Domingos dormiu até as cinco e meia da tarde. Levantou-se e tomou uma boa chuveirada. A ducha era forte e ele deixou a água escorrer pelo corpo, esfregando-se todo com uma esponja um pouco áspera que sempre trazia consigo em viagens. Aquilo reativou sua circulação fazendo-o sentir-se mais revigorado e bem-disposto.
Domingos era um homem bem-apessoado. Quarentão, com um metro e oitenta de altura, cabelos castanhos fartos com alguns fios prateados aparecendo nas têmporas, barba escanhoada e olhos meio esverdeados. Antes do acidente, era um homem que podia se considerar bonito e até vaidoso, pois se preocupava bastante com a aparência; praticava regularmente exercícios, jogando tênis pelo menos uma ou duas vezes por semana no clube do qual era associado. Depois do acidente, caíra em uma apatia mórbida, mas a aparência continuava a mostrar um homem atraente, embora sem o mesmo esmero de
No dia seguinte, encontraram-se no salão do café às seis e meia. Tomaram um substancial desjejum e se dirigiram ao veículo do médico para iniciar a viagem. Eva preparou um farnel com sanduíches, pão de queijo e doces para eles levarem. Às sete horas saíram.O médico foi conduzindo o jipe por estradinhas vicinais de terra, em alguns momentos verdadeiros “caminhos de vaca”, com “mata-burros”, buracos e valetas onde era necessário colocar a tração nas quatro rodas para poder seguir viagem. Antes das oito chegaram ao sítio do Fagundes, o primeiro da lista de visitas; e o sitiante veio, célere, receber o médico. Estava aflito e abalado.― Inda bem que o dotô chegô ― disse ele. ― O Fredim, seu afilhado ― o menino se chamava Frederico em homenagem ao médico que o colocara no mundo ―, desde onti
Eva sentou-se na varanda para aproveitar o vento fresco que soprava naquela bonita tarde de domingo. Não havia muito movimento na pousada e a jovem deixou-se ficar ali quietinha, enquanto seus pensamentos percorriam rapidamente vários escaninhos de sua vida. Parou em um deles, o que menos gostava, por sinal. A lembrança recaiu justamente no período conturbado de sua relação com Afonso. Embora não se agradasse dessas recordações mórbidas, vira e mexe era conduzida a elas.Não demorou muito viu o jipe de Frederico chegar; Domingos saltou do carro e, entrando rapidamente na pousada, foi diretamente para o quarto.Da boleia, o médico enxergou Eva e acenou para ela. Eva retribuiu o aceno movimentando os dedos da mão direita sem tirar ambas do queixo; os cotovelos apoiados nas coxas. Frederico, não pode deixar de ver a tristeza no semblante da moça e por isso saltou do ji
O mês de junho chegou!Junho é o mês das festas gostosas, do milho, da canjica, das quadrilhas e das roupagens típicas, com os remendos característicos para representar a caipirada. Mês das quermesses na praça da matriz. Mês das barraquinhas graciosas enfeitadas com bandeirolas multicoloridas; das guloseimas, gostosuras e jogos de prendas; das fogueiras e fogos de artifício; das barulhentas bombinhas e traques de que a meninada tanto gosta...Ali, nas aguardadas festas, encontramos pipoca, maçã do amor, algodão doce, comidinhas típicas e, também como não poderia faltar, o tradicional quentão, preparado com uma cachacinha artesanal dos alambiques do Glória, gengibre e canela, fervido no tacho de cobre e capaz de derrubar muito machão metido a besta.A cidade estava fervilhando com os preparativos dos festejos e todos falavam e comentavam o eve
Eva trouxe Vicente até a varandinha e, com carinho, instalou-o em uma das poltronas de vime que compunham o mobiliário. Cobriu as pernas do avô com uma manta, pois a manhã estava fria, e colocou algumas revistas em suas mãos. Depois foi à cozinha e voltou de lá com uma xícara fumegante:― Um caldinho de feijão light para o melhor avô do mundo! ― Vicente gostava desse caldinho quente e reconfortante.Frederico vinha saindo do salão de refeições. Acabara de tomar o desjejum e vendo o velho amigo na varanda veio sentar-se ao seu lado. O médico abraçou o ancião. Vicente fora o seu grande confidente quando chegara ao Glória e ele amava o velho como se fosse seu próprio pai. Vicente, com um sorrisinho no canto dos lábios, falou:― Já estava com saudades de você, Fred. Mas que diabo está acontecendo que vo
Eva deu o último retoque na maquiagem pintando umas sardas na maçã do rosto com o lápis de sobrancelhas; ajeitou a gola do vestido e dirigiu-se ao saguão onde Domingos já estava esperando. Ela estava uma graça em seu traje típico! Um vestido no melhor estilo caipira com uma bela estampa vermelha de flores grandes e pequenas entremeadas de branco, cheio de babadinhos de renda rosa; os belos cabelos castanhos com mechas aloiradas estavam presos em duas “marias-chiquinhas” com laçarotes vermelhos; uma botinha curta de vaqueta estilo peão com salto alto carrapeta completava o traje. Uma caipira muito charmosa.Domingos, quando a viu, não pôde deixar de dar um assovio de admiração, o que deixou Eva ruborizada, mas feliz.Ele também não ficava atrás: jeans de uma grife italiana famosa, pulôver de jackard azul marinho e branco, sa
No sábado seguinte após o jantar, Domingos perguntou a Frederico:― Vai visitar seus clientes amanhã? ― Se precisar de companhia...― Oh, sim! Claro! Podemos sair daqui às sete, como sempre...Os dois haviam adquirido o hábito de jantar juntos e, às vezes, sair juntos. Depois das histórias que Eva contara a respeito do médico, o respeito e a admiração de Domingos aumentaram bastante pelo seu novo amigo. Frederico passou a ser, para o publicitário, uma espécie de cavaleiro andante salvando princesas de ogros e dragões.No dia seguinte, saíram cedo da pousada. Em lugar de seguirem para o interior, Frederico pegou a estradinha em direção à balsa e atravessaram o rio aportando em Passos.Ao chegar à cidade, o médico entrou por diversas ruazinhas em bairros afastados do centro, até parar em uma casinha simpát
Eva explicava a Domingos:― Uma festa que está se tornando cada vez mais tradicional no Glória é a Festa do Peão! O povo prefere chamá-la de rodeio; eu também, pois, afinal de contas, é justamente isso que ela é, na realidade; mas ultimamente também tem exibido uma exposição agropecuária muito interessante. É um evento que surgiu, por volta de 1989, numa quadra que existia perto da Escola Estadual. Os primeiros rodeios ― continuou a jovem ―, eram bastante simples: alguns moradores do Glória juntaram-se a boiadeiros de cidades próximas que traziam as montarias para realizar a competição. Depois a festa passou a ser feita ao lado do campo com o apoio da Prefeitura. Havia um terreno grande que o pessoal cercava com folhas de zinco, taboas e latões, e o rodeio passou a ser realizado ali, geralmente no mês de julho. Esse terreno evoluiu para o Parque
Domingos se viu em cima de um chapadão, na beira de um precipício altíssimo. Sabia que podia voar, mas estava preso ao solo, atado por uma corrente que não deixava que ele saísse do chão. Embaixo se descortinava uma vista linda, um vale verdejante por onde corria um regato, cheio de cascatas que espraiavam suas espumas em um belo lago orlado de pedras.Ele queria saltar para aquela paragem bonita, mas o doutor Túlio vinha com uma serra querendo amputar sua perna para livrá-lo da corrente, e ao mesmo tempo exibia uma muleta dizendo: “Ela é melhor do que a prótese final, pois você tem uma cardiopatia grave!”Nesse momento, Mãe Amélia veio voando pelo penhasco e trazia Lúcia e Raquel pelas mãos. Achegando-se a ele, falou com sua voz desdentada: “Você não teve culpa! Sua vida ainda vai melhorar!”Acordou banhado em suor, embora