Capítulo VII

" Parece que a vida passou

Passou por mim, como um raio destruidor e levou embora tudo que era bom"

Arlissa

Anos atrás

Acordei sentindo algo rastejar sobre meu corpo, e uma onda de medo se apossou de mim. Abri os olhos devagar e vi uma cobra passando pelo meu corpo. Minha respiração desregulou-se, e meu corpo começou a tremer involuntariamente. Tentei me mover, mas não consegui. Percebi que, enquanto não me movesse, ela não faria nada comigo, ou, se estivesse dormindo, já teria me atacado.

Deixei-a passear pelo meu corpo até cansar e ir embora. Respirei aliviada e me sentei na cama. Depois de tantos anos assim, acabei me tornando perita e, de certa forma, perfeita em disfarçar minha dor e angústia. Eu era uma morta-viva agora.

Foi assim que morri de vez e ressurgi como alguém sem nada, por dentro e por fora.

Presente

- Arlissa, preciso saber onde deixo isso.

Levantei o olhar e vi Lize entrando na minha sala com uma caixa enorme nas mãos.

- O que é isso?

Levantei-me da mesa e ajudei-a a segurar a caixa.

- Não sei.

Pousamos a caixa no chão e pegamos uma tesoura para abri-la.

- Ah! – Lize gritou e caiu para trás, assustada, fazendo-me trincar o maxilar e fechar os olhos com raiva.

Dentro da caixa havia uma cobra e um rato preto morto. Por cima, estava uma carta. Peguei a carta e a abri.

"Este será o teu fim aqui. Não mereces estar aqui. Negros são animais feitos para serem escravos, não pessoas normais. Desaparece ou aguenta as consequências."

- Apertei o papel e ajudei Lize a se levantar e se recompor.

- Quem faria isso? – Ela tremia como uma criança com medo.

Tanto Lize quanto eu já havíamos sofrido bullying por causa da nossa cor várias vezes. Algumas vezes, com direito a surra e balde de água suja.

- Não sei, mas não tem importância. Afinal, somos imbatíveis com isso. – Sorri, e ela sorriu também. Lize era uma pessoa incrível, mas podia ser um monstro quando provocada.

- Vamos tirar isso daqui e...

- Ah! – Ouvi Samanta gritar. Levantei o olhar e vi Emily, Derick, William e Santa Cruz. Que maravilha.

- Não grite tanto ou vai assustar a cobra. – Disse, fria, e todos me olharam.

- Tu estás parva? É uma cobra e... – Antes que Emily terminasse de falar, a cobra saiu da caixa e começou a rastejar em direção a eles. Deixei Lize no sofá e fiquei na frente deles.

Abaixei-me diante da cobra e estiquei a mão, fazendo movimentos leves e precisos. Ela começou a seguir os meus gestos e veio calmamente até mim. Se enrolou no meu braço e levantei-a. Comecei a acariciar sua cabeça, e ela se abaixou e se acalmou.

Virei-me para os outros, e todos pareciam espantados, menos Samanta, que parecia com raiva e ódio no olhar.

- Como é que tu... Por que tu... O quê? – Derick parecia confuso e abismado até com suas palavras.

- Não tenho medo de animais, muito menos de cobras. Afinal, quase cresci com elas. – Sorri e voltei a colocar a cobra na caixa, fechando-a. – Vou ligar para o controle de animais para resolver isso.

- Como veio parar uma cobra aqui? – Perguntei enquanto pegava o papel amassado e entregava a ele. Peguei o telefone fixo e liguei para o controle.

Dei todas as informações necessárias e desliguei, voltando a me sentar na minha mesa.

- Dois dias aqui e já sou famosa. Não é incrível? – Voltei minha atenção para o computador e peguei minha caneta para escrever.

Eu sei que parece estranho, mas há coisas que já não me abalam mais, como cobras, insultos ou simplesmente besteiras. Aprendi a gostar de mim como sou e a não depender da opinião dos outros para ser feliz. Sem contar que crescer em quartos escuros com animais diversos tira qualquer rastro de medo.

- Como é que tu achas isso normal? – Meu cunhado retirou-me da atenção ao computador e me olhou.

- Porque já vi de tudo. Tanto Lize quanto eu já sofremos bullying na escola por causa do tom da nossa pele. Já fomos expelidas de alguns estabelecimentos, caçadas e até insultadas por isso. Mas estamos aqui, sobrevivemos e estamos mais fortes e incríveis do que nunca. – Pisquei para ele e voltei a me concentrar no computador.

- Mas na minha empresa, não. Esse comportamento não será tolerado. – Ele me olhou de lado e dei de ombros.

Ampliei a imagem do meu computador e corrigi a falha de uma joia. Desde que cheguei e antes desse ocorrido, venho aperfeiçoando meus desenhos e revisando sua estrutura. Quero criar joias como as do Antigo Egito, obras bem feitas e lindamente ornamentadas.

- Vocês ainda estão aqui? – Retirei o olhar da tela e os fixei.

- Sim, ainda. – Samanta balançou a cabeça como se quisesse afastar algo e se aproximou de mim. – Só viemos parabenizar você. Começamos a confeccionar as joias hoje, e estão ficando lindas.

- Eu sei, eu as desenhei. – Brinquei, tentando deixar o clima mais leve.

- Convencida. – Ela riu de leve.

- Vim te parabenizar pelo trabalho novo e te desejar boa sorte. Trabalhar com esse aqui não será fácil.

- Desculpa, esse aqui quem? – Santa Cruz se fez de ofendido.

- Você, claro! – William disse, sem rodeios.

- Não se preocupe, cunhado. Eu sei lidar com tudo, até com playboys. – Pisquei para ele, e ele riu.

- Por favor! – Santa Cruz praguejou indignado e saiu, nos fazendo rir.

- Posso ir à oficina?

- Claro, eu te levo.

Saímos da minha sala e entramos no elevador. Samanta apertou o botão do último andar, e a musiquinha irritante do elevador começou. Chegamos ao andar e saímos do elevador. Eu precisava conhecer as escadas desse lugar ou ainda infartaria.

Andamos por um corredor e Samanta abriu uma porta, revelando uma sala cheia de equipamentos bonitos e perfeitos para o nosso trabalho. A sala era grande, espaçosa e com tudo perfeitamente arrumado.

- É lindo. – Falei mais para mim mesma do que para os outros.

Passei por cada mesa onde os profissionais trabalhavam, e todos estavam concentrados em seu trabalho. Estava tudo indo perfeitamente, como eu imaginara. Passeamos pela oficina por uma hora inteira. Fui de mesa em mesa, vendo cada trabalho, e estava tudo ficando exatamente como imaginei ao desenhar as joias.

Saímos da oficina e voltamos para o meu andar. Mas, antes de chegar à minha sala, Lize me avisou que chamaram todos os funcionários para a sala de reuniões do prédio. Estranhei, mas fui.

Chegamos à sala e estava cheia com a maioria dos funcionários da empresa, o que me pareceu ainda mais estranho.

- Ótimo, agora não falta ninguém. Por favor, sentem-se todos. – Cada um ocupou uma cadeira, e eu e Lize acabamos ficando de pé.

- Hoje, a Srta. Altamira recebeu uma carta e uma caixa com uma cobra e um rato morto dentro. – Santa Cruz respirou fundo antes de continuar. – Ela é a nova designer desta empresa, ou seja, merece o mesmo respeito que cada um de vocês aqui. Então, quero saber o responsável pelo ocorrido ou todos vão sofrer.

Começaram a murmurar na sala, e alguns olhares se voltaram para mim e Lize.

- Sr. Santa Cruz, isso não é necessário. Eu e Lize não nos importamos. – Tentei argumentar.

- É sim. Não sei fora, mas dentro desta empresa, eu não quero pessoas racistas e estúpidas que julgam os outros pelo tom de pele, e não pela capacidade ou personalidade. Então, estou esperando... – Olhei para Lize, que suspirou pesado e confirmei com a cabeça.

Havia vezes em que eu e Lize não precisávamos comunicar; nos entendíamos com um olhar ou com uma expressão. E agora sabíamos muito bem que, depois dessa reunião, as coisas não melhorariam.

- Vou começar pelo departamento de segurança. Afinal, eles têm que saber o que e quem entra nesta empresa. – Não sou perita em pessoas, mas pelo tom de voz de Santa Cruz, dava para ver que ele estava perdendo a paciência. – Júnior...

- A encomenda partiu de dentro da empresa, Sr. – O tal Júnior falou sério.

- Ótimo, e de que departamento surgiu?

- Marketing.

- Saíam todos, menos os de Marketing. — Sua voz soou ativa e autoritária, sem margem para erros. Todos se atrapalharam, mas saíram como cachorrinhos adestrados.

- Emily, quem foi?

- Elionor, Sr. — Emily respondeu sem falhas. Então, eles já sabiam?

- Elionor... — Uma mulher alta e magra levantou-se. Estava entre 30 e 40 anos e me olhava com ódio e raiva. Ela era uma mulher da qual eu não queria me aproximar. Sua aura era má, egoísta e cruel. Senti uma angústia no peito e dei dois passos para trás.

- Esse cargo era para ser meu. Depois da saída da Flor, eu ficaria com esse lugar, eu seria a nova designer, não essa negra suja...

- Chega! — Afastei-me, ainda com o tom de voz de Santa Cruz firme e cortante. — Nunca confiei em você a esse ponto, Elionor. Eu nunca colocaria você como minha principal designer. Isso nunca. Estás despedida, e não quero-te perto de mim, ou as coisas vão ficar feias para você. — Ele anunciou, levantou-se da cadeira e se retirou como se fosse o dono de tudo, e bom ele é.

O tal Júnior retirou a mulher aos berros da sala e saiu correndo para a minha. Cada vez que sentia isso por alguém, eu não queria estar perto dessa pessoa por nada no mundo.

Entrei na minha sala e fechei a porta. Comecei a andar de um lado para o outro, na esperança de acalmar meu coração, mas nada. Ele continuava agitado. A porta se abriu, e Santa Cruz entrou, me fazendo parar de andar. Com algum cuidado, ele caminhou até mim e tentou me tocar, mas, por instinto, afastei-me de seu toque.

- Desculpa, mas... não gosto que me toquem sem...

- Não faz mal, não precisas explicar. Só queria saber como você está. — Fechei os olhos e respirei fundo, sentindo sua empatia.

- Estou bem, obrigada. — Agradeci, mesmo sem ele saber o motivo.

- Tudo bem. — Ele sorriu e saiu da minha sala.

Como eu queria que todo ser humano tivesse uma aura assim. Como eu queria que todas as pessoas fossem um pouco do que esse homem é. Assim, haveria menos sofrimento e dor no mundo.

Leia este capítulo gratuitamente no aplicativo >

Capítulos relacionados

Último capítulo