Tank chegou segurando uma caixa enorme, não olhou para Dállia, só colocou o embrulho sobre a mesa e ela ousou falar com ele pela primeira vez desde que o rapaz a deixou no quarto abraçada ao próprio corpo.
— O que é isso? Tank não sabia o que responder, havia demorado horas escolhendo o vestido que achava que ficaria perfeito no corpo dela. A menina era linda, mas estava sempre usando roupas sensuais. Parecia um anjo vestindo roupas que simplesmente não combinavam com ela. Sabia que o pai a obrigava a se vestir daquela forma, já tinha visto várias vezes ele chegar suado e colocar as mãos no corpo da menina. Ela não era sua esposa, era uma boneca que ele tinha comprado. O rapaz achou que também podia pagar, talvez um presente, mas por alguma razão achava que aquele vestido delicado combinava bem mais com a madrasta do que as roupas que o pai jogava no chão gritando para que ela vestisse. — É para você, por aquele dia. O pagamento. Dállia sentiu o coração despedaçar no peito, as lágrimas brotaram quentes, mas daquela vez ela não estava mais disposta a ser humilhada. — Não quero — Nem abriu, como sabe que não vai gostar? — Eu não quero nada de você. Dállia tentou sair antes que as lágrimas caíssem, outra vez alguém acreditava que ela era somente um corpo, o problema era que dessa vez, a pessoa que queria pagar por ela também era o homem que ela achou ser diferente de todos os outros. Dois passos e foi puxada de volta, Tank a beijou, um beijo desesperado, carregado de tudo o que sentia, mas não tinha coragem de falar. Ele queria dizer que o dia que a teve foi o melhor dia da sua vida, que não conseguia esquecer, mas que simplesmente não podia ser. Dállia, apesar de ter a mesma idade que a irmã caçula de Tank, também era a esposa de seu pai. Não disse, mas a beijou e ela se entregou, aos beijos, aos toques e ao prazer que sentiu quando ele a levantou do chão e se encaixou nela no meio da cozinha, outra vez ainda de roupa, só o desejo desesperado de estar colado a ela, só com a vontade que tinha dela, com o desejo de fugir do que sentia. Depois daquele dia, Tank escapava dos treinamentos da organização. Um mafioso apaixonado, um soldado que deveria fazer a segurança dos outros, mas que traia não apenas o código a qual jurou lealdade como também ao próprio pai. Durante o dia ela era sua flor, sua Dállia, seu amor. Passavam a tarde brincando, ele cozinhava para ela, levava doces, a deixava dormir em seu peito. Se a felicidade pudesse ser chamada de outra forma, ele a chamaria de Flor. E foi assim que Tank passou a chamar a madrasta, minha flor. Enquanto Dállia dormia com a cabeça em seu peito, o soldado lutava contra o que era, preocupado com o que estavam fazendo, desesperado pelo que aconteceria se fossem descobertos. O rapaz nascido em Nova York nunca escolheu fazer parte daquele mundo, já nasceu nele, conhecia as regras. Mulheres da máfia não traem, não se divorciam, não vão embora. Elas morrem! Quase sempre uma morte inexplicada, sem rastros, sem perguntas. E ele não podia perdê-la, não conseguia mais enxergar a própria vida sem aquele abraço, sem os cabelos escuros dela colados no seu suor, sem as conversas casuais de quando estavam assistindo a algum filme ou comendo pipoca doce. Dállia amava pipoca doce, vermelha e melada. Se sentavam de frente um para o outro e jogavam os milhos estourados um na boca do outro. Uma bagunça doce que ele amava. — Vamos acabar mortos, minha flor Tank explicava para a menina sobre as regras da máfia, o código que seguiam e o risco que estavam correndo. — Eu não me importo, a gente pode fugir, não pode? Qualquer lugar. — Amara depende de mim, Dállia. Eu sou tudo o que ela tem, quando a nossa mãe morreu a foquinha cabia aqui, oh. Se lembrou do passado e mostrou para a menina o antebraço, era assim que ele costumava carregar a irmã, também era uma criança na época, mas levava com ele, Russo havia se tornado uma pessoa ainda mais doente depois da morte da primeira esposa. Não que antes ele fosse normal, nunca foi, mas depois que Rosie partiu, ele enlouqueceu. Tank estava chorando, segurava a mão fria da mãe, a irmã chorava pequena e desamparada ao seu lado. Todos sabiam que ninguém podia fazer nada, ainda assim, Theodoro, o menino que após fazer o juramento na máfia passou a ser chamado de Tank, chamava pela mãe em desespero. Sentia o peso do mundo inteiro em suas costas. O que faria com Amara, como sobreviveriam as loucuras de Russo, quem os protegeria? Estava certo, os anos que se seguiram foram insuportáveis, Russo não era um pai, era um psicopata, sentia prazer com o medo do filho na época, Tank era só o menino Theodoro, uma criança com a irmã nos braços, sem mãe, sem chão, sozinho. Explicou isso a Dállia, contou os detalhes daquele dia, mas não contou todos os outros, era pesado demais e ele tentava esconder até de si mesmo. — Hoje eu posso cuidar da foquinha, não vou deixar a minha irmã sozinha, Dállia. Me perdoa, minha flor, mas foi a Amara que me manteve vivo desde o dia em que perdi a minha mãe. Jurei que protegeria ela de tudo e de todos, vou fazer isso, mesmo que eu precise desistir de você. Dállia não discutiu, nem pediu. Estava acostumada com a posição que ocupava, ela não era ninguém, mas invejou Amara. — Deve ser bonito ter alguém que ame a gente assim. E apesar da inveja, do medo de serem descobertos, do mal e do bem que faziam um ao outro eles continuaram. De dia Dállia era dele, a noite, a menina pertencia a um velho asqueroso que a feria de todas as formas. Mas isso durou somente até o dia em que Tank foi arrastado pelos soldados da máfia. O capo o chamava, era hora de pagar.Deveria ser apenas uma manhã típica, Dállia se levantou feliz, preparou o café da manhã, colocou as roupas na máquina de lavar. A rotina que seguia era sempre a mesma, acordar às 4 da manhã fazer tudo sem nenhum barulho e por fim, vestir as roupas que o marido gostava que ela usasse. Já não se importava. Colocou a saia de couro sintético, ficou sem a calcinha, era assim que Russo gostava. Primeiro, preparou o café. Forte e muito doce como o marido gostava. Depois, esquentou os pães, cortou as frutas e sorriu quando encontrou uma caixa de morangos escondida no fundo da geladeira. Ela amava morangos, mas Russo não comprava.— Desde quando cadelas comem morangos? Se quiser te compro ração. Foi o que ele disse quando ela pediu. Havia segurado aquela vontade por meses, por fim pediu. A primeira e a última vez que pediu algo a Russo.Mas Tank sempre trazia, pelo menos uma vez por semana. E naquela manhã os morangos estavam lindos. Pegou um e enfiou na boca de uma vez. O cheiro de
Dállia percorreu o caminho que separava a casa de Russo até onde a multidão se aglomerava com o coração batendo tão forte no peito que não conseguia respirar. Com o olhar perdido na multidão, ouviu cada palavra da acusação contra Tank.Ele havia ofendido uma garota. Uma mulher da máfia que havia acabado de ser resgatada. Olívia! Gravou o nome e focou nas palavras do capo. Um homem de porte comum, mas que a deixava com medo até de olhar, Amara também estava lá, os soluços da menina fizeram com que Dállia também sentisse vontade de chorar, não podia. As lágrimas são reservadas para pessoas que tem alma e ela não tinha. Assim como Dalila ela só servia a um propósito, mas diferente da personagem bíblica, ela não era bonita o bastante para que a prostituição servisse como arma, no caso dela, só valia um prato de comida. De tudo o que ouviu, do pouco que entendeu, a última frase do capo foi a que fez seu coração parar. — Esse homem não vai morrer hoje, mas provavelmente não sobreviverá
Chamou, mas quando Olívia a olhou, um mundo de memórias invadiu sua mente. Pedir ajuda? Que ingenuidade! Pedir ajuda é o meio mais rápido para piorar o próprio sofrimento, já havia experimentado isso, conhecia as regras do mundo, para Dállia, só havia dois tipos de pessoas do mundo, as que se divertiam com o sofrimento alheio e, as que, além de assistir, gostavam de tirar proveito da fraqueza. Não podia expor Tank ainda mais. Tentou correr, fugir, mas a sandália que estava usando estourou o fecho no segundo passo. A dor do tornozelo torcendo se espalhou pela perna em uma onda de choque a fez gemer. Segurou a perna, tentou se levantar, mas já era tarde. Olívia estava ali. — Você está bem?— Estou, tudo bem, desculpa eu confundi você com outra pessoa.Os olhos vermelhos a entregaram muito antes de tentar se justificar. O medo a consumia, não podia confiar. E se isso ao invés de ajudar, terminasse de condenar a única pessoa no mundo que nunca a feriu?Se descobrissem, se soubessem q
Dállia sentia como se o olhar de Olívia tentasse decifrar seus pensamentos, desmascarar seus verdadeiros motivos. Mas Olívia não podia entender. Ninguém podia. Ela tinha apenas uma certeza, salvar Tank. A qualquer custo e como alguém poderia compreender aquilo?Foi então que Olívia disse algo que fez Dállia ter ainda mais certeza de que não estava sendo compreendida. — Você acha que ele te enxerga e que, mesmo sendo a pior coisa do mundo, ainda é o melhor que você merece.Olívia tinha certeza de que o desespero de Dállia não era o desespero de uma madrasta, imaginou que Tank também a forçava, talvez pai e filho dividissem a mulher, estava tão acostumada com a perversidade humana que pensou que o olhar triste de Dállia fosse resultado disso, de quem aceita o pior dos destinos e ainda é grata por ele. Já Dállia ouviu achando que Olívia era extremamente alienada, Tank nunca foi a pior coisa. Ele era sua salvação, sua luz em meio à escuridão. Como era possível que aquelas pessoas conv
Dállia sabia o que estava fazendo, perguntou arrumando a postura, cruzou a perna direita sobre a outra fazendo a saia justa subir ainda mais. Tinha aprendido com o primeiro dono. Muitas vezes foi obrigada a ser enfeite de mesa. Era assim que ele a chamava. O dono dela, também era o dono do morro e costumava fazer noites de jogatina na laje do sobrado em que morava. Os convidados eram os chefões do tráfico, os cabeças que comandavam a área, acompanhados de seus seguranças armados, esses eram conhecidos como frentes. Além deles, circulavam os vapor, os responsáveis por vender a mercadoria na ponta, e os fogueteiros, sempre atentos para avisar sobre a chegada da polícia. O ambiente era regado a ostentação, bebidas caras e olhares afiados, onde cada palavra dita poderia custar caro.Ela? Dállia era o enfeite de mesa. Estava ali para enfeitar e qualquer um podia colocar a mão. Era isso que o primeiro marido dizia. — Podem pegar, usar à vontade, até tirar pedaço, mas sem levar para casa
O rapaz normalmente fazia tudo antes do pai chegar e se trancava no quarto com a irmã, mas naquele dia, ele havia se atrasado, esqueceu da hora jogando futebol com os outros rapazes do condomínio e acabou precisando lavar os vestidos de Amara durante a noite.Russo chegou e não gostou de ver o filho ali, fazendo uma tarefa que ele julgava ser exclusivamente feminina. Agarrou Tank pela camiseta e puxou com força, a gola marcou o pescoço do rapaz, o tecido rasgou, já era velho, ganhada de um dos colegas.Mas quando se levantou Russo o acertou com um soco o garoto caiu e bateu a cabeça na quina de uma espécie de balcão que havia na cozinha para guardar louças. A pancada foi tão forte que a dor se espalhou, ficou um tempo perdido entre a consciência do sangue quente que escorria entre seus dedos e a escuridão que tentava tomá-lo. Foi o grito de Amara que o despertou, o choro infantil e indefeso que chamava seu nome.— DODÔ! DODÔ!Era assim que Amara o chamava, nem se lembrava do porque, j
Um raio de sol entrava por uma pequena fresta aberta da janela, a casa de madeira era escura e o cheiro estranho, mas o brilho que entrava potente a encantou. Partículas de poeira dançavam na luz enquanto o corpo de Dállia se movia com o impulso do corpo velho sobre o dela.Os sons eram estranhos, bizarros, mas ela se focou na luz, no tímido raio solar e na poeira dançante. Já estava acostumada com a dor, a maioria das vezes nem incomodava mais.Foi virada de bruços sobre a mesa, a toalha branca ficou enrolada sob o seu corpo, os movimentos continuaram, firmes, violentos e acompanhados daqueles ruídos animalescos.E foi exatamente nesse minuto que tudo mudou.Quando Dállia foi virada sobre a mesa ela lamentou que não pudesse mais olhar para a luz e foi na escuridão que seus olhos cruzaram com os de Tank pela primeira vez.Ele estava ali, parado, olhando para ela como se visse um animal ser abatido. Uma mistura de desprezo e pena que a fez fechar os olhos, segurou mais firme na borda d
Ele era diferente, não se parecia em nada com os homens da comunidade em que Dállia vivia antes de ser vendida ao marido. Tank parecia rústico e ao mesmo tempo os olhos traziam uma força diferente, dilacerante, algo que a atraia.Mas os dias passaram e ele nem sequer a olhou, nem mesmo uma única vez. Tank passava por ela como se ninguém existisse, somente ele e Amara.De certa forma, havia beleza naquele desprezo, era como se Tank e a irmã pudessem viver em um mundo próprio, algo só deles, onde as risadas e as músicas se espalhavam pela casa de um jeito que Dállia achava lindo.Em uma manhã, depois que o marido saiu para o trabalho, ela se aproximou devagar do quarto de Amara, a música estava alta e os irmãos conversavam animados enquanto comiam algo que Tank havia comprado.Eles não comiam nada que ela cozinhasse, não importava o quanto Dállia se esforçasse para agradar, Tank sempre passava em algum lugar e trazia marmitas que dividia com a irmã. Se esforçou para ouvir o que falavam.