2 – Perguntas mortas

           O relógio começou a tocar às três da manhã, em meio-tom, exatamente como programado pelo dono cuidadoso. O ruído polifônico tentava, de forma mais ou menos precisa, reproduzir um trecho de samba de Adoniran Barbosa e Elis Regina, só que o fazia de forma apenas remotamente identificável. Mesmo quando o dedo pressionou a tecla digital e desligou a música, o matraquear da televisão impediu o silêncio de se instalar. O jornalista falava algo sobre um acidente de carro causado por uma capivara em Santa Catarina, ou qualquer nulidade do tipo e foi silenciado pelo botão do controle remoto.

           Pedrosa, como era chamado pelos vizinhos, ou Pedrão, pelo pessoal da delegacia, levantou preguiçosamente do sofá, em absoluto silêncio. A xícara de café frio ainda retinha metade de seu conteúdo, pastoso devido a um filão de pão mergulhado e esquecido em seu interior. Foi à cozinha, depositou a xícara na pia vazia e limpa, e só depois lembrou-se de que seria muito grosseiro macular o excelente trabalho da filha daquele jeito, de forma que voltou, lavou e guardou em um dos armários.

           Já ia se dirigir ao próprio quarto quando notou claridade através da porta entreaberta do quarto da filha. Homem de reações vigorosas, mas lentas, pensou alguns segundos se deveria. A menina já era uma moça, e ele não costumava entrar no aposento sem ser convidado – ao menos na presença dela.

           Aproximou-se de mansinho e espiou pela porta.

           Laura dormia empacotada no meio de dois edredons grossos, e só o nariz e a boca meio aberta eram visíveis através deles. Normalmente bem fechada para não deixar o ar fresco sair, a porta estava com um problema na maçaneta que o pai ainda não tivera tempo de consertar. A luz que ele vira vinha de um abajur translúcido que banhava o quarto em luz violeta. O primeiro impulso de Seu Pedrosa foi o de fechar a porta e voltar para o quarto.

           Mas quem venceu foi o segundo impulso, o de entrar. A voz que lhe dizia, alto e em tom decisivo: “Você trocou as fraldas dela. Não há nenhum mal em um pouco de preocupação de pai” ou “se os filhos soubessem se cuidar sozinhos, viriam ao mundo sem os pais ”. Sua esposa teria discordado categoricamente do que ele estava para fazer. Mas com ela era diferente. As duas eram muito chegadas. Ele não precisava se preocupar com Laura se a mãe estivesse por perto.

           Infelizmente ela não estava mais por perto havia algum tempo.

           Olhou pelo quarto até divisar a mochila de viagem da filha. Dentro de algumas horas ela estaria partindo com o primo e duas amigas para Pipa, de forma que aquela era a única chance de verificar se os planos dela eram condizentes com seus relatos.

           Caminhou silenciosamente pelo quarto e abaixou. Abriu a mochila com calma. Laura tinha o sono pesado – se ela acordasse, bastava alegar alguma razão qualquer para estar ali e sair que ela provavelmente nem lembraria do ocorrido pela manhã.

           Com cuidado, abriu e verificou o conteúdo. Biquíni – um que não lembrava de ter comprado para ela e, francamente, pequeno demais para seu gosto. Mudas de roupa, pijama de flanela. Caixinha de maquiagem. Sabonete, pente, escova de cabelo, secador e um monte de quinquilharias de beleza. Por um segundo seu coração saltou ao ver o que parecia ser um preservativo, mas era apenas algum tipo de creme para cabelo em pacotinhos. Carteira, dinheiro, identificação, uma bolsinha com enfeites e o imprescindível frasco de pimenta em spray. Um livro de matemática, um caderninho de arame e, por fim, a correntinha contendo uma mechinha de cabelo da mãe no pingente, que ela carregava para cima e para baixo onde quer que fosse, mas nunca usava com medo de perder. O pai estava quase totalmente satisfeito quando, no fundo da mochila, encontrou uma bolsinha contendo remédios variados e, entre eles, uma cartela de anticoncepcionais. 

           “Tenha um pouco mais de fé na criação que demos à nossa filha” – quase podia ouvir a esposa sussurrar, ao seu ouvido, em tom de censura. Ela dissera isso na primeira viagem da escola – um fim de semana inteiro – para competir em Pernambuco. Dissera quando Laura apresentou o primeiro namoradinho, um menino marrentinho de braços roliços e aparelho nos dentes, com quem terminara duas semanas depois por causa da mania que tinha de tentar palpar-lhe os seios, e também quando ela passou a primeira noite fora sozinha para o casamento de uma prima, jurando que não beberia uma gota de álcool, mesmo que um tio ou outro adulto oferecesse. E agora dizia de novo em seus pensamentos.

           Normalmente ela tinha razão. Laura nunca decepcionava. Desempenho escolar excelente. Filha carinhosa, atenciosa e esforçada. Dos professores, só elogios, assim como dos amigos e conhecidos. Muito organizada e prestativa. A mente do pai enumerava todas essas virtudes e as pesava contra a evidência incontestável de uma cartela de comprimidos metade consumida.

           Com o coração apertado, lembrou-se das primeiras cartinhas de amor que a mãe dela lhe mostrara, recebidas de coleguinhas de classe, aos onze anos, ou quando a mãe lhe dissera que ela a confidenciara sobre o primeiro beijo aos doze. Lembrou dos moleques espinhentos e engordurados que arranjavam qualquer pretexto para acompanhá-la nos trabalhos escolares e da discussão feia que quase terminou em agressão quando um dos seus colegas de trabalho havia sugerido que ela parecia “muito madura para a idade”. E por fim, quando se lembrou de que sua princesinha não era mais uma criança, mas também não era uma mulher. Ela estava exatamente naquela fase crítica em que uma decisão mal planejada poderia pôr todo o futuro a perder. Precisava de orientação e de aconselhamento.

           O problema era que ele não fazia ideia de como começar aquela conversa.

           Guardou tudo de volta com bastante cuidado, na ordem, e fechou a bolsa. Apagou o abajur e já ia se preparando para sair quando outra fonte de luz lhe chamou a atenção. Vinha do guarda-roupa, de uma fresta entre duas portas.

           Aproximou-se e com muito cuidado abriu uma delas. Uma vela, roxa, irradiava um brilho lilás que iluminava o que deveria ser a penteadeira. Mas ao invés dos pentes, perfumes e joias, o que havia no lugar mais lembrava um pequeno altar composto por uma ametista bruta sobre um pratinho dourado. Sob o prato, uma fotografia que mostrava seu primo Daniel e mais duas meninas que ele não conhecia, olhando sorridentes para a câmera.

           Mais um suspiro de inquietação. Por mais que tentasse ser “mente aberta”, como sua esposa sempre aconselhava, as preferências religiosas de Laura lhe causavam um incômodo enorme. Em primeiro lugar, porque tentara criá-la como uma perfeita católica, temente a Deus, decente e devota. A mãe é que tinha essa mania estranha de fazer simpatias, massagem com pedras, alinhar chakras, e mais um monte desses costumes sobre os quais ele entendia muito pouco. Quando Laura era mais nova ele até tentou, sutilmente, impedir que ela tivesse contato com Daniel e todo o lado estranho da família da mãe, mas não deu certo porque a esposa percebeu. Aquele era um dos poucos pontos sensíveis entre eles, e na época causou brigas bem feias. No fim, especialmente depois da morte da esposa, decidiu parar de implicar por ser um dos muitos aspectos que ela e a filha dividiam. 

           O que não significava estar em paz com aquela decisão.

           Além da vela e do altar havia um painel, ao fundo, com dezenas de fotos da mãe, como uma grande colagem. Já fazia algum tempo que ver fotos da esposa não doía tanto, mas ainda assim era pesaroso ver tantas juntas no guarda-roupas da filha. Olhou de relance para ela, adormecida, pensando se era hora de falarem no assunto e quase instantaneamente se deu conta de que não conseguiria. Nunca fora muito articulado e a espontaneidade de Laura, assim como da falecida esposa, o intimidava de forma que nenhum tiroteio conseguia fazer.

           Fechou as portas e saiu do quarto. Era quatro da manhã e logo a filha acordaria para um novo dia.

           Laura abriu os olhos pouco antes que o despertador tocasse, como normalmente acontecia. Afastou os cobertores pesados e se espreguiçou gostosamente, até que os músculos das costas reclamassem da tensão. Pegou o celular e acessou imediatamente o aplicativo mais importante instalado no aparelho – o gerenciador de agendas. 

           Verificou as atividades ainda a concluir: trabalho de matemática para o feriado, deixar a casa em ordem e algumas refeições saudáveis envasilhadas para o pai, café da manhã, uma hora de exercício de perna na academia, troca da vela de lavanda e almoçar na casa de Daniel antes da viagem. Marcou como concluídas a troca da vela e as refeições para o pai, que havia feito ontem. Cancelou os exercícios na academia – já ia furar três dias mesmo, podia furar quatro. Reagendou o trabalho para a noite de segunda e redefiniu o almoço na casa de Daniel para visita à casa de Daniel e realocou para as nove horas. 

         Estava animada. Dois dias atrás Daniel havia convocado todo o Tetraedro para uma conferência telefônica na qual explicara que sua avó havia conseguido um trabalho de dois mil reais mais um fim de semana inteiro em uma pousada de Tibau. A divisão do trabalho seria discutida mais adiante, mas o ponto era que se conseguissem exorcizar os espíritos ruins na primeira noite, poderiam passar o resto do feriadão de graça na pousada. Nandini confirmou que iria de imediato, e Lena remarcou alguns compromissos para poder acompanhá-los – o que significava transporte de graça. Só Laura ainda estava em dúvida, já que seu pai não gostava de deixá-la passar fins de semana inteiros longe de suas vistas, e não conhecia Nandini ou Lena direito. Ele dissera, ontem, que ela podia ir, mas o pai já havia cancelado permissões em cima da hora de sair antes, de forma que ela preferiu não arriscar e preparou uma pequena mistura insípida que deveria, em tese, mantê-lo mais aberto às suas sugestões e vinha batizando o café do pai desde então. Apesar do histórico de imunidade aos seus feitiços que o pai demonstrava, talvez algo ingerido funcionasse.

         Era hora de verificar se seus esforços vingariam.

         Aproveitou que o pai estava no banheiro para pôr a água do café no fogo e acrescentar uma pequena mistura de raízes que havia comprado de Ninlil. Estava guardando para algum momento em que precisasse sair à noite em algum trabalho, então era adequado usar agora. Enquanto o café fervia, o telefone do pai, sobre a mesa próxima, vibrou anunciando a chegada de algumas mensagens.

         E imediatamente ditadorzinho autoritário e bisbilhoteiro dentro de Laura acordou pronto para mais uma campanha.

         Em defesa de Laura, ela resistiu. O telefone vibrou duas ou três vezes e ela tentou da melhor forma que pôde evitar o som do aparelho e se concentrar na água fervendo, mas o pai nem havia ligado o chuveiro ainda. Era tempo demais a sós com o telefone dele para desperdiçar.

         Na quarta mensagem ela desligou o fogo, pegou o aparelho e seguiu para a sala.

O pai não sabia pôr senha de proteção, então acessar os aplicativos de conversa foi fácil. Tinha o grupo do futebol de domingo, mas ela o ignorou. Na última vez que tentara xeretar ali, descobrira um aspecto das conversas entre homens que realmente preferiria não ter visto. Se perguntava se a mãe alguma vez já havia visto aquilo também. Havia o grupo da delegacia, e esse era interessante porque às vezes via algo sigiloso, como acontecera no caso das loiras, semana passada. Mas em geral os policiais compartilhavam umas fotos atrozes de cadáveres desovados ou de traficantes pé-de-chinelo que tinham levado uns sopapos. Tinha o grupo de pais e mestres da escola, que ela espiou de relance só para ver se os elogios estavam em dia, e ficou satisfeita em confirmar. Tinha o grupo de torcedores do Flamengo em Natal, que era basicamente o mesmo que o grupo da pelada de Domingo, mas com mais gente e com o dobro de piadas horrorosas e imagens obscenas. E tinha uma mulher chamada Edinice. Edinice DP.

            Laura abriu as conversas desejando muito que o DP significasse Departamento de Polícia.

A mulher tinha uma foto de perfil vulgar, na praia, com biquíni cortininha quase todo enfiado na bunda e cara de periguete. Ela e seu pai vinham trocando mensagens havia algumas semanas, e Laura detectou exatamente onde a conversa iria terminar. Mais adiante uma foto dela, usando o uniforme policial do trabalho e outras usando um uniforme policial que com certeza não era do trabalho. A conversa mais recente falava sobre o feriado prolongado e planos para combinarem as escalas e se encontrarem. Na casa dele.

            A simples ideia de que aquela mulher pudesse cruzar o umbral de sua casa levava as entranhas de Laura à ebulição. Percebeu que pressionava a tela do smartphone com tanta força que o metal líquido do mostrador começava a emitir rajadas multicoloridas ao redor de seu polegar e isso a despertou para o som do chuveiro desligando no banheiro.

            O café foi posto em silêncio. Laura teria percebido que o pai estava mais calado que o de costume, se ela própria não estivesse com os dedos formigando e a raiva borbulhando dentro do peito. A maior parte da refeição foi feita ao som dos talheres castigando a louça, e apenas perto do final ela se manifestou:

– Eu já arrumei a mochila e deixei refeições envasilhadas para o senhor não ficar pedindo comida até terça-feira. – Disse, entre goles de suco. – Tudo certo para eu ir?

            – Quem mais vai, mesmo? – O pai perguntou, com os olhos fixos no prato.

            – O Daniel e duas amigas do clube de leitura. Nandini e Lena. O senhor já viu Lena. É aquela ruiva de cabelo curtinho.

            – Daniel é o único garoto que vai?

            –É, pai.

            Mais silêncio. Laura não estava acreditando. Ele estava lá, bancando o pai puritano enquanto planejava passar o feriado profanando a memória e a cama da mãe com uma vagabunda. Quanto mais pensava, mais nojo tinha. Será que ele já havia trazido alguém para casa em sua ausência?

            – As meninas e os meninos vão ficar em quartos separados, não é? – O pai retomou, depois de alguns segundos. 

– Os “meninos” é só o Daniel, pai. – Ela respondeu, seca. – Se eu e o Daniel quiséssemos fazer alguma coisa, já teria acontecido. Tirando isso, a menos que role um festival de Rock das Aranhas no quarto, coisa que eu dispenso, não tem perigo de eu conhecer ninguém em sentido bíblico nessa viagem. Além disso eu não quero ser um exemplo de – e sublinhou – fornicadora. É assim que a gente chama quem transa – e tornou a sublinhar – fora do casamento, não é?

            – Isso, isso mesmo. – O pai respondeu, satisfeito que a filha lembrasse tão bem do catecismo. – E não é só porque é pecado. Pode ser perigoso também. Preservativos normalmente protegem contra doenças, ao contrário dos anticoncepcionais, que só evitam a gravidez. Mas a castidade ainda é a melhor garantia.

            Laura não estava acreditando no que estava acontecendo. Àquela altura ele estava tentando ter a conversa, em cima da hora de sair, como se sua mãe não já a houvesse prevenido de tudo aquilo uma eternidade atrás. Era isso? Ele estava tentando mostrar que a mãe era uma incompetente? Que havia falhado em suas obrigações? Que, talvez, uma substituta pudesse terminar o que ela supostamente havia deixado inacabado?

            – Não se preocupe, papai – Laura retrucou, fazendo um esforço hercúleo para não deixar a voz distorcer por culpa da raiva, mas carregando na ironia – eu jamais desrespeitaria o senhor ou Jesus fornicando. Trairia tudo o que o que eu aprendi.

            Os dois se olharam em silêncio por longos segundos. O pai, apesar de razoavelmente convencido pelas palavras da filha, percebia que ainda havia algo estranho entre eles, mas já não tinha forças para seguir com o embate. Laura o espiava detrás da caneca de café, aguardando um contragolpe que não veio.

            – Eu fico muito feliz em ouvir isso, filha. – Ele finalmente se manifestou. – Eu amo muito você. Me preocupo com sua saúde. Penso em você o tempo todo.

            Por muito pouco Laura não perguntou se ele pensaria nela quando estivesse olhando para a nuca da Edinice. Quando a pergunta que acabaria com o feriado começou a ganhar forma no interior da sua garganta, o telefone tocou e ela atendeu. O pai normalmente se zangava quando ela atendia ligações à mesa, mas ele estava emocionalmente esgotado demais para isso.

            – É Daniel, pai. – Ela comentou, tapando o microfone do aparelho com uma das mãos. – Ele quer confirmar se eu vou ou não. E aí? O senhor não vai mesmo me querer aqui o feriado inteiro, não é?

            O pai apenas acenou positivamente com a cabeça. Em sua garganta a pergunta sobre a cartela de anticoncepcionais sofrera um golpe letal ante a interrupção brusca do telefone e agonizava em morte lenta enquanto desaparecia por completo, deixando atrás de si o gosto amargo da desconfiança.

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