— Aqui estamos. – A diretora anunciou, abrindo a porta. O analisador que a atendera estava lá dentro e ele sorriu ao vê-la. – Volto em meia hora – anunciou.
Pela olhada que deu para o rapaz antes de fechar a porta, Lívia sabia que ela estava intencionada a se aproveitar dele.
Acabou por entrar na sala com cuidado e um leve temor de suspeita, acostumada a não confiar em nada, admirando como a sala era ligeiramente mais quente e escura que o resto do ambiente do centro de treinamento. A pele de Lívia já emitia um brilho verde, bem fraquinho, devida a radioatividade alta pela qual ela fora exposta durante toda vida. O rapaz, ao contrário, parecia nunca ter sido exposto.
A desintoxicação, Lívia pensou.
— Você está limpo – disse, quando ele lhe estendeu a mão para que ela apertasse.
Lívia não queria que transmitir mais radiação a ele, não quando ele já tinha se livrado de boa parte dela; mas o garoto apenas riu, então ela arriscou apertar sua mão, ainda insegura quanto a isso.
— Não se preocupe – o rapaz assegurou-lhe. – Não me faz mal. Me chamo Jerrade, à propósito.
Ela concordou com a cabeça, soltando a mão de Jerrade e sentando-se na cadeira que ele estava oferecendo à ela.
— Obrigada – Lívia agradeceu, sentando-se.
Jerrade sentou-se ao outro lado da mesa, sorrindo para Lívia, que o encarava de forma impassível.
— Estou muito feliz que seja você, a escolhida. Em breve nos reuniremos em Globo do Mar, mas antes disso... – Jerrade pareceu levar os pensamentos longe, antes de balançar a cabeça em negação. – Tem uma projeção que você precisa assistir... E prestar bastante atenção nela.
Lívia concordou com a cabeça. Jerrade avaliou-a por uns momentos antes de apertar o dispositivo que estava no centro na mesa, entre eles.
No segundo seguinte, a sala inteira estava envolta de cores, imagens e sons dos quais ela não jamais estivera acostumada. A Terra atualmente era resumida em preto, cinza, marrom, verde e vermelho, mas ali estavam cores que ela não conseguia nomear. O Sol estava brilhando de uma forma intensa e diferente de como brilhava agora. As construções eram diferentes, algumas tinha palavras esquisitas que brilhavam, outras refletiam as outras construções, como espelhos.
E as pessoas... elas eram diferentes. Pareciam despreocupadas, mas apressadas. Umas passavam correndo por grandes faixas cinzas, onde circulavam máquinas rolantes esquisitas que faziam muito barulho, outras faziam sinais para máquinas rolantes da cor do antigo Sol, que paravam para elas e as engoliam.
Tudo era muito estranho para Lívia.
Ela se levantou, se sentindo na visão. Ela deu alguns passos, deixando uma das máquinas rolantes atravessá-la, franzindo a testa à realidade das imagens se dissipando à sua frente.
E a voz falou:
“Cinco mil anos atrás, as coisas eram diferentes. Terra tinha mais cor, mais vida, mais condições. Era um lugar acolhedor, embora muito barulhento”
Lívia olhou ao seu redor, quase assustada. Nunca tinha visto nada daquilo, não estava nem um pouco perto de sua zona de segurança. Deu uma volta ao redor de si, admirada.
E a imagem mudou. De uma agradável e barulhenta população rolante para um caos generalizado. Pessoas corriam com seus pertences em extensas superfícies cinzas, de onde entravam por grandes portas para naves.
“Mas a ganância gerou o pânico descontrolado; e as pessoas que tiveram chances correram por suas vidas. O mundo, como conheciam, estava para acabar. Por recursos naturais, que eles mesmos destruíram, fizeram a Terra desenvolvida conhecer o seu fim com bombas que nunca deveriam ser usadas”.
As pessoas corriam para abrigos em baixo da terra. Lívia já havia visto alguns desses abrigos ela mesma: eram grandes para caber milhares de pessoas, mas fediam e não tinham muito suporte. Mesmo assim, na época, era a única chance de sobrevivência para eles. E, então, o abrigo se fechou. As bombas estouraram e tudo ficou tão claro que Lívia fechou seus olhos para reabri-los, momentos depois, em uma Terra escura e sem vida.
“Todo o hemisfério norte se tornou sem vida, tanto na superfície quanto os que tentaram os abrigos nucleares daquela região. No hemisfério sul, houveram sobreviventes na superfície, mas acabaram morrendo em cerca de quinze de anos, sem herdeiros, pois toda criança nascida sob aquela atmosfera não conseguia sobreviver”.
Lívia acompanhou uma mulher fraca e grávida dando a luz, com olhos arregalados. A criança nascera com três olhos e apenas uma perna, já quase sem vida. A mulher, frustrada, deixou-se desfalecer nos momentos seguintes.
E tudo estava escuro, como uma noite sem fim. Lívia podia sentir o pânico dos sobreviventes, morrendo aos poucos. E, então, não havia mais ninguém.
“Dentro dos abrigos, centenas de anos se passaram antes que alguém se arriscasse a sair. A radioatividade ainda estava forte quando o fizeram, mas as doenças de estarem presos ali estavam se tornando cada vez piores”
Então ela pode ver os abrigos em seu ápice: lotados de pessoas, crianças, imundos até o teto porque não havia escape para todo aquele lixo. E, além disso, o cheiro, ela pôde sentir. Era terrível, as pessoas tossiam e muitas acabavam tendo infecções e doenças por contato com o lixo ou, simplesmente, por não conseguir sobreviver àquele ar.
“A radioatividade foi extrema, ainda, para alguns dos que se arriscaram a sair. Foi decidido, então, fazer a transição aos poucos, enquanto se organizava uma espécie de divisão de bens para que cada parte da população pudesse aproveitar e se responsabilizar por uma parte de Esmeralda”.
A vanguarda estava sob tratamento, tentando entender e reverter os sintomas de doenças que a radioatividade lhes provocara. Enquanto isso, as comportas dos abrigos foram abertas e pessoas podiam sair um pouco, enquanto seus organismos tentavam se acostumar com todo aquele material estranho à sua natureza.
“Mesmo assim, foi impossível não sofrer os efeitos. Houveram mutações antes que nosso organismo se adaptasse. Muitos morreram antes que pudessem completar vinte e cinco anos... E a população quase chegou ao seu fim, mas somos sobreviventes”.
Mostraram as vilas sendo construídas, suas cercas e as pessoas tomando posse das casas, as crianças, aos poucos, crescendo... E então, sobrevivendo em meio à floresta Esmeralda, forte e viva, como se nem tivesse se abalado com seu ambiente altamente nuclear.
“Sobrevivemos a era mais negra de nossa história, nos tornando resistentes ao nosso pior inimigo, acoplando-o a nossa natureza de forma gradual, até os tempos atuais, onde podemos chegar quase aos cinquenta anos: uma vitória além do sonhado”.
A projeção se encerrou e Lívia percebeu que estivera segurando a respiração. Puxou o ar com força, fazendo Jerrade rir um pouco dela.
— É eletrizante, não é? – Perguntou-a. – Finalmente entender como a gente chegou até aqui...
Lívia encarou-o, meio sem saber o que pensar. Sua respiração ainda estava tentando voltar ao normal naquela saleta quente.
— É... Enojante – disse, por fim.
Jerrade meneou a cabeça, parecendo considerar o ponto de vista da garota, tão decidida, que parecia que sempre soubera o que acontecera e tivera tempo de pensar no que achava sobre isso, o que não era verdade.
Tirando os escolhidos, ninguém sabia o porquê eles viviam assim. A maioria achava que era natural, alguns acreditavam na lenda da guerra, mas pouquíssimos tinham conhecimento total da situação.
— Ver como chegamos ao limite... Por causa de uma discussão que podia ter sido resolvida com repartição de recursos, como fazemos agora? – Jerrade disse, com as sobrancelhas arqueadas, quase parecendo irônico. – Sim, parece enojante, mas pense que, agora, somos mais desenvolvidos que nossos antepassados. Talvez eles não entendessem como... resolver.
Mesmo não acreditando muito em como alguém pudesse ser tão burro ao ponto de quase dizimar sua espécie por causa de árvores, ela concordou com a cabeça, não querendo discutir sobre isso.
— Talvez você tenha razão – disse, por fim.
Seu olhar torneou o ambiente, como se ela ainda estivesse vendo as imagens anteriores. E, provavelmente, ela as veria durante toda sua vida, da forma em que elas pareciam ter sido gravadas em sua mente.
— Certo – Jerrade disse. – Tenho mais projeções para você.
A segunda projeção escureceu tanto o ambiente em que estavam que Lívia emitiu sua luz esverdeada de forma que nunca emitira antes. Distraiu-se, então, olhando para sua mão por um momento antes de arregalar os olhos para a imagem à sua frente.Era uma nave espacial tão grande, maior do que qualquer coisa que ela já tivera visto e estava bem à sua frente. O pânico, inserido tão profunda e intimamente nela desde àquela tarde em que Ric fora tomado na sua presença, a fez recuar instintivamente até a parede mais próxima.— Está tudo bem? – Jerrade perguntou, estranhando sua fraqueza tão evidente, quando a garota mal demonstrava satisfação.Lívia não dignou-se a responder, continuando a encarar a grande nave espacial com os olhos arregalados. A nave estava pairando em meio ao nada, mas, em uma manobra, giro
A imagem de Globo do Mar foi se afastando, subindo até que Lívia pudesse ver toda a extensão de Esmeralda, o que a fez arregalar os olhos. Nunca em sua vida ela pensara que a floresta pudesse ser tão grande.Ela começava em um estreito, quase no limite com o Norte destruído e descia, abrindo-se em todo o continente, indo até o Sul, onde ela tinha uma versão mais espaçada, mas, ainda assim, ela estava lá. De Norte a Sul, de Leste a Oeste. Esmeralda dominava todo o espaço, tirando pelos pequenos campados e os desmatados para construção das centenas de vilas.“Esmeralda é o que restou de nossa Fauna e Flora, o sobrevivente de tudo que tínhamos, mesmo antes da Grande Guerra. Ela é nosso suspiro de alívio e a nossa melhor amiga na batalha contra todas as adversidades. Nossa função é protegê-la de tudo e de todos que querem-l
Lívia lançou um último olhar a Jerrade, balançando a cabeça em despedida. O rapaz sorriu-lhe e ela conseguiu olhá-lo com descaso, no momento. Assim que a diretora se livrasse dela, iria atacar o rapaz. Isso a enojava.— Boa sorte, soldado Esterfonte – ele disse. – Espero que nos encontremos em breve.Ela concordou com a cabeça, seguindo a diretora para fora da saleta, sem pronunciar uma palavra. Lívia era, de todo, uma pessoa corajosa e forte, mas durante toda a sua vida, ela sabia o que esperar e o que fazer. Se bombas caiam, corria pro proteção e ajudava se alguém precisasse de ajuda para se salvar; se tinha um teste para fazer, dava o melhor de si, sabendo que teria assistência para se curar, caso se machucasse.Aquilo seria diferente. E, mesmo com pavor de admitir para si mesma, estava assustada. Tão aterrorizada que não pudesse conseguir fazer
Lívia aterrissou em um campo do lado de fora das cercas e levantou o olhar a tempo de ver a fina caixa que havia lhe expulsado do centro de treinamento retroceder até voltar a fazer parte da construção.O Sol já tinha chegado ao alto quando Lívia olhou ao redor e percebeu que estava bastante distante das cercas de proteção. Seu medo, criado após o sumiço de Henrique, voltou com força total e ela sentiu sua respiração ficar falhada ao ponto de precisar ajoelhar-se sobre a grama para tentar se controlar.Levada ao esgotamento físico e emocional, deixou lágrimas de medo e saudade escaparem.Medo que não encontrasse Denis, mesmo se chegasse em Globo do mar.Ali, no campo além das cercas, ninguém poderia vê-la sair de sua carapaça dura e inquebrável. Ali, ela era a garotinha assustada que sempre precisara de prote&cc
Lívia não sabia desde quando a pele humana tinha começado a brilhar - certamente tinha acontecido gerações após a saída dos abrigos em resultado às sucedidas adaptações de sua espécie à radiotividade mortal da atmosfera.Ela também sabia que nem a desintoxicação conseguia limpar aquela característica por completo, mantendo um brilho fraco e discreto até o resto da vida.Todos os habitantes da Terra emitiam brilhos esverdeados, mais fracos ou mais fortes.Aquele garoto não tinha nenhum.Aquele garoto de pele negra, ombros largos e corpo esguio e forte, caminhando de um lado para o outro, era um ponto opaco diante da noite verde.Seus dentes trincaram com a mais óbvia explicação para aquilo: ele não era um habitante da Terra.Não era uma explicação comum; L&
— Vamos acampar – Lívia disse, sem cerimônia alguma.Ela se levantou em um pulo, mas o rapaz continuou impassível a observá-la, indeciso entre a admiração e o espanto. Liv começou a descer a colina sozinha, sem esperá-lo, mas um olhar ameaçador em sua direção foi o suficiente para que o garoto começasse a se mover.Alcançou-a quase tropeçando em seus próprios pés quando o declínio se encerrou. Parou ao lado dela, tentando lançar-lhe um sorriso encantador.— Meu nome é Jefferson. Tony Jefferson. Ou Jeff. Sou da vila 377... – E continuou, com uma voz grossa como se estivesse anunciando:. – Estruturada para o futuro.Jeff riu sozinho de sua própria piada enquanto Liv o encarava, sem entender aonde estava a graça. Quando percebeu que estava rindo sozinho, Jeff limpou a garganta
Jefferson pôs-se de pé rápido demais para quem estava com a perna machucada e tomou uma posição defensiva, mas sem saber de onde viria ameaça.A rapidez e a destreza da sua movimentação fez Lívia entender como ele tinha sido o melhor de sua série.Em pânico e com alguém já tomando a dianteira da situação, ela engatinhou até estar protegida pela árvore e se escondeu, ocultando o seu brilho fantasmagórico com o da planta. Jefferson, ao entender sua ideia, saiu da posição exposta e encolheu-se ao lado dela.O barulho da nave ficou ainda maior e entrou no campo de visão deles, pairando logo acima de onde estavam anteriormente, como se os tivessem procurando.Lívia começou a tremer descontroladamente, certa de que aquilo era culpa do filete fino de fumaça que subia de um galho
Jefferson estava alerta – e ficara assim a noite inteira. Quando a manhã pareceu que ia dar o ar de suas graças e as luzes da radioatividade começaram a ficar mais fracas com a claridade do céu, percebeu na hora que as pálpebras da garota estavam em movimento.Ela dormira razoavelmente bem para uma primeira noite no lugar que mais a assombrava no mundo. Sonhara, inclusive. Embora assustada, a presença de Jefferson estava a tranquilizando um pouco. Por isso, deixara-se ter algum momento de paz.Não que ela fosse admitir.De alguma forma, sabia que Jefferson a estava encarando e abriu os olhos para confirmar. O garoto apenas sorriu por ser pego em sua pequena travessura e Lívia cerrou os olhos em sua direção para exemplificar seu desagrado.— Boa manhã – murmurou, olhando para o céu por uma pequena fresta entre a copa das árvores. – Bela