II

Em casa, Domingos procurou conhecer o lugar para onde a sorte lhe apontava. No computador, iniciou uma pesquisa na rede para tomar conhecimento de seu futuro domicílio: conseguiu estabelecer que a cidade de São João Batista do Glória foi emancipada em 1949, no dia primeiro de janeiro, tem uma população de, mais ou menos, sete mil habitantes, e, portanto, é uma cidade pequena.

Chega-se até lá ou de balsa atravessando o Rio Grande, em Passos, ou de carro por uma estradinha de terra que se entronca com a rodovia que vem de Belo Horizonte, passando por Formiga e Piumhi em direção ao estado de São Paulo.

 Pela dificuldade para aportar no município, pode-se esperar que seja um cantinho calmo e sereno. A principal atividade é o turismo. Situa-se na região da Serra da Canastra, que ostenta em seu território inúmeras cachoeiras. Segundo as fontes, mais de cem só em São João Batista do Glória. Regatos, ribeiros cristalinos, nascentes importantes como as do rio São Francisco, matas preservadas, flora e fauna específicas, excelente culinária e um fabuloso queijo mineiro, de meia cura, ou então um frescal na medida certa para fazer o delicioso pão de queijo, “especialidade da casa”. Um local ideal para quem procura descanso e lazer, sem o aborrecimento da cidade grande.

 Município relativamente pequeno, com pouco mais de quinhentos quilômetros quadrados, variando sua altitude de quatrocentos e cinquenta a setecentos metros. Temperatura amena, com médias anuais históricas entre dezessete e vinte e cinco graus Celsius.

Além do turismo, a economia divide-se entre a pecuária leiteira e de corte, a agricultura, o fabrico de cachaças artesanais e a cerâmica. Pessoas  simples, humildes e tranquilas; esse é o perfil do povo que habita o local. Fazendas, fazendolas, sítios e chácaras se espalham pela zona rural, contribuindo com sua produção de leite, laticínios, verduras e frutas para o abastecimento da cidade e seus moradores. Tudo isso tornou o local muito atrativo e agradável para Domingos. Pelo menos teoricamente...

A cidade mais próxima de São João Batista do Glória é Passos, a apenas quinze quilômetros. Mas não tem estrada![1] É preciso atravessar o Rio Grande em uma balsa que realiza o trajeto várias vezes por dia. Passos é grande. Com mais de cem mil habitantes, é uma cidade com um comércio forte, largas avenidas e prédios altos. Portanto, São João Batista do Glória é, em suma, um típico arraial do interior mineiro, pequeno e singelo, mas rico em cultura e tradição, com suas festas, seu folclore e sua rusticidade.

No dia seguinte, Domingos foi procurar Fabiano. Chegando à empresa, foi diretamente à sala do irmão, que estava analisando um projeto novo:

― Ora, até que enfim! ― Disse o irmão mais novo. ― Quem é vivo sempre aparece! Venha dar uma olhada neste projeto e dê a sua opinião a respeito...

―Agora não, Fabiano ― respondeu Domingos ―, vim aqui justamente para te pedir um afastamento, umas férias...

Fabiano franziu o cenho e falou:

― Domingos, já está na hora de você deixar o passado e começar a viver o presente. O que passou, passou. Também sofro com o ocorrido, também amava Lúcia e Raquel, e sofro mais ainda com o teu sofrimento! A vida, entretanto, meu irmão, é luta. É guerra! Precisamos de muita força para enfrentá-la. Reage e vem trabalhar comigo.

― Neste momento não posso, Fabiano! Preciso fazer uma viagem... será a última chance que dou a mim mesmo! Talvez, quando eu voltar...

Fabiano perguntou olhando espantado para Domingos:

― Viagem? Para onde você vai? É problema com sua saúde? Você ainda não me contou sobre a sua consulta com o cardiologista...

― Ainda não sei para onde eu vou ― respondeu Domingos desconversando. ― Preciso me encontrar... é a minha derradeira tentativa! Vou para um lugar tranquilo onde possa colocar minhas ideias em ordem. Estou bem, não se preocupe.

― Como “não se preocupe”? ― Fabiano encarou o irmão. ― É claro que me preocupo! Domingos, você é o meu único irmão e eu o amo. Quero vê-lo feliz, participando da vida, com a velha alegria dos nossos tempos de infância. Onde está aquele meu professor, que criava os heróis das nossas historietas? ― Continuou. ― Onde está o amigo que, junto comigo “arregaçou as mangas” para pintar letreiros?

Mas Fabiano, apesar de não concordar com o afastamento de Domingos, não podia negar o pedido do irmão. Aproximou-se e abraçando-o beijou seu rosto, dizendo comovido:

― Vá, meu irmão, e que você possa voltar curado de todos os seus problemas! Ficarei rezando pela sua recuperação!

Domingos também abraçou o irmão com os olhos marejados. Será que o veria novamente? Não queria se emocionar muito, mas foi inevitável!

― Mas que manteiga derretida você está me saindo! ― Exclamou Fabiano. ― Você só vai fazer uma viagem de férias, não vai morrer! Vaso ruim não quebra! E volte curado, pois estou pensando em lançar uma revista em quadrinhos com o professor Estrogônio e preciso do seu texto inigualável... maravilhoso.

Domingos saiu rapidamente; pegando o elevador, desceu ao térreo do edifício onde funcionava a DF e ganhou a rua. Estava em lágrimas! Sentiu um forte aperto no peito e logo a falta de ar e a respiração sibilante tomou conta dele. Com as mãos trêmulas, tomou a medicação sublingual e sentou-se em uma mesa no bar que funcionava em uma loja térrea do prédio. Esperou a respiração arquejante se normalizar.

O Manuel português, dono do estabelecimento, veio solícito:

― Ó, senhoire Domingos, o que se passa com vossa senhoria que está tão pálido?

― Nada! Obrigado, Manuel ― respondeu Domingos. ― Já passou e estou melhor. Apenas uma indisposição.

Retomando o fôlego, Domingos voltou para casa; tratou de providenciar os preparativos para a viagem do seu destino, para onde a sorte lhe apontara. Ainda era uma incógnita, um mistério, mas o ar de aventura que fluía do acontecimento lhe deu novo ânimo, embora, no fundo, sentisse uma pontinha de receio; e sem que percebesse passou o resto do dia sem pensar na mulher e na filha falecidas.

Não precisaria levar muita coisa! Algumas roupas, agasalhos, um suéter ou dois, um pulôver, pois estavam perto do inverno e a região que escolhera era fria, alguns livros preferidos, objetos de uso pessoal, roupa íntima...

Iria de carro, para facilitar sua locomoção, apesar do cansaço a que estaria exposto durante o trajeto. Resolveu sair na sexta de madrugada. Descansaria à noite em Belo Horizonte e chegaria ao sábado na hora do almoço.

[1] Atualmente já foi construída a ponte. Na época em que o livro foi escrito ainda se atravessava de balsa. (Nota do autor).

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