— Obrigada, Senhora Astraregi — Lívia disse.
A mulher concordou com a cabeça, apenas. A conversa entre as duas havia se reduzido a uma simples troca de sentenças jamais elaboradas, sempre repetitivas, desde que Ric sumira. Lívia entrava na casa aonde Ric cresceu, muitas vezes sem avisar, para fugir dos bombardeios e as duas mantinham-se escondidas durante os longos minutos de explosões para, então, se despedirem, muitas vezes sem nem trocar nada além de um olhar de reconhecimento.
Era doloroso, ainda, para as duas.
Desta vez, porém, Lívia tinha que falar alguma coisa. Podia ser a última. Devia ser. Ela chegou a abrir a boca para falar sobre Ric, mas nada saiu. A outra mulher observou-a por um momento e sorriu, entendendo a garota.
— Boa sorte hoje — ela murmurou, a voz rouca pelo pouco uso. — Ele desejaria isso pra você.
Estava sendo um dia difícil para Lívia; estava brigando internamente com a sua antiga personalidade, que queria sair e demonstrar a todos o quão intensa ela era, enquanto a pessoa que ela havia se tornado em tantos anos de dor e tormento desejava se mantar firme às despedidas. Diante da senhora Astraregi, mãe do grande amor de sua vida, ela cedeu. Apertou os olhos em dor à menção de Henrique, a saudade gritando em seu peito. Quase – e foi por muito pouco! – chorou.
— Eu sinto muito a falta dele — confessou, em um sopro de sussurro, quase impossível de se escutar.
A senhora Astraregi concordou com a cabeça, exibindo suas lágrimas como um troféu. Perder um filho não era incomum na vila 364, mas seu caso fora diferente. Lívia nunca compreendeu como ela superou tão facilmente que Ric tivesse desaparecido.
— Eu também, querida — disse.
Lívia se dignou a concordar com a cabeça e saiu porta afora sem se despedir, antes que seus sentimentos aflorados a traíssem o suficiente para deixar marcas em seu rosto. Não podia exibir fraqueza alguma para onde estava indo. Precisava manter-se firme, de nariz em pé, em frente a todos que lhes desprezavam.
Dali até o centro de treinamento não era uma caminhada muito difícil, mas o bombardeio recente deixara pedaços de tudo pela rua. Lívia também podia ouvir gritos e choros, mas poucos eram os que ainda paravam a vida por isso. Há muito se acostumaram com as perdas e os destroços.
Passou por escombros recentes de uma casa e por duas vizinhas que se abraçavam chorando, o cheiro de carne queimada incomodando suas narinas, e ela, assim como a maior parte dos passantes, ignorou.
Voltou ao caminho linear e estreito entre as grades que ligava a vila 364 ao centro de treinamento da série 360. Ela podia ver alguns de seus companheiros tomarem o mesmo caminho, tanto à frente quanto às suas costas, mas eles não se falavam. Não havia motivos para fingirem amizade com ela, não depois de tantos anos de provocações. Um deles iria roubar todo o futuro dos outros e Lívia tinha feito de tudo ao seu alcance para que fosse ela a escolhida e, por isso, a odiavam.
A maioria também a achava louca por causa do sumiço de Henrique.
Lívia caminhava pensativa, com a cabeça baixa e os pensamentos embaralhados. A mochila estava pesando um pouco mais do que deveria e era por causa do sentimento de estar levando toda a sua vida dentro dela. Deixou sua mania mais frequente aflorar e apertou o pingente do único cordão que usara a vida toda, que Ric havia lhe dado há tanto tempo, e admirou uma das rachas na grade, decidida.
Selecionada ou não, ela nunca voltaria. Não tinha pelo que voltar.
Seus pais estavam nos seus últimos meses de vida, definhando pouco a pouco à superioridade da radioatividade e ela não tinha perspectiva naquela vila além de morrer em breve. Se tudo desse errado, tentaria viver na floresta, longe dos aglomerados e dos bombardeios. Tinha quase certeza de que podia caçar e sobreviver.
— Boa sorte hoje, Esterfonte — Lucas passou por ela, debochando, como ele sempre fazia.
Seu concorrente mais irritante a tirou de seu devaneio e a fez encará-lo com um olhar de puro ódio que reservava apenas para ele e seus amigos mais próximos. Foram os mais cruéis com ela durante o período pós perda de Henrique, quando seu sobrenome tinha virado piada dentre toda a série. A namorada do garoto abduzido, a fonte estelar.
— Eu não preciso de sorte, Diontê — Lívia falou, se recuperando do momento de susto com a máxima dignidade.
Apesar de ter-se permitido ser emocional durante todo o dia, Lucas estava distante de abalar a certeza que tinha de que merecia ser a escolhida naquela tarde. Já fazia muito tempo em que tinha parado de ouvir as provocações de Lucas, ele nunca tinha algo minimamente útil para falar além de frases incômodas sem sentido, então ela apenas continuou andando enquanto o garoto a acompanhava da melhor maneira que podia. Lucas riu de sua resposta, como se não acreditasse que ela fosse tão firme quanto parecia ser, mas ela continuou fazendo o que fazia de melhor quando se tratava dele: ignorar.
— Eu posso apostar que precisa — Disse. — Nós dois sabemos que eu sou uma opção melhor... sua sanidade é questionável. Imagine só você gritando em meio à central da guerra que há uma invasão alienígena acontecendo? Você nunca teve chance alguma. É uma piada pra todo mundo.
Algo em suas palavras cruéis fez a pálpebra de Lívia tremer, mas ela se concentrou em ajeitar a mochila em suas costas. Lucas a irritava desde que ambos conseguiram aprender a andar. Por anos, ele a perseguira por todos os lugares, falando coisas cruéis para diminuir ela e seu melhor amigo, Henrique. As coisas pioraram quando Ric e ela começaram a se relacionar. Ric acreditava que Lucas sentia ciúmes dela e qualquer aproximação do garoto acabava em briga. Isso deu alguns problemas, no começo, quando os três conseguiram suas primeiras armas, ainda não mortais, mas fortes o suficiente para deixá-los com hematomas por alguns dias. Quando Ric desapareceu, Lucas se aproximou, parecendo preocupado com Liv, mas dois dias depois ela pegou-o contando para todos, de forma totalmente debochada, a história da abdução.
Quatro anos se passaram e ele ainda usava isso contra ela, aumentando e inflando todos os jovens da série 360. Lívia teve que aprender a não se importar e o isolamento foi apenas um detalhe importante em seu foco para chegar ao que ela queria.
— Se você não entender que agora, neste momento, sorte não ajuda em nada, creio que tem péssimas chances — Lívia seguiu seu caminho, com Lucas logo atrás de si, fingindo não estar com raiva. — O treinamento já definiu tudo, não há nada que sorte possa alterar. E eu, não tenho dúvida, fui a melhor. Principalmente nas bombas.
Se a pele de Lucas fosse um pouco mais clara, Lívia o teria visto corar, mas apenas olhou para trás para o sorriso amarelo que ele lhe oferecia, a memória da semana anterior ainda fresca. Em um dos últimos testes, Lívia desarmou uma bomba no melhor tempo da turma, enquanto Lucas não conseguiu fazer em tempo hábil, a bomba simulada encenou uma explosão que indicava a morte dele e de toda a armada de sua missão.
— Um detalhe que não vai apagar o meu sucesso ao passar dos anos — Lucas disse, tentando desestabilizá-la.
— É claro que não — Lívia concordou, andando alguns passos a frente dele e virando-se, para continuar uma parte do caminho de costas. — Mas eu já estava na sua frente antes, como pode achar que consegue me passar depois disso?
Com um pequeno sorriso de quem saíra ganhando mais uma vez, ela virou-se de costas para Lucas, continuando seu caminho na certeza de que não seria mais perturbada por ele. Porém, as palavras dele deixaram seu coração apertado e confuso. Desde os quinze anos, quando Ric desaparecera, a única perspectiva de vida dela era conseguir sair dali, consertar o descaso com a vila, tão malcuidada e destroçada e, com sorte, saber o que havia acontecido com Ric.
Lívia desejava entender por que ele fora abduzido, ele, dentre todas as pessoas. Nunca ela ouvira falar de ninguém abduzido e, se ela não tivesse visto com os próprios olhos, não teria acreditado. Assim como quase ninguém acreditara nela.
Um olhar à frente e ela conseguia ver a grande estrela de dez pontas que era o centro de treinamento. Ao lado, já conseguia visualizar dois caminhos de grades das vilas vizinhas. Ela deu uma olhada quase esperançosa para a floresta, sentindo o cheiro da liberdade que ela teria ao fim do dia, sendo selecionada ou não. Quase conseguia sorrir.
Todos os dias em que ela se contaminara mais do que deveria, se ralara, destruíra armas e macacões de treinamento... Todas as provas, os testes e às noites que ela chorara em silêncio e solidão, escondida em um canto do seu quarto... Tudo iria se definir naquele momento. Quando ela cruzasse aquela porta.
Alguns poucos passos a separavam de seu futuro. A jovem respirou fundo e parou, apenas por um momento, para se preparar para o que deveria esperar por ela.
— Tá com medo? — Lucas passou, perguntando.
Lívia deu mais um de seus raros sorrisos.
— Não, Lucas — respondeu. — Estou apenas guardando a sensação de vitória para me recordar no futuro.
Lucas levantou a sobrancelha para ela e ela balançou a cabeça, levemente, de olhos fechados, admirando a sensação, ainda com o sorriso no rosto. Com um suspiro, ela voltou a caminhar e passou por Lucas boquiaberto por sua audácia e sua demonstração de sentimentos, entrando no centro de treinamento.
Lívia entrou na área aberta do centro de treinamento, depois de enfrentar uma pequena fila, ainda com o sorriso no rosto. Dali, podia-se ver vários outros concorrentes tomando o mesmo caminho que ela, admirando-a com inveja no olhar enquanto ela caminhava, parecendo despreocupada, com a certeza de quem havia ganhado. Ela não tinha essa certeza, na verdade, mas a perspectiva de, mesmo assim, sair daquele lugar, estava dando-lhe um ar muito mais solto do que nos últimos quatro ou cinco anos.Atravessou o campo livre em um piscar, entrando na sala de reuniões onde quase uma centena de jovens já aguardavam por seu destino. Seu coração deu uma pequena fisgada de nervosismo, mas ela tentou parecer confiante com todos aqueles olhares em cima dela.— Leitura habitual – um rapaz aproximou-se dela, ainda na entrada da sala de reuniões, com um aparelho que ela já tentara se acostumar, mas nun
— Aqui estamos. – A diretora anunciou, abrindo a porta. O analisador que a atendera estava lá dentro e ele sorriu ao vê-la. – Volto em meia hora – anunciou.Pela olhada que deu para o rapaz antes de fechar a porta, Lívia sabia que ela estava intencionada a se aproveitar dele.Acabou por entrar na sala com cuidado e um leve temor de suspeita, acostumada a não confiar em nada, admirando como a sala era ligeiramente mais quente e escura que o resto do ambiente do centro de treinamento. A pele de Lívia já emitia um brilho verde, bem fraquinho, devida a radioatividade alta pela qual ela fora exposta durante toda vida. O rapaz, ao contrário, parecia nunca ter sido exposto.A desintoxicação, Lívia pensou.— Você está limpo – disse, quando ele lhe estendeu a mão para que ela apertasse.Lívia não queria que transmitir ma
A segunda projeção escureceu tanto o ambiente em que estavam que Lívia emitiu sua luz esverdeada de forma que nunca emitira antes. Distraiu-se, então, olhando para sua mão por um momento antes de arregalar os olhos para a imagem à sua frente.Era uma nave espacial tão grande, maior do que qualquer coisa que ela já tivera visto e estava bem à sua frente. O pânico, inserido tão profunda e intimamente nela desde àquela tarde em que Ric fora tomado na sua presença, a fez recuar instintivamente até a parede mais próxima.— Está tudo bem? – Jerrade perguntou, estranhando sua fraqueza tão evidente, quando a garota mal demonstrava satisfação.Lívia não dignou-se a responder, continuando a encarar a grande nave espacial com os olhos arregalados. A nave estava pairando em meio ao nada, mas, em uma manobra, giro
A imagem de Globo do Mar foi se afastando, subindo até que Lívia pudesse ver toda a extensão de Esmeralda, o que a fez arregalar os olhos. Nunca em sua vida ela pensara que a floresta pudesse ser tão grande.Ela começava em um estreito, quase no limite com o Norte destruído e descia, abrindo-se em todo o continente, indo até o Sul, onde ela tinha uma versão mais espaçada, mas, ainda assim, ela estava lá. De Norte a Sul, de Leste a Oeste. Esmeralda dominava todo o espaço, tirando pelos pequenos campados e os desmatados para construção das centenas de vilas.“Esmeralda é o que restou de nossa Fauna e Flora, o sobrevivente de tudo que tínhamos, mesmo antes da Grande Guerra. Ela é nosso suspiro de alívio e a nossa melhor amiga na batalha contra todas as adversidades. Nossa função é protegê-la de tudo e de todos que querem-l
Lívia lançou um último olhar a Jerrade, balançando a cabeça em despedida. O rapaz sorriu-lhe e ela conseguiu olhá-lo com descaso, no momento. Assim que a diretora se livrasse dela, iria atacar o rapaz. Isso a enojava.— Boa sorte, soldado Esterfonte – ele disse. – Espero que nos encontremos em breve.Ela concordou com a cabeça, seguindo a diretora para fora da saleta, sem pronunciar uma palavra. Lívia era, de todo, uma pessoa corajosa e forte, mas durante toda a sua vida, ela sabia o que esperar e o que fazer. Se bombas caiam, corria pro proteção e ajudava se alguém precisasse de ajuda para se salvar; se tinha um teste para fazer, dava o melhor de si, sabendo que teria assistência para se curar, caso se machucasse.Aquilo seria diferente. E, mesmo com pavor de admitir para si mesma, estava assustada. Tão aterrorizada que não pudesse conseguir fazer
Lívia aterrissou em um campo do lado de fora das cercas e levantou o olhar a tempo de ver a fina caixa que havia lhe expulsado do centro de treinamento retroceder até voltar a fazer parte da construção.O Sol já tinha chegado ao alto quando Lívia olhou ao redor e percebeu que estava bastante distante das cercas de proteção. Seu medo, criado após o sumiço de Henrique, voltou com força total e ela sentiu sua respiração ficar falhada ao ponto de precisar ajoelhar-se sobre a grama para tentar se controlar.Levada ao esgotamento físico e emocional, deixou lágrimas de medo e saudade escaparem.Medo que não encontrasse Denis, mesmo se chegasse em Globo do mar.Ali, no campo além das cercas, ninguém poderia vê-la sair de sua carapaça dura e inquebrável. Ali, ela era a garotinha assustada que sempre precisara de prote&cc
Lívia não sabia desde quando a pele humana tinha começado a brilhar - certamente tinha acontecido gerações após a saída dos abrigos em resultado às sucedidas adaptações de sua espécie à radiotividade mortal da atmosfera.Ela também sabia que nem a desintoxicação conseguia limpar aquela característica por completo, mantendo um brilho fraco e discreto até o resto da vida.Todos os habitantes da Terra emitiam brilhos esverdeados, mais fracos ou mais fortes.Aquele garoto não tinha nenhum.Aquele garoto de pele negra, ombros largos e corpo esguio e forte, caminhando de um lado para o outro, era um ponto opaco diante da noite verde.Seus dentes trincaram com a mais óbvia explicação para aquilo: ele não era um habitante da Terra.Não era uma explicação comum; L&
— Vamos acampar – Lívia disse, sem cerimônia alguma.Ela se levantou em um pulo, mas o rapaz continuou impassível a observá-la, indeciso entre a admiração e o espanto. Liv começou a descer a colina sozinha, sem esperá-lo, mas um olhar ameaçador em sua direção foi o suficiente para que o garoto começasse a se mover.Alcançou-a quase tropeçando em seus próprios pés quando o declínio se encerrou. Parou ao lado dela, tentando lançar-lhe um sorriso encantador.— Meu nome é Jefferson. Tony Jefferson. Ou Jeff. Sou da vila 377... – E continuou, com uma voz grossa como se estivesse anunciando:. – Estruturada para o futuro.Jeff riu sozinho de sua própria piada enquanto Liv o encarava, sem entender aonde estava a graça. Quando percebeu que estava rindo sozinho, Jeff limpou a garganta