Um raio de sol entrava por uma pequena fresta aberta da janela, a casa de madeira era escura e o cheiro estranho, mas o brilho que entrava potente a encantou. Partículas de poeira dançavam na luz enquanto o corpo de Dállia se movia com o impulso do corpo velho sobre o dela.
Os sons eram estranhos, bizarros, mas ela se focou na luz, no tímido raio solar e na poeira dançante. Já estava acostumada com a dor, a maioria das vezes nem incomodava mais. Foi virada de bruços sobre a mesa, a toalha branca ficou enrolada sob o seu corpo, os movimentos continuaram, firmes, violentos e acompanhados daqueles ruídos animalescos. E foi exatamente nesse minuto que tudo mudou. Quando Dállia foi virada sobre a mesa ela lamentou que não pudesse mais olhar para a luz e foi na escuridão que seus olhos cruzaram com os de Tank pela primeira vez. Ele estava ali, parado, olhando para ela como se visse um animal ser abatido. Uma mistura de desprezo e pena que a fez fechar os olhos, segurou mais firme na borda da mesa o coração acelerou, não por estar ali, aprisionada a um mundo que ela desconhecia, mas pelo que sentiu com a força daqueles olhos. A camisa aberta, uma tatuagem que ela não conseguiu identificar e uma cicatriz que o deixava ainda mais bonito. Abriu os olhos quando o grunhido mais forte soou atrás dela e o peso se afastou. Mas Tank, também já não estava lá. — Guarda as suas coisas e prepara o almoço. Russo ordenou antes que ela conseguisse apoiar o peso do corpo nos próprios braços. Desceu da mesa, retirou a toalha que havia ficado amassada e molhada com os líquidos que saíram dele, levou o tecido até a lavanderia enquanto arrumava a própria roupa no corpo. Estava casada há três horas e uma missão, descobrir onde ficavam as panelas, preparar o almoço perfeito. O marido voltaria com fome e ela conhecia o preço da desobediência. Tinha acabado de ser vendida pelo primeiro marido. Deu risada de si mesma, já estava no segundo casamento. — Devo ser uma péssima esposa. Pensou ironizando a situação, ainda era muito jovem quando foi vendida para o seu pior pesadelo, mas depois dele, vieram outros até que por fim, terminou como objeto de uso particular. Ela gostava disso, ser um objeto de uso particular é muito melhor do que ser oferecida ao coletivo. E isso Dállia podia garantir. Abaixou-se para procurar panelas e sentiu o líquido viscoso escorrer. Aquela era sempre a pior parte. Detestava a sensação. Respirou fundo tentando ignorar as reclamações do próprio corpo e de repente foi chutada para o meio da sala. O impacto da sola do pé de Russo em seu braço a fez gritar, mas quando caiu chorando e ergueu os olhos, Tank estava lá outra vez. Os olhos sem nenhum sentimento, a camisa de botões agora estava fechada e ao seu lado uma menina linda com os cabelos sedosos e um vestido rosado que a fazia parecer saída de um conto de fadas. Imaginou que aquela fosse Amara e o homem ao seu lado devia ser Theodoro. Russo falou dos filhos quando ainda estavam no carro, ela se lembrava dos nomes, mas talvez por não conseguir pensar direito achou que ainda fossem crianças. — Vai cuidar dos meus filhos, o Theodoro é um garoto difícil, ninguém entra no quarto dele. Pega as roupas do cesto e deixa em cima da mesa que ele se vira. A minha Amara estuda o dia inteiro, então precisa de tudo arrumado para quando ela chegar. Dállia havia apenas balançado a cabeça concordando com as ordens, não existia espaço para discordar, na verdade estava confirmando que tinha entendido. Mas enquanto o marido a erguia do chão pelo braço, tudo o que ela conseguia ver era o quanto os irmãos eram bonitos. — Essa é a nova mãe de vocês! Olhou para Tank, como se o fato de ele não ser uma criança desse a ela alguma esperança. Não queria fugir, nem ser mandada embora, já havia entendido que em nenhum lugar o destino seria melhor com ela. Algumas pessoas não têm direitos, não são humanas o bastante para isso, ainda assim, pensou que talvez Tank dissesse ao pai que não aceitaria que Russo a tratasse daquela forma, ou apenas que exigisse que ele a levasse para o quarto. Não aconteceu, Tank virou as costas para o pai e para ela sem responder uma única palavra, o braço em torno das costas da irmã, a camisa com a manga levemente erguida permitiu que ela pudesse ler a frase que estava ali. O inferno me aguarda, você me mantém Amara Naquele momento ela não entendeu o que Tank queria dizer com aquilo, mas cada gesto dele deixava claro que o amor que sentia pela irmã era maior do que o que tinha por si mesmo. E isso, não precisava estar escrito na pele dele, seria óbvio para qualquer pessoa. Sentiu inveja de Amara, a menina tinha algo que ela jamais teria. Uma família. Enquanto Tank seria capaz de morrer pela irmã, Dállia nunca teve ninguém que quisesse viver por ela. Ainda se lembrava de como se tornou o que era, do dia em que perdeu a sua humanidade. Perdeu não! O dia em que a sua humanidade foi vendida. A tia disse que um moço a levaria para passear e que ela deveria ser educada e obediente. Para uma criança de dez anos que nunca tinha sido levada para passear. Aquilo parecia um sonho! E por algumas horas, Dállia se divertiu, andou de mãos dadas com aquele senhor no shopping, agradeceu pelas roupas que ele comprou. Tomaram sorvete e ele a deixou brincar no parquinho do shopping. Foi a primeira vez! As luzes eram tão bonitas, as músicas, amou a piscina de bolinhas. Aquela foi a primeira vez que se divertiu, e a primeira que um homem se divertiu com elaEle era diferente, não se parecia em nada com os homens da comunidade em que Dállia vivia antes de ser vendida ao marido. Tank parecia rústico e ao mesmo tempo os olhos traziam uma força diferente, dilacerante, algo que a atraia.Mas os dias passaram e ele nem sequer a olhou, nem mesmo uma única vez. Tank passava por ela como se ninguém existisse, somente ele e Amara.De certa forma, havia beleza naquele desprezo, era como se Tank e a irmã pudessem viver em um mundo próprio, algo só deles, onde as risadas e as músicas se espalhavam pela casa de um jeito que Dállia achava lindo.Em uma manhã, depois que o marido saiu para o trabalho, ela se aproximou devagar do quarto de Amara, a música estava alta e os irmãos conversavam animados enquanto comiam algo que Tank havia comprado.Eles não comiam nada que ela cozinhasse, não importava o quanto Dállia se esforçasse para agradar, Tank sempre passava em algum lugar e trazia marmitas que dividia com a irmã. Se esforçou para ouvir o que falavam.
Tank voltou para casa após o treino ser cancelado, detestava todas as vezes que isso acontecia, mas Dylan não era um soldado comum, tinha manias estranhas, não avisava quando faltaria e vivia correndo atrás da mulher como um cachorrinho abandonado.Ninguém achava Zoey bonita o bastante para receber tanta atenção, mas jamais alguém ousou falar isso, ao menos não para o chefe de treinamento. Seria como pedir para passar uma longa temporada no centro médico e talvez, nem voltar.Abriu a porta com um humor péssimo, odiava aquela casa e tudo o que ligava ao pai. Russo nunca foi um pai amoroso, mas as coisas tinham piorado muito desde que a mãe de Tank faleceu.Respirou fundo e entrou, teria ido direto para o quarto se a música que vinha do quarto da irmã não tivesse chamado a sua atenção.— Amara, droga! Faltou à aulaReclamou apenas em pensamento, não quis chamar atenção da irmã, achou que a pegaria em flagrante. Precisava que ao menos Amara tivesse um futuro, que alguém daquela família f
Um amor impossível, os dois sabiam, não podiam continuar. Russo era um homem da máfia, um homem marcado por dores que o transformaram, temido pela sua capacidade de matar sem sentir, odiado por todos, até mesmo pelos filhos.Ela tentou falar, mas ele a segurou mais forte, mais perto, subiu a mão pelas costas de Dállia, ela tremeu.Tremeu porque nunca havia sentido nada parecido, nem mesmo teve chance de conhecer o amor.Antes aprendeu sobre dor, crueldade, submissão.Mulheres como ela não podiam amar, como aprender sobre algo que nunca viu?O rapaz deslizou a mão, que antes segurava o rosto dela, gostou da textura da pele.Uma mulher podia ser tão suave?Aproveitou com carícias lentas. Cuidadoso, quase como se tivesse medo de machucá-la.Os olhos acompanharam a mão, deslizou o polegar pelo pescoço delicado, desenhou os ossos da clavícula exposta pelo vestido. Aquela visão parecia incendiar sua alma.Segurou a coxa da menina e ergueu a perna de Dállia a fazendo enlaçar sua cintura. Pre
Tank chegou segurando uma caixa enorme, não olhou para Dállia, só colocou o embrulho sobre a mesa e ela ousou falar com ele pela primeira vez desde que o rapaz a deixou no quarto abraçada ao próprio corpo.— O que é isso?Tank não sabia o que responder, havia demorado horas escolhendo o vestido que achava que ficaria perfeito no corpo dela. A menina era linda, mas estava sempre usando roupas sensuais.Parecia um anjo vestindo roupas que simplesmente não combinavam com ela.Sabia que o pai a obrigava a se vestir daquela forma, já tinha visto várias vezes ele chegar suado e colocar as mãos no corpo da menina. Ela não era sua esposa, era uma boneca que ele tinha comprado.O rapaz achou que também podia pagar, talvez um presente, mas por alguma razão achava que aquele vestido delicado combinava bem mais com a madrasta do que as roupas que o pai jogava no chão gritando para que ela vestisse.— É para você, por aquele dia. O pagamento.Dállia sentiu o coração despedaçar no peito, as lágrima
Deveria ser apenas uma manhã típica, Dállia se levantou feliz, preparou o café da manhã, colocou as roupas na máquina de lavar. A rotina que seguia era sempre a mesma, acordar às 4 da manhã fazer tudo sem nenhum barulho e por fim, vestir as roupas que o marido gostava que ela usasse. Já não se importava. Colocou a saia de couro sintético, ficou sem a calcinha, era assim que Russo gostava. Primeiro, preparou o café. Forte e muito doce como o marido gostava. Depois, esquentou os pães, cortou as frutas e sorriu quando encontrou uma caixa de morangos escondida no fundo da geladeira. Ela amava morangos, mas Russo não comprava.— Desde quando cadelas comem morangos? Se quiser te compro ração. Foi o que ele disse quando ela pediu. Havia segurado aquela vontade por meses, por fim pediu. A primeira e a última vez que pediu algo a Russo.Mas Tank sempre trazia, pelo menos uma vez por semana. E naquela manhã os morangos estavam lindos. Pegou um e enfiou na boca de uma vez. O cheiro de c
Dállia percorreu o caminho que separava a casa de Russo até onde a multidão se aglomerava com o coração batendo tão forte no peito que não conseguia respirar. Com o olhar perdido na multidão, ouviu cada palavra da acusação contra Tank.Ele havia ofendido uma garota. Uma mulher da máfia que havia acabado de ser resgatada. Olívia! Gravou o nome e focou nas palavras do capo. Um homem de porte comum, mas que a deixava com medo até de olhar, Amara também estava lá, os soluços da menina fizeram com que Dállia também sentisse vontade de chorar, não podia. As lágrimas são reservadas para pessoas que tem alma e ela não tinha. Assim como Dalila ela só servia a um propósito, mas diferente da personagem bíblica, ela não era bonita o bastante para que a prostituição servisse como arma, no caso dela, só valia um prato de comida. De tudo o que ouviu, do pouco que entendeu, a última frase do capo foi a que fez seu coração parar. — Esse homem não vai morrer hoje, mas provavelmente não sobreviverá
Chamou, mas quando Olívia a olhou, um mundo de memórias invadiu sua mente. Pedir ajuda? Que ingenuidade! Pedir ajuda é o meio mais rápido para piorar o próprio sofrimento, já havia experimentado isso, conhecia as regras do mundo, para Dállia, só havia dois tipos de pessoas do mundo, as que se divertiam com o sofrimento alheio e, as que, além de assistir, gostavam de tirar proveito da fraqueza. Não podia expor Tank ainda mais. Tentou correr, fugir, mas a sandália que estava usando estourou o fecho no segundo passo. A dor do tornozelo torcendo se espalhou pela perna em uma onda de choque a fez gemer. Segurou a perna, tentou se levantar, mas já era tarde. Olívia estava ali. — Você está bem?— Estou, tudo bem, desculpa eu confundi você com outra pessoa.Os olhos vermelhos a entregaram muito antes de tentar se justificar. O medo a consumia, não podia confiar. E se isso ao invés de ajudar, terminasse de condenar a única pessoa no mundo que nunca a feriu?Se descobrissem, se soubessem qu
Dállia sentia como se o olhar de Olívia tentasse decifrar seus pensamentos, desmascarar seus verdadeiros motivos. Mas Olívia não podia entender. Ninguém podia. Ela tinha apenas uma certeza, salvar Tank. A qualquer custo e como alguém poderia compreender aquilo?Foi então que Olívia disse algo que fez Dállia ter ainda mais certeza de que não estava sendo compreendida. — Você acha que ele te enxerga e que, mesmo sendo a pior coisa do mundo, ainda é o melhor que você merece.Olívia tinha certeza de que o desespero de Dállia não era o desespero de uma madrasta, imaginou que Tank também a forçava, talvez pai e filho dividissem a mulher, estava tão acostumada com a perversidade humana que pensou que o olhar triste de Dállia fosse resultado disso, de quem aceita o pior dos destinos e ainda é grata por ele. Já Dállia ouviu achando que Olívia era extremamente alienada, Tank nunca foi a pior coisa. Ele era sua salvação, sua luz em meio à escuridão. Como era possível que aquelas pessoas conv