Hoje era o grande dia pelo qual esperou a vida toda.
Não era a única, porém. Milhares de jovens haviam se preparado e ansiado por aquele momento, mas a glória viria para poucos. Apenas algumas dezenas teriam a oportunidade de mudar seu destino para sempre.
Lívia olhou pela janela, para o caos que chamava de lar. Não concordava com o tipo de vida que levava naquele lugar, ninguém a merecia. Por isso, havia abdicado de tudo para sair dali.
Precisava confessar que parte daquela persistência tinha a ver com Ric.
Fechou o zíper de seu macacão de proteção, como todos os dias, nos últimos dez anos. Sua arma radioativa apitou o recarregamento, então ela tirou de seu case e colocou na cintura.
Admirou-se no espelho. Dura, fria, quase como aço. Havia anos que se proibira de demonstrar suas fraquezas, como o nervosismo que sentia naquele dia tão importante. Depois de tanto batalhar, estava na hora de sua formatura e ela tinha esperanças de conseguir sair dali.
Esperança é para fracos, se repreendeu. Dera tudo de si pelo seu futuro, assim como seu irmão fizera antes dela, mas a garota que foi um dia ainda vivia dentro daquela carcaça de frieza e, embora se recusasse a demonstrar, sentia o frio na barriga.
— Você conseguiu — disse a si mesma encarando, em seu reflexo no espelho, as marcas da noite má dormida. — Ninguém pode ter sido melhor que você. Hoje é o seu dia e todos eles sabem disso.
Por alguns segundos, enquanto se admirava no espelho quebrado, deixou sua máscara cair. O medo e a insegurança a fizeram morder os lábios e ela viu a garota que deixou para trás com o medo estampado em seus olhos esverdeados, tão comuns aos expostos à radioatividade. Apertou as pálpebras e respirou fundo, buscando forças. Quando se encarou novamente, a garota tinha se ido.
Passou a mão pelo rabo de cavalo impecável, enrolando-o até formar um coque, permitindo que seus movimentos fossem tão ágeis quanto o possível e virou-se de costas para o espelho, renegando suas fraquezas. Era uma mulher feita agora e deixaria tudo para trás.
Pegou-se encarando o quarto ao seu redor, as memórias cobrando o preço em seu coração destroçado. O olhar fixou-se em sua cama, muito mais velha que ela, pertencia a alguém que morrera nos bombardeios antes de seus pais colocarem em seu quarto. Tivera oportunidades de trocá-la por modelos mais novos e confortáveis, mas nunca quis. Era uma das únicas coisas que tinha apego emocional, uma de suas poucas fraquezas expostas que ficaria para trás. Podia jurar que ainda sentia o cheiro de Ric nela.
Em seu armário, pelo buraco onde houvera uma porta algum dia, viam-se poucas cores. Duas peças de roupa ficaram para trás, além de poucas roupas íntimas. O restante, a maioria macacões de treinamento, tinham tomado seus novos espaços na mochila que levava em suas costas.
Aquilo era tudo que tivera nos últimos dezenove anos e não era estranho que tivesse desejado mais. Mesmo assim, havia uma pontada no meio de seu coração que lhe dizia que sentiria saudades.
Saiu do quarto e desceu as escadas, deixando sua bolsa bater nas suas costas a cada degrau. Seu esforço em parecer indiferente ao dizer adeus aos seus pais era visto pela linha franzida de sua testa. Ela lembrava como tinha sido difícil quando
Estava tentando parecer indiferente para dizer adeus aos seus pais sem transparecer suas emoções, mas ela lembrava como havia sido difícil quando Denis se formou. Era ainda a menina doce e apaixonada, lembrava-se de ter afundado o rosto em seu peito e chorado por uns dez minutos de saudade antecipada. Não tinha planos de segui-lo, naquele momento, mas todo aquele ano fora difícil para Lívia e tudo tinha mudado desde então.
Sua mãe abriu os braços e a chamou para um chamego assim que a viu surgir das escadas. Lívia não ficou muito animada com a perspectiva das despedidas, mas deixou sua mãe lhe apertar quando alcançou o térreo.
Sua mãe, assim que a viu surgir pelas escadas, abriu os braços e a chamou, mas percebendo a vontade mínima que ela tinha, caminhou até ela e a abraçou assim mesmo. Lívia conformou-se em olhar para o teto e aguardar o momento acabar.
— Minha querida filhinha — disse, afastando-se para passar as mãos em seus cabelos de uma forma que não fazia há muito tempo porque Lívia estava sempre fugindo dos seus aconchegos. — Estamos tão orgulhosos de você. — Ela abraçou de novo e, dessa vez, Lívia deixou os olhos baixos apenas para ver seu pai caminhando aos tropeços para se despedir também. — Diga ao Denis que nós o amamos, certo?
Sua mãe se afastou chorando e Lívia virou para olhar para o seu pai. Ele havia perdido uma perna em um bombardeio, pouco antes de Denis se formar e usava uma bengala para se apoiar quando queria andar pela casa ou os arredores da vizinhança, mas não era muito comum. O tempo e a radioatividade já lhe cobravam caro. Caminhou até ele, impedindo que ele continuasse se esforçando tanto só por causa dela.
— Pai – disse, por fim. Sua voz mais firme e dura do que esperava.
Seu pai sorriu, orgulhoso e a abraçou de lado, dando-lhe tapinhas nas costas. Ele também tinha dificuldade de expressar seus sentimentos.
— Quantos pais podem dizer que mandaram todos seus filhos para um lugar melhor? — Perguntou.
Lívia deixou-se sorrir para ele, mas, em sua cabeça, a resposta para a pergunta foi muitos. Muitos pais podiam dizer aquela frase, mas não com o mesmo significado deles. Denis e Lívia continuavam vivos.
Olhou para seus pais por um último momento, os olhos esverdeados não-naturais lhe encarando com emoção. Sua garganta fechou e ela sentiu que estava prestes a deixar as emoções transbordarem. Seus pais estavam passando dos quarenta anos e era sorte dela terem chegado tão longe. Não viveriam muito além disso, ela tinha certeza. Mesmo assim, não conseguiu dizer-lhes o que queria.
— Tchau. — disse, apenas.
O esverdeado dos olhos de sua mãe se acentuou quando as lágrimas apareceram e Lívia desviou o olhar para seu pai, que apenas lhe acenou em reverência. A aprovação e o orgulho encheram seu peito a ponto de um leve sorriso preencher sua face, um raro gesto seu. Ela não tivera muitos motivos para sorrir nos últimos anos.
Arriscou olhar a casa por alguns segundos, guardando-a na memória como a justificativa clara do porquê queria tanto abandonar a vila 364, uma das únicas da série 360 que ainda continuava populosa, apesar de sofrer intensos bombardeios.
Saiu para o chão de terra batido ainda um pouco lamacento da chuva da noite anterior. As casas ao redor da sua eram, em sua maioria, ruínas, demonstrando o quanto a vila já tinha sofrido e o quão perto da morte ela já estivera tantas vezes.
Ela olhou para o céu e identificou pontinhos pretos entre as nuvens. Aquela guerra com seres de outros planetas que queriam extrair os recursos de Esmeralda para seu uso próprio vinha se estendendo por décadas. Recursos que eles batalharam para recuperar depois de quase perderem o planeta todo em uma guerra nuclear, milhares de anos atrás.
Todo ano, os melhores homens e mulheres eram escolhidos para a inteligência de guerra, Globo do Mar, uma cidade protegida, livre de radioatividade, que orquestrava as lutas contra seus invasores espacial. Seu irmão Denis fora escolhido há cinco anos e ela pretendia se juntar a ele agora.
Abaixou o olhar, apertando os olhos por causa da claridade anterior e respirou fundo, buscando a confiança de sempre. O pensamento veio com força: nunca mais terei que correr dessas bombas malditas. Nunca mais ver meus vizinhos e familiares feridos ou mortos.
Ela sabia que os bombardeios não parariam quando ela fosse embora, mas ela não os veria. E, de Globo do Mar, teria a chance de mudar as coisas. Com a tecnologia e o apoio necessário, pretendia melhorar a infraestrutura e a segurança das quatro vilas restantes da série 360 logo em seus primeiros dois anos.
Parada, observando a vizinhança, sacudiu a cabeça para afastar seus pensamentos. Dois de seus vizinhos já haviam lhe acenado uma despedida à distância e percebeu que deveria estar parecendo boba. Com um aceno educado, ela pôs-se a caminhar até o centro de treinamento.
O final da vila ficava perto de sua casa e logo se viu próxima à área mais perigosa da série, os estreitos caminhos que ligavam as dez vilas, hoje quatro, ao centro de treinamento. Algumas pessoas haviam desistido da vida nas vilas e espreitavam às grades, escondidas na floresta, prontas para atacar em prol de conseguir comida. As cercas da vila 364 tinham algumas falhas, mas ninguém tentava atacar Lívia há anos, desde que recebera a honra de portar uma arma de carregamento automático.
Mesmo assim, era a primeira vez em anos que ela parava naquele ponto da cerca, o mais frágil, aonde era possível ver o desencaixe do arame, fácil de passar para dentro ou para fora da vila. Seu olhar estava além árvores, fixado no passado. Conseguia sentir o cheiro da água, o barulho dela nas pedras. Deixou-se sorrir.
— Vou achar você, Ric — prometeu à memória. — Vou descobrir o que esses bastardos fizeram com você e vou te encontrar.
Ouviu as sirenes começarem a soar, indicando um novo bombardeio e seu rosto fechou-se novamente, como se não tivesse se permitido sorrir.
— Vou te encontrar — murmurou uma última vez, antes de correr para o lugar seguro mais próximo que conhecia.
— Obrigada, Senhora Astraregi — Lívia disse.A mulher concordou com a cabeça, apenas. A conversa entre as duas havia se reduzido a uma simples troca de sentenças jamais elaboradas, sempre repetitivas, desde que Ric sumira. Lívia entrava na casa aonde Ric cresceu, muitas vezes sem avisar, para fugir dos bombardeios e as duas mantinham-se escondidas durante os longos minutos de explosões para, então, se despedirem, muitas vezes sem nem trocar nada além de um olhar de reconhecimento.Era doloroso, ainda, para as duas.Desta vez, porém, Lívia tinha que falar alguma coisa. Podia ser a última. Devia ser. Ela chegou a abrir a boca para falar sobre Ric, mas nada saiu. A outra mulher observou-a por um momento e sorriu, entendendo a garota.— Boa sorte hoje — ela murmurou, a voz rouca pelo pouco uso. — Ele desejaria isso pra você.Estava sendo um dia dif
Lívia entrou na área aberta do centro de treinamento, depois de enfrentar uma pequena fila, ainda com o sorriso no rosto. Dali, podia-se ver vários outros concorrentes tomando o mesmo caminho que ela, admirando-a com inveja no olhar enquanto ela caminhava, parecendo despreocupada, com a certeza de quem havia ganhado. Ela não tinha essa certeza, na verdade, mas a perspectiva de, mesmo assim, sair daquele lugar, estava dando-lhe um ar muito mais solto do que nos últimos quatro ou cinco anos.Atravessou o campo livre em um piscar, entrando na sala de reuniões onde quase uma centena de jovens já aguardavam por seu destino. Seu coração deu uma pequena fisgada de nervosismo, mas ela tentou parecer confiante com todos aqueles olhares em cima dela.— Leitura habitual – um rapaz aproximou-se dela, ainda na entrada da sala de reuniões, com um aparelho que ela já tentara se acostumar, mas nun
— Aqui estamos. – A diretora anunciou, abrindo a porta. O analisador que a atendera estava lá dentro e ele sorriu ao vê-la. – Volto em meia hora – anunciou.Pela olhada que deu para o rapaz antes de fechar a porta, Lívia sabia que ela estava intencionada a se aproveitar dele.Acabou por entrar na sala com cuidado e um leve temor de suspeita, acostumada a não confiar em nada, admirando como a sala era ligeiramente mais quente e escura que o resto do ambiente do centro de treinamento. A pele de Lívia já emitia um brilho verde, bem fraquinho, devida a radioatividade alta pela qual ela fora exposta durante toda vida. O rapaz, ao contrário, parecia nunca ter sido exposto.A desintoxicação, Lívia pensou.— Você está limpo – disse, quando ele lhe estendeu a mão para que ela apertasse.Lívia não queria que transmitir ma
A segunda projeção escureceu tanto o ambiente em que estavam que Lívia emitiu sua luz esverdeada de forma que nunca emitira antes. Distraiu-se, então, olhando para sua mão por um momento antes de arregalar os olhos para a imagem à sua frente.Era uma nave espacial tão grande, maior do que qualquer coisa que ela já tivera visto e estava bem à sua frente. O pânico, inserido tão profunda e intimamente nela desde àquela tarde em que Ric fora tomado na sua presença, a fez recuar instintivamente até a parede mais próxima.— Está tudo bem? – Jerrade perguntou, estranhando sua fraqueza tão evidente, quando a garota mal demonstrava satisfação.Lívia não dignou-se a responder, continuando a encarar a grande nave espacial com os olhos arregalados. A nave estava pairando em meio ao nada, mas, em uma manobra, giro
A imagem de Globo do Mar foi se afastando, subindo até que Lívia pudesse ver toda a extensão de Esmeralda, o que a fez arregalar os olhos. Nunca em sua vida ela pensara que a floresta pudesse ser tão grande.Ela começava em um estreito, quase no limite com o Norte destruído e descia, abrindo-se em todo o continente, indo até o Sul, onde ela tinha uma versão mais espaçada, mas, ainda assim, ela estava lá. De Norte a Sul, de Leste a Oeste. Esmeralda dominava todo o espaço, tirando pelos pequenos campados e os desmatados para construção das centenas de vilas.“Esmeralda é o que restou de nossa Fauna e Flora, o sobrevivente de tudo que tínhamos, mesmo antes da Grande Guerra. Ela é nosso suspiro de alívio e a nossa melhor amiga na batalha contra todas as adversidades. Nossa função é protegê-la de tudo e de todos que querem-l
Lívia lançou um último olhar a Jerrade, balançando a cabeça em despedida. O rapaz sorriu-lhe e ela conseguiu olhá-lo com descaso, no momento. Assim que a diretora se livrasse dela, iria atacar o rapaz. Isso a enojava.— Boa sorte, soldado Esterfonte – ele disse. – Espero que nos encontremos em breve.Ela concordou com a cabeça, seguindo a diretora para fora da saleta, sem pronunciar uma palavra. Lívia era, de todo, uma pessoa corajosa e forte, mas durante toda a sua vida, ela sabia o que esperar e o que fazer. Se bombas caiam, corria pro proteção e ajudava se alguém precisasse de ajuda para se salvar; se tinha um teste para fazer, dava o melhor de si, sabendo que teria assistência para se curar, caso se machucasse.Aquilo seria diferente. E, mesmo com pavor de admitir para si mesma, estava assustada. Tão aterrorizada que não pudesse conseguir fazer
Lívia aterrissou em um campo do lado de fora das cercas e levantou o olhar a tempo de ver a fina caixa que havia lhe expulsado do centro de treinamento retroceder até voltar a fazer parte da construção.O Sol já tinha chegado ao alto quando Lívia olhou ao redor e percebeu que estava bastante distante das cercas de proteção. Seu medo, criado após o sumiço de Henrique, voltou com força total e ela sentiu sua respiração ficar falhada ao ponto de precisar ajoelhar-se sobre a grama para tentar se controlar.Levada ao esgotamento físico e emocional, deixou lágrimas de medo e saudade escaparem.Medo que não encontrasse Denis, mesmo se chegasse em Globo do mar.Ali, no campo além das cercas, ninguém poderia vê-la sair de sua carapaça dura e inquebrável. Ali, ela era a garotinha assustada que sempre precisara de prote&cc
Lívia não sabia desde quando a pele humana tinha começado a brilhar - certamente tinha acontecido gerações após a saída dos abrigos em resultado às sucedidas adaptações de sua espécie à radiotividade mortal da atmosfera.Ela também sabia que nem a desintoxicação conseguia limpar aquela característica por completo, mantendo um brilho fraco e discreto até o resto da vida.Todos os habitantes da Terra emitiam brilhos esverdeados, mais fracos ou mais fortes.Aquele garoto não tinha nenhum.Aquele garoto de pele negra, ombros largos e corpo esguio e forte, caminhando de um lado para o outro, era um ponto opaco diante da noite verde.Seus dentes trincaram com a mais óbvia explicação para aquilo: ele não era um habitante da Terra.Não era uma explicação comum; L&