Lívia entrou na área aberta do centro de treinamento, depois de enfrentar uma pequena fila, ainda com o sorriso no rosto. Dali, podia-se ver vários outros concorrentes tomando o mesmo caminho que ela, admirando-a com inveja no olhar enquanto ela caminhava, parecendo despreocupada, com a certeza de quem havia ganhado. Ela não tinha essa certeza, na verdade, mas a perspectiva de, mesmo assim, sair daquele lugar, estava dando-lhe um ar muito mais solto do que nos últimos quatro ou cinco anos.
Atravessou o campo livre em um piscar, entrando na sala de reuniões onde quase uma centena de jovens já aguardavam por seu destino. Seu coração deu uma pequena fisgada de nervosismo, mas ela tentou parecer confiante com todos aqueles olhares em cima dela.
— Leitura habitual – um rapaz aproximou-se dela, ainda na entrada da sala de reuniões, com um aparelho que ela já tentara se acostumar, mas nunca conseguira. Ele aproximou-o de seus olhos e a luz cegante e radioativa leu sua retina. Uma pequena projeção dela apareceu acima do objeto, com algumas numerações sobre seu porte físico e capacidade de realizar certas tarefas. Liv piscou por alguns momentos, tentando se recuperar, enquanto o rapaz lia suas recomendações. – Obrigado, Senhorita Esterfonte. Pode subir na esteira?
Lívia franziu a testa, mas subiu na estranha e rústica estrutura corrente, obrigando-a a correr. O visor, à sua frente, mostrou-lhe seu peso exato, enquanto a máquina a obrigava a correr cada vez mais rápido. Antes que a garota se cansasse, o rapaz parou a esteira. Ela parou, a postura ereta, mãos atrás das costas e a respiração quase não ofegante, admirando Lucas, sendo avaliado ao seu lado, ofegando o suficiente para fazê-la estufar o peito.
O rapaz com a leitura pareceu fazer algumas anotações na projeção, enquanto a avaliava cuidadosamente. Lívia quase podia ler seus pensamentos: Como uma garota tão franzina pode estar entre os melhores desse lugar? Porque ela, com certeza, estava.
Enquanto Lívia aguardava pacientemente os resultados, Lucas estava tentando controlar sua raiva. Ela o ouviu perguntar se poderia tentar de novo. Ele era assim, sempre querendo tentar de novo porque era incapaz de acertar na primeira tentativa. Como se ele fosse bom demais para tentar, realmente, na primeira.
Mas não era com ele que ela se preocupava.
Havia um garoto da vila 367 que era o que mais tinha chances de tirá-la do lugar pelo qual ela lutara aquele tempo todo. Avaty Dickens, um loiro e ridiculamente branco para sobreviver nas provas ao ar livre tinha feito ela provar o gosto do inferno. E, no momento, enquanto ele desfilava pela área da sala de reuniões, recebendo elogios de todas as garotas que tinham quedas por ele, congratulando-o pela vitória ainda não conquistada, Lívia tinha o gosto amargo na boca. O gosto do quase-lá.
— Senhorita Esterfonte, posição de descanso.
Liv suspirou e balançou o pescoço, apenas para relaxar. Deixou seus ombros caírem apenas um pouco enquanto o fiscal sorria para ela, em aprovação. E, então, no segundo seguinte, ele havia largado o leitor no chão e estava com o braço em seu pescoço. Ela arregalou os olhos e, por alguns segundos, achou que eles sabiam de suas escapadas para floresta, quando era mais nova... Mas, ao olhar para o lado, Lucas estava na mesma situação.
Com uma suspirada, ela girou, escapando da chave de braço e levando o rapaz ao chão. Ficou encarando-o, enquanto tentava não olhar para Lucas, tendo um pouco de dificuldades para se soltar do aperto do seu próprio analisador. O rapaz levantou os olhos para Lívia, admirado com sua habilidade e rapidez. Sorriu para ela, que continuou encarando-o sem expressão.
Ele levou a mão à ela, pedindo-a ajuda para se levantar, o que ela fez, sem pestanejar. Ele passou as mãos pelas roupas, limpando a sujeira que adquirira com o tombo, ao mesmo momento em que Lucas, finalmente, levava seu analisador ao chão.
— Ótimos movimentos – o rapaz disse à ela. – Uma garota como você... Poderia ser usada na resistência.
Lívia piscou, seu interior inflando de orgulho e esperança. Ela meneou a cabeça, mordendo o lábio para segurar qualquer expressão de prazer incontido que pudesse acabar se demonstrando.
— Obrigada – disse.
Sem avisar, o analisador colocou duas esferas geladas em suas têmporas e ela o encarou meio sem entender o que estava acontecendo. Lucas já havia sido liberado e uma garota de cabelos dourados estava tomando seu lugar na análise.
— Seu intelecto é extremamente elevado – Estava lendo suas informações no projetor. – Um dos maiores da sua turma, e isso é extremamente bom para uma garota Tõ jovem. Não é comum cérebros femininos demonstrarem inteligência militar. Temos garotas no Globo que não tem metade dos seus conhecimentos. Bom... Muito bom mesmo – Lívia estava ficando um pouco tonta, o que a levava a acreditar que aquela leitura era com um nível um pouco mais alto de radioatividade da qual ela estava acostumada. – Algumas infrações por brigas... Muito bom – Ele desconectou o leitor e Lívia suspirou de alívio. – Um pouco desconfortável, não é? Desculpe por isso – ela concordou com a cabeça e ele colocou a mão em seu ombro, um sorriso de aprovação no rosto. – Espero encontrar com você em alguns meses no Globo, você seria, sem dúvidas, uma ótima aquisição. Está liberada.
Lívia concordou com a cabeça e virou-se de costas para ele, para tomar seu caminho para as cadeiras de ordem alfabética, fechando os olhos, quase não contendo sua felicidade. Ela teria um futuro, um onde ela poderia não se preocupar se seria acertada por uma bomba no dia seguinte ou de fazer alguma coisa importante antes dos seus quarenta anos, idade onde ela, provavelmente, morreria. Ali, quase em suas mãos, estava a oportunidade de viver quase até os cem anos ou, com sorte, um pouco mais. E fazer tantas coisas importantes quanto o possível.
— Ei, Liv – um rapaz da 363, de sobrenome Stalei a chamou. Suspirando, Lívia foi se posicionar ao seu lado, sabendo, em nove anos de treinamento, que seu lugar estaria ao lado dele. – Nervosa? – Ele perguntou-a, assim que ela o alcançou.
Os olhares das gêmeas Orion, sentadas à frente deles, desviaram para Lívia e sua expressão vazia.
— Não – respondeu. – Apenas desejando acabar com tudo isso logo.
Arnold Stalei riu. Lívia, se fosse ele, estaria escondida no banheiro. Se tinha alguém com menos chance de ser escolhido naquele dia, aquele era Arnold. Ele levava tudo na brincadeira, inclusive o fato de ter engravidado uma garota de catorze anos no mês retrasado, acabando com qualquer chance dela ser a escolhida na turma dela, em alguns anos.
— É claro que sim – ele disse. – Você vai levar um pouco dessa sua dignidade inabalável para o oceano, não vai? – Ele estava rindo, fazendo piada mais uma vez. – Bom, é uma coisa pela qual esperamos. Ao menos você pode tentar fazer algo pela gente, enquanto o Dickens... – Lívia deixou seu olhar cair em Dickens, recebendo beijinhos na bochecha, de duas garotas ao mesmo tempo.
— Vai pedir para entrar na frente de alguma batalha e morrer em dois dias. Olá Esterfonte, Stalei. – Orcande, um garoto negro e sarcástico da 369, se aproximou, metendo-se na conversa. – Ao menos Esterfonte pode tentar erradicar um mal que está assolando a Terra há anos... A abdução, é claro.
As gêmeas Orion, além de outras pessoas que estavam ouvindo a conversa sem serem tão descarados, começaram a rir. Lívia revirou os olhos, enquanto Arnold estava tentando encontrar algum caminho de volta à conversa despreocupada.
E era sempre assim. Ali, ela sempre seria a garota esquisita que falara que seu namorado fora abduzido. A maior parte das pessoas achava que ela o matara por traição e soltara essa mentira deslavada e, por mais que ela se esforçasse para que eles a vissem de outra forma, lá estava ela como a garota esquisita novamente.
— Vamos ver quem vai estar rindo ao final do dia, Orcande – Lívia disse.
Orcande levantou uma sobrancelha e soltou uma risada meio que contida, enquanto se sentava, finalmente, ao lado de uma das gêmeas, seu lugar de sempre.
— Certamente não será você, Sterforte – Ele disse. – Rir não é uma das suas especialidades.
Não, realmente não era. E, por isso, Lívia apenas balançou a cabeça, tirando a mecha de cabelo da frente do olho, olhando para outro lado, decidida a ignorar tudo e todos.
Para sua sorte, antes que alguém mais voltasse a fazer piadinhas às suas custas ou Arnold voltasse a puxar conversa, a diretora da série 360, Caroline Dantei subiu ao palco à frente deles. Eles a aplaudiram, como sempre faziam, embora poucos tivessem alguma admiração pela Senhora Dantei. Ela tinha pouco mais que trinta anos e sua vida era simplesmente fingir que se importava enquanto as vilas explodiam aqui e ali. Às vezes, ela aparecia nos treinamentos para falar que torcia que um ou outro garoto chegasse ao Globo do Mar e a ajudasse a salvar as vilas. Na semana seguinte, o garoto aparecia com a história de ter dormido com ela e feito coisas que o universo duvida.
Lívia escondia seu desagrado muito bem, como todos os outros sentimentos que ela escondera por todos aqueles anos.
— Bom dia, pequenos guerreiros – ela saudou-os com um sorriso vermelho sangue. – Hoje é o grande dia de vocês e não queremos estender muito mais – Com um gesto, apontando para o telão, ela mostrou os nomes que apareciam ali.
Eram os dez melhores dos seis quesitos mais importantes no desenvolvimento. Combate, Inteligência, Sobrevivência, Resolução, Físico e Resistência. Lívia fechou os olhos por três segundos, vendo o seu nome em primeiro em quatro daqueles quesitos. Quando os reabriu, viu a média final, seu nome em primeiro. Seus olhos azuis, sempre tão gelados, brilharam em realização e seu rosto, sempre tão determinado em transparecer nada, transbordou felicidade com um sorriso de lado.
Ela se levantou, parecendo tão esnobe quanto poderia ser.
— Bom, eu espero que seus últimos vinte anos sejam agradáveis, Orcande – ela lhe disse, com um sorriso, fazendo Arnold rir. – E você – apontou para Arnold. – Tome jeito, cuide do seu bebê e veja se consegue mandá-lo pra mim.
Arnold concordou com a cabeça, feliz por ela. E ele parecia ser o único.
Quando Lívia alcançou a diretora, os olhares invejosos quase podiam arrancar pedaços dela, mas ela estava tentando não ligar. Ela merecia. Todos sabiam que seria ela. Com isso, ela voltou a se fechar e a encarar a todos com sua expressão vazia, mas com um tom de superioridade que ela acabava de adquirir.
— Não estamos surpresos, estamos? – A diretora sorriu para ela, mas Lívia tinha a impressão de que era a primeira vez que realmente a notava. – Parabéns, querida. Venha, o instrutor tem algumas coisas para dizer para você.
Lívia se viu sendo guiada para área restrita do Centro de Treinamento. Ela ainda se obrigou a olhar para trás, vendo Dickens parecendo bastante arrasado, mas sendo consolado por algumas meninas que, com certeza, esperavam estar grávidas dele em menos de um ano. E Lucas com o olhar em chamas de ódio.
Voltou a olhar para o seu caminho. Mais que ter conseguido o que queria, ela agora teria alguma coisa que poderia chamar de vida.
— Aqui estamos. – A diretora anunciou, abrindo a porta. O analisador que a atendera estava lá dentro e ele sorriu ao vê-la. – Volto em meia hora – anunciou.Pela olhada que deu para o rapaz antes de fechar a porta, Lívia sabia que ela estava intencionada a se aproveitar dele.Acabou por entrar na sala com cuidado e um leve temor de suspeita, acostumada a não confiar em nada, admirando como a sala era ligeiramente mais quente e escura que o resto do ambiente do centro de treinamento. A pele de Lívia já emitia um brilho verde, bem fraquinho, devida a radioatividade alta pela qual ela fora exposta durante toda vida. O rapaz, ao contrário, parecia nunca ter sido exposto.A desintoxicação, Lívia pensou.— Você está limpo – disse, quando ele lhe estendeu a mão para que ela apertasse.Lívia não queria que transmitir ma
A segunda projeção escureceu tanto o ambiente em que estavam que Lívia emitiu sua luz esverdeada de forma que nunca emitira antes. Distraiu-se, então, olhando para sua mão por um momento antes de arregalar os olhos para a imagem à sua frente.Era uma nave espacial tão grande, maior do que qualquer coisa que ela já tivera visto e estava bem à sua frente. O pânico, inserido tão profunda e intimamente nela desde àquela tarde em que Ric fora tomado na sua presença, a fez recuar instintivamente até a parede mais próxima.— Está tudo bem? – Jerrade perguntou, estranhando sua fraqueza tão evidente, quando a garota mal demonstrava satisfação.Lívia não dignou-se a responder, continuando a encarar a grande nave espacial com os olhos arregalados. A nave estava pairando em meio ao nada, mas, em uma manobra, giro
A imagem de Globo do Mar foi se afastando, subindo até que Lívia pudesse ver toda a extensão de Esmeralda, o que a fez arregalar os olhos. Nunca em sua vida ela pensara que a floresta pudesse ser tão grande.Ela começava em um estreito, quase no limite com o Norte destruído e descia, abrindo-se em todo o continente, indo até o Sul, onde ela tinha uma versão mais espaçada, mas, ainda assim, ela estava lá. De Norte a Sul, de Leste a Oeste. Esmeralda dominava todo o espaço, tirando pelos pequenos campados e os desmatados para construção das centenas de vilas.“Esmeralda é o que restou de nossa Fauna e Flora, o sobrevivente de tudo que tínhamos, mesmo antes da Grande Guerra. Ela é nosso suspiro de alívio e a nossa melhor amiga na batalha contra todas as adversidades. Nossa função é protegê-la de tudo e de todos que querem-l
Lívia lançou um último olhar a Jerrade, balançando a cabeça em despedida. O rapaz sorriu-lhe e ela conseguiu olhá-lo com descaso, no momento. Assim que a diretora se livrasse dela, iria atacar o rapaz. Isso a enojava.— Boa sorte, soldado Esterfonte – ele disse. – Espero que nos encontremos em breve.Ela concordou com a cabeça, seguindo a diretora para fora da saleta, sem pronunciar uma palavra. Lívia era, de todo, uma pessoa corajosa e forte, mas durante toda a sua vida, ela sabia o que esperar e o que fazer. Se bombas caiam, corria pro proteção e ajudava se alguém precisasse de ajuda para se salvar; se tinha um teste para fazer, dava o melhor de si, sabendo que teria assistência para se curar, caso se machucasse.Aquilo seria diferente. E, mesmo com pavor de admitir para si mesma, estava assustada. Tão aterrorizada que não pudesse conseguir fazer
Lívia aterrissou em um campo do lado de fora das cercas e levantou o olhar a tempo de ver a fina caixa que havia lhe expulsado do centro de treinamento retroceder até voltar a fazer parte da construção.O Sol já tinha chegado ao alto quando Lívia olhou ao redor e percebeu que estava bastante distante das cercas de proteção. Seu medo, criado após o sumiço de Henrique, voltou com força total e ela sentiu sua respiração ficar falhada ao ponto de precisar ajoelhar-se sobre a grama para tentar se controlar.Levada ao esgotamento físico e emocional, deixou lágrimas de medo e saudade escaparem.Medo que não encontrasse Denis, mesmo se chegasse em Globo do mar.Ali, no campo além das cercas, ninguém poderia vê-la sair de sua carapaça dura e inquebrável. Ali, ela era a garotinha assustada que sempre precisara de prote&cc
Lívia não sabia desde quando a pele humana tinha começado a brilhar - certamente tinha acontecido gerações após a saída dos abrigos em resultado às sucedidas adaptações de sua espécie à radiotividade mortal da atmosfera.Ela também sabia que nem a desintoxicação conseguia limpar aquela característica por completo, mantendo um brilho fraco e discreto até o resto da vida.Todos os habitantes da Terra emitiam brilhos esverdeados, mais fracos ou mais fortes.Aquele garoto não tinha nenhum.Aquele garoto de pele negra, ombros largos e corpo esguio e forte, caminhando de um lado para o outro, era um ponto opaco diante da noite verde.Seus dentes trincaram com a mais óbvia explicação para aquilo: ele não era um habitante da Terra.Não era uma explicação comum; L&
— Vamos acampar – Lívia disse, sem cerimônia alguma.Ela se levantou em um pulo, mas o rapaz continuou impassível a observá-la, indeciso entre a admiração e o espanto. Liv começou a descer a colina sozinha, sem esperá-lo, mas um olhar ameaçador em sua direção foi o suficiente para que o garoto começasse a se mover.Alcançou-a quase tropeçando em seus próprios pés quando o declínio se encerrou. Parou ao lado dela, tentando lançar-lhe um sorriso encantador.— Meu nome é Jefferson. Tony Jefferson. Ou Jeff. Sou da vila 377... – E continuou, com uma voz grossa como se estivesse anunciando:. – Estruturada para o futuro.Jeff riu sozinho de sua própria piada enquanto Liv o encarava, sem entender aonde estava a graça. Quando percebeu que estava rindo sozinho, Jeff limpou a garganta
Jefferson pôs-se de pé rápido demais para quem estava com a perna machucada e tomou uma posição defensiva, mas sem saber de onde viria ameaça.A rapidez e a destreza da sua movimentação fez Lívia entender como ele tinha sido o melhor de sua série.Em pânico e com alguém já tomando a dianteira da situação, ela engatinhou até estar protegida pela árvore e se escondeu, ocultando o seu brilho fantasmagórico com o da planta. Jefferson, ao entender sua ideia, saiu da posição exposta e encolheu-se ao lado dela.O barulho da nave ficou ainda maior e entrou no campo de visão deles, pairando logo acima de onde estavam anteriormente, como se os tivessem procurando.Lívia começou a tremer descontroladamente, certa de que aquilo era culpa do filete fino de fumaça que subia de um galho