O doutor Túlio Bevenuto ajeitou os óculos sem aro e olhou novamente os exames que tinha na mão. Dificilmente ele encarava o seu interlocutor, principalmente na hora de dar um diagnóstico. Remexeu-se inquieto na cadeira, espantou uma possível mosca de cima do telefone, olhou demoradamente para a estante de livros na parede, deu umas pancadinhas no relógio de pulso...
Ele era um homem já entrando na terceira idade, calvo no topo da cabeça e com os cabelos das têmporas e da nuca, os únicos que lhe restavam, grisalhos. Tinha uma reputação excelente como cardiologista e era complicado conseguir uma vaga para ser atendido em seu consultório particular.
Depois de todos os rodeios ― olhou a mobília, cruzou os braços, consultou a folhinha... ― voltou os olhos para o paciente que estava sentado à sua frente e, muito sem jeito examinando a ficha que estava em suas mãos, disse:
― Muito bem, senhor Domingos Martino Benevides, lamento informar, mas seu estado é um pouco mais grave do que a média. Aliás, muito grave. Tenho anos de profissão e posso reconhecer quando um caso é realmente grave...
O doutor Túlio também era econômico nas palavras.
― Doutor, diga-me, exatamente, o que eu tenho ― cortou Domingos. ― Sou suficientemente equilibrado para absorver qualquer diagnóstico.
O médico explicou, sem se sentir à vontade:
― Pois bem! O senhor tem uma cardiomiopatia hipertrófica, ou seja, trocando em miúdos, um aumento anormal no tamanho do coração. A hipertrofia cardíaca é considerada um processo adaptativo do miocárdio a sobrecargas hemodinâmicas crônicas. O senhor pode ter feito esforços muito grandes... Halterofilismo talvez... ou musculação... ou, ainda, outros exercícios que exijam despender muita força... não há nenhum sinal de ocorrência do mal de Chagas... pode parecer um paradoxo, mas a hipertrofia miocárdica, independentemente de sua causa, está associada a uma grande mortalidade dos seus portadores! No seu caso, seus músculos cardíacos perderam capacidade causando arritmia e, por qualquer sobrecarga, o coração pode parar em colapso e ocorrer o óbito... poderíamos usar um marca-passo ― resmungou o médico falando mais a si mesmo do que para o cliente ―, mas no momento precisamos avaliar melhor esta possibilidade. Pelos exames preliminares, não recomendaria. Acho que não seria eficaz. Mas, voltando ao seu caso...
Olhou para Domingos e completou balançando a cabeça:
― Eu não poderia afirmar com precisão se o senhor terá um ano ou um minuto de vida... esse é o x da questão.
O médico tirou os óculos e começou a limpar as lentes com um lenço de papel. Em seguida, enxugou a testa, onde gotículas de suor se formavam desde a calva. Então falou com voz sumida e olhando para baixo:
― Para falar a verdade, no seu caso temos duas opções: a primeira, aguardar um doador e realizar um transplante...
Longa pausa. Depois de algum tempo Domingos perguntou:
― E a segunda opção?
O doutor Túlio deu um sorriso amarelo, totalmente sem graça e respondeu:
― A segunda opção é rezar para que a primeira dê certo...
O doutor Túlio permaneceu com os olhos abaixados; não se atrevia a encarar o seu paciente. Era cardiologista já há décadas, mas não se acostumava com as notícias ruins. Sem olhar nos olhos de Domingos, entregou uma receita com a prescrição de vários remédios e o número de seu telefone celular.
― Tome estes remédios conforme as instruções que coloquei aí ― explicou mostrando a receita. ― O sublingual é de uso diário obrigatório... use-o, também, se algo desagradável acontecer. Ele poderá salvar a sua vida! Não deixe de me telefonar se sentir qualquer coisa estranha, dor no peito, nas costas, cansaço ou falta de ar brusca. Volte na semana que vem para pensarmos no marca-passo ou tentarmos colocá-lo na lista de espera do transplante. Diga à minha atendente que eu pedi para ela marcar um horário na próxima quinta-feira. Vai dar tudo certo, pode crer...
Domingos saiu do consultório sem marcar a nova consulta. Sentia instintivamente que suas chances eram poucas. Em vez de ir para casa, resolveu sentar-se um pouco em alguma praça para pôr em ordem seus pensamentos. Dirigiu seu carro até encontrar uma pracinha no mesmo bairro em que morava... Ficava perto do mar e era bastante calma, principalmente naquela hora matinal; deviam ser umas nove e meia. O céu estava azul e não fazia muito calor. Mas Domingos nem percebia estas mensagens de beleza que o dia lhe enviava, absorto que estava em seus pensamentos.
Apesar da notícia da cardiomiopatia grave da qual era portador, não estava triste, desesperado ou chateado. Poderia não ter muito tempo de vida, mas esse fato não o aborrecia. Pelo contrário!
Desde que sua mulher e sua filha faleceram no acidente, ele não conseguia viver tranquilo. O sentimento de culpa lhe trazia um estúpido remorso que lhe corroía as entranhas. A cena do carro deslizando na pista e indo se espatifar no poste vinha em repentes alucinatórios. Recordava-se de que conseguira sair do carro com dificuldades. Depois, o esforço hercúleo tentando levantar e afastar as ferragens para retirar Lúcia e Raquel, esforço baldo de esperanças e sem qualquer eficácia. Pura fraqueza humana! Só a força não resolveu onde eram requeridas ferramentas especializadas.
Com o empenho heroico e a energia que precisou despender para liberar as duas, o coração parecia querer saltar-lhe pela boca. A explosão que se seguiu lançou-o a metros de distância. O desespero e a impotência tomaram conta dele ao ver seus entes queridos se consumindo nas chamas. Logo após veio o vazio...
Acordou no hospital sem qualquer lembrança do ocorrido. Muitas vezes, o organismo se defende com o esquecimento. A narração repetida dos parentes e amigos passou a formar uma imagem que vinha à sua lembrança em jatos inconstantes. Finalmente, depois de muitos meses, o quadro da tragédia se completou na mente. E aí foi horrível! Lembrou-se de que estava em uma velocidade acima da margem de segurança...
Voltavam de uma reunião na casa de amigos e ele havia ingerido uma ou duas doses de vinho. Domingos não era habituado à bebida, e a quantidade lhe deu sono. Mesmo assim resolveu levar o carro. Poderia ter dado a direção para Lúcia, mas insistiu!... Segundo a pouca lembrança que tinha, achava que havia dormido na direção. Ao acordar assustado, freou bruscamente; foi o suficiente para o carro derrapar na fina garoa e perder o controle da direção, indo se chocar com o poste em alta velocidade.
Bateu forte com o lado direito do veículo, justamente onde se encontravam a mulher e a filha, que ficaram presas às ferragens. Havia grande vazamento de combustível e ninguém sabe como começou o fogo! O carro incendiou-se e tudo acabou. Agora Domingos dava-se conta: não fora apenas a mulher e a filha que tinham morrido no acidente; ele também morrera.
Pensou no diagnóstico do doutor Túlio e quase sorriu. Era a solução que esperava há três anos. Por questões ideológicas, era contrário ao suicídio, mas agora parece que Deus tivera compaixão dele e iria lhe abreviar os dias. Abaixou os olhos para o próprio peito e dando alguns tapinhas no coração falou baixinho: “E aí, amigão? Conto com você para não me deixar na mão...”
Voltando às suas recordações mórbidas, deixou o pensamento conduzi-lo a seu bel-prazer. Ah, como doeu! Sentiu vontade, muitas vezes, de se entregar à bebida! Só não o fez porque quando bebia entrava em depressão e piorava, e além de sentir-se mal, sofria em dobro toda a angústia passada.
Quando começou a ficar tonto e com falta de ar ao subir uma escada ou ao praticar algum esforço, chegou a pensar que também tivera alguma sequela com o acidente. E, de certa forma, sentiu-se feliz! Era a compensação subconsciente do remorso.
Ele não gostava da ideia de ter escapado ileso. A terrível força que fizera tentando levantar as ferragens deixara como consequência uma dor aguda no peito. Talvez sua cardiopatia viesse desse esforço sobre-humano.
Certa vez, desmaiou na rua e levaram-no ao pronto-socorro: o médico que o atendeu aconselhou-o a procurar um especialista em doenças do coração. Somente depois de muita insistência do irmão e da cunhada é que marcou consulta com o doutor Túlio, um cardiologista conceituado.
Realizou todos os exames; submeteu-se à tomografia, radiografia, eco cardiograma, eletro, exame de esforço... e o diagnóstico estava ali: uma doença cardíaca grave!
Quieto, com os olhos fixos em lugar nenhum, caiu em cisma e relembrou a trajetória de sua vida. Voltou à infância! Foi lá, naquele escaninho do passado onde tudo começou. Ele e o irmão inventavam estórias; Domingos criava os textos e Fabiano, o irmão mais novo que possuía uma habilidade fantástica para o desenho, criava os quadrinhos para ilustrá-los. Eram estórias infantis, agradáveis e diversas; muita imaginação! Dezenas de personagens, alguns bem complexos, como o tal doutor Estrogônio e sua arquirrival Odessa. Um cientista que vivia sendo perseguido por uma espiã, agente secreta de um governo do mal.
Um sorriso iluminou seu rosto, embora os traços da alma continuassem crispados pela dor íntima que lhe corroía as entranhas. Era-lhe agradável recordar os momentos escondidos bem no fundinho da memória. E afogando um pouquinho a mágoa de seu desespero, conduziu o pensamento para momentos felizes de antanho. Pelos seus olhos, como num filme, as cenas da infância e da adolescência. Escreveram muitas historietas sobre os colegas do bairro e do colégio, fizeram charges, criaram personagens, pintaram letreiros e fachadas de casas comerciais. Até que começaram a aparecer alguns trabalhos profissionais um pouco maiores.
Com inúmeros sacrifícios, conseguiram montar um ateliê de arte e propaganda, uma lojinha que dava suporte a pequenos comerciantes do próprio bairro. Um arcabouço, um embrião, um croqui da futura agência de publicidade.
A primeira conta de porte veio através de um grupo estrangeiro que queria lançar um produto novo no mercado. Sucesso! A partir daí vieram outros bons clientes e a sociedade transformou-se em uma forte e próspera agência: a “DF Propaganda & Marketing”. Agora, vinte anos depois, ocupava todo o andar em um atraente edifício do centro; era uma empresa consolidada no mercado e possuía uma boa carteira de clientes, e se não eram os maiores, também não eram os menores, e apresentavam trabalhos interessantes que lhes rendia um bom lucro e novos clientes interessados.
O casamento com Lúcia foi o grande acontecimento de sua vida. Ela era estudante de jornalismo, jovem, loira, bonita, talentosa. E ele um trintão e elegante sócio de uma agência de publicidade que aos poucos ia se tornando famosa, louco para encontrar uma costela onde se encostar.
Ela foi estagiar na empresa e o inevitável aconteceu: acabaram se apaixonando! Daí para o casamento foi um pulo. Antes de completarem dois anos de casados, nascia Raquel. Grande felicidade!
Mas ela só durou oito anos! Por que era tão efêmera essa tal felicidade? Durante oito anos ele vivera no céu. E agora já habitava o inferno há três. Quanto mais teria que esperar para se encontrar com as duas? Pensando nisso, deixou rolar para chão da praça algumas lágrimas teimosas que caíram de seus olhos verdes.
Aos quarenta e dois anos, Domingos era um homem financeiramente estável, mas dilacerado pela fatalidade que acontecera em sua vida. Não conseguia superar a sua dor. Isso acontece com muita gente que vive intensamente seus sentimentos e paixões. Domingos não deixava nenhum espaço, qualquer saída para outros sentimentos. Era, certamente, um homem extremamente possessivo. E as pessoas que possuem esse perfil, quando se veem privadas dos objetos de sua posse, sofrem muito, embora esses objetos sejam outros seres humanos.
Já de algum tempo ele vinha se afastando da empresa, onde o irmão assumia a direção. A “DF Propaganda & Marketing” possuía vários profissionais em diversos departamentos e, atualmente, sua presença não era mais imprescindível para o negócio, mas Fabiano, que adorava o irmão, se preocupava, e muito, com o alheamento cada vez maior de Domingos.
Fabiano era o homem forte do negócio. Sua habilidade com os esboços se transferiu para a capacidade de gerir a empresa; a mente criativa e versátil com que Deus lhe dotara era fundamental para o sucesso. Na sua mão, a DF crescia e se desenvolvia.
Domingos deixou a brisa que vinha do mar refrescar seu rosto. Estavam a dois quarteirões da praia e a aragem fresca era agradável. Resolveu que não contaria sobre seu estado de saúde a ninguém e nem entraria na fila do transplante; deixaria que a natureza se encarregasse de tudo por si mesma.
Ali, sentado no banco, decidiu que o melhor que poderia fazer era ir para uma pequena cidade do interior; não sabia qual... Uma cidade qualquer decidida na sorte, onde não conhecesse ninguém, onde seu paradeiro fosse desconhecido e pudesse terminar seus dias com tranquilidade e paz, requisitos que julgava necessários em seu retiro voluntário. Afinal, a não ser o irmão, a cunhada e os sobrinhos, não possuía mais ninguém na vida! Os pais estavam mortos. Lúcia e Raquel... novamente o pensamento nas duas. Procurou afastá-lo, mas era muito difícil consegui-lo.
Domingos, no seu desespero, se tornava egoísta. Não pensava na dor de ninguém; só na sua. E a sua, na concepção doente de seu ego, era muito maior do que a de qualquer outro mortal e sequer passava por sua cabeça, naquele momento, ter consideração por alguém. Não que ele fosse mau ou não tivesse sentimentos pela humanidade, mas, como muita gente que passa por um momento doloroso, ele enxergava, apenas, o seu sofrimento. Egocentrismo exacerbado de quem só tem um horizonte pela frente: o seu.
Pediria ao irmão umas férias. Já não ia mesmo com regularidade ao trabalho... Fabiano não lhe negaria isso, sabendo o que ainda lhe ia à alma. Dinheiro não era problema, pois tinha uma boa poupança à sua disposição e não precisava de muito para satisfazer suas necessidades pessoais. Aliás, esperava que fosse por pouco tempo, acreditando que, pelo diagnóstico do doutor Túlio, a qualquer momento se libertaria da carcaça física, o que para ele era indiferente. Não queria precipitar os acontecimentos: que viessem no tempo certo!
Foi até a banca de jornal da esquina e comprou um guia rodoviário de viagens. Voltando ao banco da praça, pegou o livro, firmou seu pensamento e com os olhos fechados abriu a esmo e colocou o dedo indicador sobre a página aberta. Olhou onde o dedo estava pousado: era o mapa do estado de Minas Gerais e seu dedo repousava sobre uma cidade bem pequenina. Apenas uma manchinha pouco maior do que um cocozinho de mosca: São João Batista do Glória. Nunca havia ouvido falar dela, mas agora, olhando para aquele pontinho do mapa, acreditava que era ali que iria cumprir o seu destino.
Em casa, Domingos procurou conhecer o lugar para onde a sorte lhe apontava. No computador, iniciou uma pesquisa na rede para tomar conhecimento de seu futuro domicílio: conseguiu estabelecer que a cidade de São João Batista do Glória foi emancipada em 1949, no dia primeiro de janeiro, tem uma população de, mais ou menos, sete mil habitantes, e, portanto, é uma cidade pequena.Chega-se até lá ou de balsa atravessando o Rio Grande, em Passos, ou de carro por uma estradinha de terra que se entronca com a rodovia que vem de Belo Horizonte, passando por Formiga e Piumhi em direção ao estado de São Paulo.Pela dificuldade para aportar no município, pode-se esperar que seja um cantinho calmo e sereno. A principal atividade é o turismo. Situa-se na região da Serra da Canastra, que ostenta em seu território inúmeras cachoeiras. Segundo as fontes, mais de
Frederico Adler estacionou o jipe em frente à Pousada do Monjolo. Saltou lentamente do veículo, reclamando das dores nas juntas, efeito natural daqueles que chegam aos sessenta e cinco anos sem se preocuparem muito com exercícios físicos regulares.Frederico era de estatura mediana, um metro e setenta e cinco centímetros mais ou menos, um pouco corpulento sem chegar a ser gordo, mas com uma barriguinha instalada e tomando forma. Tinha os cabelos cheios e lisos, penteados para trás e grisalhos; a barba é que já estava completamente branca. Ele a exibia orgulhoso emoldurando o rosto crestado pelo sol e pela vida ao ar livre. Frederico detestava se barbear e por isso a solução encontrada foi deixar a barba crescer. Seus cabelos também só eram cortados a cada seis meses, mas isso não era desleixo: era um costume que acompanhava o velho há muitos anos e do qual ele se agradava.
A caminhonete cinza cabine dupla de Domingos entrou em São João Batista do Glória pela rua principal, coberta de poeira, mostrando a viagem longa que fizera e o trecho de terra percorrido. Era pouco mais de onze horas da manhã; o dia seguia ensolarado e a temperatura amena típica do final de maio. Nessa época, os dias são frescos e secos em sua maioria e as noites frias.Domingos estacionou na praça procurando um lugar para almoçar. Da rua se avistava a igreja monumental ao fundo. Era a matriz. Igreja grande, debruada de relevos rosados, ostentando duas torres majestosas. Dizem que os construtores das igrejas do período barroco, principalmente no interior de Minas, contratados pelas paróquias, cobravam um sinal e construíam, em primeiro lugar, uma das torres. Caso não recebessem o restante do pagamento, iam embora deixando a obra com apenas uma torre construída. Caso lhes pagasse
Domingos dormiu até as cinco e meia da tarde. Levantou-se e tomou uma boa chuveirada. A ducha era forte e ele deixou a água escorrer pelo corpo, esfregando-se todo com uma esponja um pouco áspera que sempre trazia consigo em viagens. Aquilo reativou sua circulação fazendo-o sentir-se mais revigorado e bem-disposto.Domingos era um homem bem-apessoado. Quarentão, com um metro e oitenta de altura, cabelos castanhos fartos com alguns fios prateados aparecendo nas têmporas, barba escanhoada e olhos meio esverdeados. Antes do acidente, era um homem que podia se considerar bonito e até vaidoso, pois se preocupava bastante com a aparência; praticava regularmente exercícios, jogando tênis pelo menos uma ou duas vezes por semana no clube do qual era associado. Depois do acidente, caíra em uma apatia mórbida, mas a aparência continuava a mostrar um homem atraente, embora sem o mesmo esmero de
No dia seguinte, encontraram-se no salão do café às seis e meia. Tomaram um substancial desjejum e se dirigiram ao veículo do médico para iniciar a viagem. Eva preparou um farnel com sanduíches, pão de queijo e doces para eles levarem. Às sete horas saíram.O médico foi conduzindo o jipe por estradinhas vicinais de terra, em alguns momentos verdadeiros “caminhos de vaca”, com “mata-burros”, buracos e valetas onde era necessário colocar a tração nas quatro rodas para poder seguir viagem. Antes das oito chegaram ao sítio do Fagundes, o primeiro da lista de visitas; e o sitiante veio, célere, receber o médico. Estava aflito e abalado.― Inda bem que o dotô chegô ― disse ele. ― O Fredim, seu afilhado ― o menino se chamava Frederico em homenagem ao médico que o colocara no mundo ―, desde onti
Eva sentou-se na varanda para aproveitar o vento fresco que soprava naquela bonita tarde de domingo. Não havia muito movimento na pousada e a jovem deixou-se ficar ali quietinha, enquanto seus pensamentos percorriam rapidamente vários escaninhos de sua vida. Parou em um deles, o que menos gostava, por sinal. A lembrança recaiu justamente no período conturbado de sua relação com Afonso. Embora não se agradasse dessas recordações mórbidas, vira e mexe era conduzida a elas.Não demorou muito viu o jipe de Frederico chegar; Domingos saltou do carro e, entrando rapidamente na pousada, foi diretamente para o quarto.Da boleia, o médico enxergou Eva e acenou para ela. Eva retribuiu o aceno movimentando os dedos da mão direita sem tirar ambas do queixo; os cotovelos apoiados nas coxas. Frederico, não pode deixar de ver a tristeza no semblante da moça e por isso saltou do ji
O mês de junho chegou!Junho é o mês das festas gostosas, do milho, da canjica, das quadrilhas e das roupagens típicas, com os remendos característicos para representar a caipirada. Mês das quermesses na praça da matriz. Mês das barraquinhas graciosas enfeitadas com bandeirolas multicoloridas; das guloseimas, gostosuras e jogos de prendas; das fogueiras e fogos de artifício; das barulhentas bombinhas e traques de que a meninada tanto gosta...Ali, nas aguardadas festas, encontramos pipoca, maçã do amor, algodão doce, comidinhas típicas e, também como não poderia faltar, o tradicional quentão, preparado com uma cachacinha artesanal dos alambiques do Glória, gengibre e canela, fervido no tacho de cobre e capaz de derrubar muito machão metido a besta.A cidade estava fervilhando com os preparativos dos festejos e todos falavam e comentavam o eve
Eva trouxe Vicente até a varandinha e, com carinho, instalou-o em uma das poltronas de vime que compunham o mobiliário. Cobriu as pernas do avô com uma manta, pois a manhã estava fria, e colocou algumas revistas em suas mãos. Depois foi à cozinha e voltou de lá com uma xícara fumegante:― Um caldinho de feijão light para o melhor avô do mundo! ― Vicente gostava desse caldinho quente e reconfortante.Frederico vinha saindo do salão de refeições. Acabara de tomar o desjejum e vendo o velho amigo na varanda veio sentar-se ao seu lado. O médico abraçou o ancião. Vicente fora o seu grande confidente quando chegara ao Glória e ele amava o velho como se fosse seu próprio pai. Vicente, com um sorrisinho no canto dos lábios, falou:― Já estava com saudades de você, Fred. Mas que diabo está acontecendo que vo