem o mesmo azul penetrante, refletir o mesmo poente dourado e aquecer a pele de turistas europeus endinheirados com a mesma intensidade que suas vizinhas mais famosas. A meia dúzia de barezinhos à beira-mar, sempre ávidos por visitantes, serviam seus coquetéis ao som de música tranquila e petiscos proibitivamente caros ansiosos em indicar a maioria das pousadas próximas como forma de demonstrar boa vontade aos clientes e também estreitar o relacionamento com os donos das hospedarias. A maioria das pousadas.