A caminhonete cinza cabine dupla de Domingos entrou em São João Batista do Glória pela rua principal, coberta de poeira, mostrando a viagem longa que fizera e o trecho de terra percorrido. Era pouco mais de onze horas da manhã; o dia seguia ensolarado e a temperatura amena típica do final de maio. Nessa época, os dias são frescos e secos em sua maioria e as noites frias.
Domingos estacionou na praça procurando um lugar para almoçar. Da rua se avistava a igreja monumental ao fundo. Era a matriz. Igreja grande, debruada de relevos rosados, ostentando duas torres majestosas. Dizem que os construtores das igrejas do período barroco, principalmente no interior de Minas, contratados pelas paróquias, cobravam um sinal e construíam, em primeiro lugar, uma das torres. Caso não recebessem o restante do pagamento, iam embora deixando a obra com apenas uma torre construída. Caso lhes pagassem o devido, construíam a outra. Por isso é que inúmeras cidades possuem igrejas com apenas uma torre.
A matriz de São João Batista do Glória tem duas torres imponentes e encimadas cada uma por uma cruz, símbolo que também se vê no topo da abóbada principal que compõe o domo do edifício. Também não é tão antiga: sua construção foi concluída em 1957.
A praça em frente é bonita, com bancos de cimento acompanhando o desenho dos jardins. A porta de entrada da igreja é um arco e fica protegida por um alpendre também em arco. Duas janelas, no segundo andar, acompanham o estilo da porta de entrada; a partir dali erguem-se as duas torres, plenas de janelinhas, desde baixo até em cima.
As ruas centrais da cidade são pavimentadas com lajotas de concreto sextavadas, conforme se vê em várias cidades interioranas de Minas Gerais, um calçamento bem mais barato, bonito e prático do que os irregulares paralelepípedos que se usavam no passado.
Naquele sábado, as ruas estavam calmas e sem muito movimento. Domingos relanceou a vista à procura de um restaurante. Encontrou um: “Cantina Mineira” ― Comida Típica!
Entrou, sentou-se e almoçou um excelente tutu com torresmo, carne de porco, couve à mineira e farinha de milho torrada. Não estava preocupado com regimes, colesterol ou outras firulas. A sobremesa foi o tradicional “Romeu e Julieta” com um ótimo queijo de meia cura, especialidade da Canastra.
Depois de pagar a conta, perguntou ao garçom:
― Amigo você conhece uma pousada boa, familiar, onde a gente possa ficar tranquilo para descansar?
O garçom respondeu com o sotaque típico da região:
― Ocê segue a rua, dispois da igreja ocê entra... aí tem um caminhozim que vai dar numa pousada. Lá também tem uma comidim boa mesmo; nossssa! Ô trem bão, sô! É tudo bem bunitim, bobo! Vai direto que num trapaia de chegá lá não!
Domingos fingiu que entendeu tudo e agradeceu: precisaria fazer um curso intensivo de adaptação ao mineirês! Mas como era, acima de tudo, um publicitário de convicções arraigadas, o jeito meio caipira do povo falar agradou-o muitíssimo. Era um linguajar poético, típico e cheio de maneirismos e trejeitos próprios a toda uma cultura, um verdadeiro ícone ao regionalismo de um povo. Que o diga Guimarães Rosa!
Seguindo as instruções do garçom, Domingos foi bater direto na Pousada do Monjolo. Estacionou a pick-up no telheirinho e subiu devagar os degraus que o levaram à recepção admirando muito o bom gosto do jardinzinho onde as rosas pareciam florir o ano todo.
― Boa tarde ― disse sorridente cumprimentado Eva. ―Tem um quarto vago para um viajante cansado?
― Sim, temos quartos vagos ― respondeu a moça. ― O senhor pretende se demorar? Veio a turismo ou a negócios?
― Nem uma coisa nem outra ― respondeu Domingos. ― Na verdade, vim para descansar, e se gostar da cidade pretendo viver aqui por algum tempo!
Intimamente Domingos deu uma gargalhada: “Viver”, refletiu amargamente no diagnóstico do doutor Túlio. “Gostaria de morrer aqui”, pensou. “E quanto mais cedo melhor.”
Preencheu automaticamente a ficha que Eva lhe estendia. Colocou apenas sua origem sem o endereço. Pegou a chave: Quarto nove.
“Bom número... Pelo menos não é o treze”, ponderou.
Eva chamou um rapazinho fardado de porteiro que lhe ajudava:
― Gumercindo, leve as malas do senhor... Domingos― disse olhando a ficha para confirmar o nome. ― Quarto nove ― e virando-se para Domingos prosseguiu: ― Se o senhor precisar de algo, peça pelo interfone. É só tirar do gancho. Temos banho quente e frigobar. O controle da TV está em cima da mesa de cabeceira e o jantar começa a partir das seis até as nove. Se preferir que seja servido no quarto é só pedir pelo interfone. Também servimos café, chá e torradas, o cardápio está à disposição no quarto. O café da manhã é das seis e meia às nove. Está incluído na diária. Existem algumas excursões com guias que passam por aqui. Os roteiros estão ali ― apontou para uns prospectos em uma cesta ―, as inscrições também são feitas aqui na portaria. Posso ajudá-lo em mais alguma coisa?
― Ufa! Por enquanto não, muito obrigado ― disse Domingos sorrindo ―, a senhora é muito simpática... ― completou olhando admirado a bela jovem.
Eva não se fez de rogada; caprichando no seu melhor sorriso, aquele mais encantador emoldurado pelas lindas covinhas, agradeceu:
― Muito obrigada, senhor Domingos! Espero que sua estada entre nós seja prazerosa e duradoura. Aqui o senhor encontrará muitas coisas bonitas para preencher o seu tempo e seu espírito. Boa Tarde!
Domingos despediu-se e caminhou para o quarto. “Pois bem”, pensou, “não sei se encontrarei algo tão bonito como você, menina! De qualquer forma estou gostando muito desse lugar... um garçom atencioso... uma atendente bonita... salve, salve São João Batista do Glória! Pena que vim aqui para morrer!”.
Ao raciocinar assim, caiu novamente em cismas relembrando a família que perdera no acidente.
Domingos dormiu até as cinco e meia da tarde. Levantou-se e tomou uma boa chuveirada. A ducha era forte e ele deixou a água escorrer pelo corpo, esfregando-se todo com uma esponja um pouco áspera que sempre trazia consigo em viagens. Aquilo reativou sua circulação fazendo-o sentir-se mais revigorado e bem-disposto.Domingos era um homem bem-apessoado. Quarentão, com um metro e oitenta de altura, cabelos castanhos fartos com alguns fios prateados aparecendo nas têmporas, barba escanhoada e olhos meio esverdeados. Antes do acidente, era um homem que podia se considerar bonito e até vaidoso, pois se preocupava bastante com a aparência; praticava regularmente exercícios, jogando tênis pelo menos uma ou duas vezes por semana no clube do qual era associado. Depois do acidente, caíra em uma apatia mórbida, mas a aparência continuava a mostrar um homem atraente, embora sem o mesmo esmero de
No dia seguinte, encontraram-se no salão do café às seis e meia. Tomaram um substancial desjejum e se dirigiram ao veículo do médico para iniciar a viagem. Eva preparou um farnel com sanduíches, pão de queijo e doces para eles levarem. Às sete horas saíram.O médico foi conduzindo o jipe por estradinhas vicinais de terra, em alguns momentos verdadeiros “caminhos de vaca”, com “mata-burros”, buracos e valetas onde era necessário colocar a tração nas quatro rodas para poder seguir viagem. Antes das oito chegaram ao sítio do Fagundes, o primeiro da lista de visitas; e o sitiante veio, célere, receber o médico. Estava aflito e abalado.― Inda bem que o dotô chegô ― disse ele. ― O Fredim, seu afilhado ― o menino se chamava Frederico em homenagem ao médico que o colocara no mundo ―, desde onti
Eva sentou-se na varanda para aproveitar o vento fresco que soprava naquela bonita tarde de domingo. Não havia muito movimento na pousada e a jovem deixou-se ficar ali quietinha, enquanto seus pensamentos percorriam rapidamente vários escaninhos de sua vida. Parou em um deles, o que menos gostava, por sinal. A lembrança recaiu justamente no período conturbado de sua relação com Afonso. Embora não se agradasse dessas recordações mórbidas, vira e mexe era conduzida a elas.Não demorou muito viu o jipe de Frederico chegar; Domingos saltou do carro e, entrando rapidamente na pousada, foi diretamente para o quarto.Da boleia, o médico enxergou Eva e acenou para ela. Eva retribuiu o aceno movimentando os dedos da mão direita sem tirar ambas do queixo; os cotovelos apoiados nas coxas. Frederico, não pode deixar de ver a tristeza no semblante da moça e por isso saltou do ji
O mês de junho chegou!Junho é o mês das festas gostosas, do milho, da canjica, das quadrilhas e das roupagens típicas, com os remendos característicos para representar a caipirada. Mês das quermesses na praça da matriz. Mês das barraquinhas graciosas enfeitadas com bandeirolas multicoloridas; das guloseimas, gostosuras e jogos de prendas; das fogueiras e fogos de artifício; das barulhentas bombinhas e traques de que a meninada tanto gosta...Ali, nas aguardadas festas, encontramos pipoca, maçã do amor, algodão doce, comidinhas típicas e, também como não poderia faltar, o tradicional quentão, preparado com uma cachacinha artesanal dos alambiques do Glória, gengibre e canela, fervido no tacho de cobre e capaz de derrubar muito machão metido a besta.A cidade estava fervilhando com os preparativos dos festejos e todos falavam e comentavam o eve
Eva trouxe Vicente até a varandinha e, com carinho, instalou-o em uma das poltronas de vime que compunham o mobiliário. Cobriu as pernas do avô com uma manta, pois a manhã estava fria, e colocou algumas revistas em suas mãos. Depois foi à cozinha e voltou de lá com uma xícara fumegante:― Um caldinho de feijão light para o melhor avô do mundo! ― Vicente gostava desse caldinho quente e reconfortante.Frederico vinha saindo do salão de refeições. Acabara de tomar o desjejum e vendo o velho amigo na varanda veio sentar-se ao seu lado. O médico abraçou o ancião. Vicente fora o seu grande confidente quando chegara ao Glória e ele amava o velho como se fosse seu próprio pai. Vicente, com um sorrisinho no canto dos lábios, falou:― Já estava com saudades de você, Fred. Mas que diabo está acontecendo que vo
Eva deu o último retoque na maquiagem pintando umas sardas na maçã do rosto com o lápis de sobrancelhas; ajeitou a gola do vestido e dirigiu-se ao saguão onde Domingos já estava esperando. Ela estava uma graça em seu traje típico! Um vestido no melhor estilo caipira com uma bela estampa vermelha de flores grandes e pequenas entremeadas de branco, cheio de babadinhos de renda rosa; os belos cabelos castanhos com mechas aloiradas estavam presos em duas “marias-chiquinhas” com laçarotes vermelhos; uma botinha curta de vaqueta estilo peão com salto alto carrapeta completava o traje. Uma caipira muito charmosa.Domingos, quando a viu, não pôde deixar de dar um assovio de admiração, o que deixou Eva ruborizada, mas feliz.Ele também não ficava atrás: jeans de uma grife italiana famosa, pulôver de jackard azul marinho e branco, sa
No sábado seguinte após o jantar, Domingos perguntou a Frederico:― Vai visitar seus clientes amanhã? ― Se precisar de companhia...― Oh, sim! Claro! Podemos sair daqui às sete, como sempre...Os dois haviam adquirido o hábito de jantar juntos e, às vezes, sair juntos. Depois das histórias que Eva contara a respeito do médico, o respeito e a admiração de Domingos aumentaram bastante pelo seu novo amigo. Frederico passou a ser, para o publicitário, uma espécie de cavaleiro andante salvando princesas de ogros e dragões.No dia seguinte, saíram cedo da pousada. Em lugar de seguirem para o interior, Frederico pegou a estradinha em direção à balsa e atravessaram o rio aportando em Passos.Ao chegar à cidade, o médico entrou por diversas ruazinhas em bairros afastados do centro, até parar em uma casinha simpát
Eva explicava a Domingos:― Uma festa que está se tornando cada vez mais tradicional no Glória é a Festa do Peão! O povo prefere chamá-la de rodeio; eu também, pois, afinal de contas, é justamente isso que ela é, na realidade; mas ultimamente também tem exibido uma exposição agropecuária muito interessante. É um evento que surgiu, por volta de 1989, numa quadra que existia perto da Escola Estadual. Os primeiros rodeios ― continuou a jovem ―, eram bastante simples: alguns moradores do Glória juntaram-se a boiadeiros de cidades próximas que traziam as montarias para realizar a competição. Depois a festa passou a ser feita ao lado do campo com o apoio da Prefeitura. Havia um terreno grande que o pessoal cercava com folhas de zinco, taboas e latões, e o rodeio passou a ser realizado ali, geralmente no mês de julho. Esse terreno evoluiu para o Parque