Bernardo Fonseca
Acreditei que fugindo de todos esqueceria o que me fez querer desaparecer, entretanto, isso não aconteceu. Retornar para o cargo de presidente de uma das maiores empresas de cosméticos do país era inevitável, prolonguei tempo de mais minhas supostas férias. Meu irmão caçula Caleb não conseguia mais dar conta de tudo sozinho. Nunca quis ser o pai do meu irmão, mas precisei assumir esse papel quando nosso pai foi assassinado. Enganei-me ao pensar que tudo pudesse voltar à normalidade porque após o velório do nosso pai, a nossa mãe nunca mais foi a mesma de antes, enlouquecerá, sequer se importava com os filhos.
Lembro-me de um sábado aparentemente igual aos outros, mas que mudaria tudo. Não era o final de semana que pensei que teria em família, porque o que tinha reservado pra mim era uma cena com a qual nenhum filho gostaria de ver. Empurrei a porta do quarto da nossa mãe e senti o cheiro forte de bebida alcoólica, indicando que ela outra vez tinha se entregado ao vício.
Meu coração quase parou quando ouvi gemidos de dor vindo do banheiro. Entrei desesperado no quarto, indo depressa até o banheiro. Acabei me deparando com uma ocorrência que se tornaria meu pesadelo durante anos. O barulho d'água do chuveiro caindo foi o jeito que ela havia encontrado de tentar abafar qualquer grito seu, mas isso não adiantou, pois eu a encontrei. No momento em que olhei para os meus pés, contraí o estômago, porque debaixo dos meus pés tinha uma poça de sangue, o sangue da nossa mãe. Foi como estar na lua e cair na terra em um baque fatal. Minha boca secou e meu corpo inteiro reagiu, senti minha pressão cair. Ela tinha feito uma loucura. Aproximei-me atordoado dela, ela tinha cortado os pulsos com uma tesoura ao lado da banheira,
O quase suicídio dela me obrigou a fazer algo que nunca quis, interná-la, não vi outra saída. Mantê-la sob cuidados em uma clínica foi a única solução que encontrei, mas o tratamento não teve efeito algum no seu psicológico. Todas as visitas eram desgastantes, apesar dela estar em uma das melhores clínicas, não vi melhora alguma. Ela continuava com uma obsessão pelo assassinato do nosso pai, e sua depressão parecia não ter fim.
Eu queria que ela esquecesse as lembranças daquela trágica madrugada, em que nossa casa foi invadida e ele levado. Dois dias depois encontraram seu corpo em um córrego, ficamos sabendo da notícia por uma emissora de televisão. Desde aquele dia nunca mais vi canais de tv aberta. Foi uma exposição escandalosa para nossa família, não importaram-se com a dor que sentíamos. Todas as investigações apontavam apenas para uma pessoa, um dos sócios da nossa empresa de cosméticos. Ele não confessou ser o mandante da execução, no entanto, isso não impediu sua condenação. Pagamos um alto valor em dinheiro para garantir que a justiça fosse feita.
— Em casa novamente. — suspirei, caminhando até à vista mais privilegiada do quarto, uma grande vidraça com vista para o jardim.
Senti saudades da minha inocência de garoto que acreditava em um futuro incrível ao lado dos seus pais. Aquele tempo bom não voltaria nunca mais, tudo que acreditei ser quando crescesse foi um fracasso. Enfiei as mãos nos bolsos da calça social de cor preta.
Minha árvore favorita continuava de pé, mas quem ajudou plantá-la não estava mais entre nós.
Foram os melhores anos da minha vida...
Papai disse que tinha uma surpresa e que esperássemos no jardim, Caleb corria descalço pela grama, brincando com seu carrinho vermelho enquanto eu pensava o quanto era absurdo um carro voar.
— Idiota, carro não tem asa! — resmunguei, indignado com a burrice do meu irmão.
— Bernardo, não fale assim com o seu irmão!
— Carro não voa, papai! — expliquei.
O sorriso do nosso pai era seu cartão de visitas, ele quase nunca ficava bravo, até mesmo nos momentos de dar bronca ele não conseguia ficar sério muito tempo.
— Foguete também não tem asa filho, ainda assim, ele voa lá pra cima. — sua explicação fez todo o sentido naquela época.
— Eca... — resmunguei, vendo meu irmão passando a língua nos pneus do carrinho.
— Caleb, não faça isso, é feio! — papai disse, indo em sua direção. Meu irmão continuou com a língua em um dos pneus do carrinho até que nosso pai tomasse de suas mãos o brinquedo.
Ele saiu correndo, com certeza, estava indo chorar no colo da nossa mãe.
— Somos só nós dois agora. — assenti, dando meu melhor sorriso de garoto de dez anos.
— O que são? — perguntei, aproximando-me para ver melhor a palma de sua mão, que estava com umas bolinhas marrom que mais pareciam fezes de ovelha.
— Um presente. — respondeu, pegando minha mão e colocando as bolinhas estranhas.
— Que presente sem graça, pai! — reclamei com desgosto.
— São sementes de Jacarandá Mimoso.
Naquela época não entendia o sentido de plantar uma árvore, contudo, ela havia tornado-se uma das melhores lembranças com meu pai.
Ficar um ano e três meses longe de tudo, não amenizou meu martírio de ter passado por algo tão traumático. Nunca trouxe problemas para casa, muito menos falei com alguém sobre o ocorrido. Simplesmente de uma hora pra outra decidi ir embora sem aviso prévio, apenas quis fugir de tudo e todos. Joguei todas as responsabilidades da empresa em Caleb, sem sequer consultar sua opinião. Irresponsabilidade? Sim, com certeza! Quando a bomba caiu nos ouvidos de todos, passei a ser incomodado com ligações persistentes, precisei mudar de número, porque não queria falar com ninguém que não fosse meu irmão. Ele nunca soube a verdade e era melhor assim, não queria que ele me enxergasse diferente por causa de um erro meu.
Retornar para o Brasil deixou claro que certas coisas eram impossíveis de não ser revividas. Eu não era o mesmo Bernardo que saiu do país para tentar suportar a dor. O novo Bernardo voltou tão cheio de culpa e arrependimento.
— Você voltou mesmo. — Caleb disse, batendo a porta com força. Discrição era tudo que meu irmão não tinha, talvez fosse um caso perdido.
— Caleb, tem ido trabalhar desse jeito? — questionei. Ele não desistia de usar seus ternos cafonas. Ele era um tanto quanto ingênuo demais, não percebia que os mesmos que elogiavam seu estilo esquisito na empresa, riam dele pelas costas.
— Bom te ver também, Bernardo. — respondeu, dando seu sorriso metálico por conta do aparelho dentário.
— Tira esse terno cafona da minha frente. — resmunguei de cara feia. Ele era meu irmãozinho, não queria que ninguém ofendesse ele. Apesar dele ter barba no rosto e vinte e sete anos, continuava sendo aquele menino bobo que costumava mastigar os lápis da escola, pelo menos pra mim era assim que enxergava-o.
— Pensei que voltaria menos mal-humorado. — Caleb, me abraçou forte dando um tapinha nas minhas costas antes de afastar-se.
— E eu pensei encontrar um irmão, bem, menos escandaloso. — falei, gesticulando com as mãos.
— Bem-vindo de volta ao lar! — revirei os olhos com a dancinha desarticulada que ele fez.
— Não faça mais isso! — reprovei lhe dando um tapa de leve no rosto. — Você pode evitar fazer esse tipo de coisa na minha frente? Caleb, dança nunca foi seu ponto forte.
— Qual é? No fundo você sente inveja desse meu jeito espontâneo. — disse ele, arqueando a sobrancelha esquerda.
— Inveja? Quem sempre cuidou de você? — perguntei, pressionando seu ombro com meu dedo indicador e continuei. — Eu ajudei trocar suas fraldas e apanhei por sua causa na escola enquanto defendia você dos valentões!
— Droga! Não posso argumentar contra fatos. — resmungou, franzindo a testa.
— Você nunca foi o mais inteligente da família. — debochei.
— É, assim então? Quem foi que fugiu para Portugal pra curtir férias?
— Não foram férias... — rosnei, rangendo os dentes.
— Eu sei que não. — disse recuando ao perceber que me deixou alterado. — Talvez nunca me conte a razão de ter fugido daquele jeito, mas saiba que independente do que seja, somos irmãos e estarei sempre do seu lado.
Odiava aquele sentimentalismo dele, me sentia tão pequeno.
— Melhor você ir embora, estou cansado. — menti descaradamente, coçando a sobrancelha direita por conta do nervosismo.
— Cara, não precisa fingir ser forte o tempo inteiro. — desviei meu olhar do seu. — Não vou mais insistir, você acabou de chegar ao país. Bom descanso, Bernardo.
Quando meu irmão saiu pela porta comecei a chorar. Por mais que eu quisesse falar com alguém do que tanto me machucava, optei pelo silêncio. Talvez o trabalho tirasse um pouco da minha cabeça tudo que tanto tirava meu sono. Logo todos notariam que não era o mesmo de antes, aquele outro não existia mais.
Marcela AndradeEu sabia que a partir do momento que Bernardo Fonseca chegasse minha tormenta começaria. Quais as chances de dividirmos o mesmo elevador? Era impossível, certo? Afinal, usava o elevador de serviço! Como de costume peguei o elevador para iniciar a limpeza no quinto andar naquela manhã, então o vi no seu terno azul-marinho e com uma barba enorme que combinou perfeitamente na simetria de seu rosto. Beleza era algo que nunca lhe faltou, não era à toa sua fama de mulherengo, ele realmente era um homão da porra. Entrei em desespero ao perceber que ele estava vindo na minha direção. Esbugalhei os olhos, apertando diversos botões diferentes para que as portas do elevador fechassem rapidamente, no entanto, isso não aconteceu.— Merda... — resmunguei
Bernardo FonsecaPor que escolhi subir pelo elevador de serviço? Porque eu não queria ser incomodado por ninguém! Quando vi o elevador de serviço disponível apressei os passos e adentrei. Era pra ser um trajeto rápido, no entanto, não foi, e a companhia também não era das melhores. Marcela Andrade escolheu o pior momento para me enfrentar. Eu não esperava qualquer discussão com aquela mulher, mas ela me fez perder a razão.Ela era alguém que costumava aborrecer propositalmente pra passar o tempo, porque nem todos os dias conseguia tempo para transar no escritório por exemplo, então a gorda me divertia. O incidente no elevador era algo que não esqueceria tão cedo. Chorei na frente daquela mulher e ela achou que fosse de raiva, mas n&a
Marcela AndradeAcordei sentindo dores pelo corpo inteiro, não pensei que perderia a consciência. Quanto tempo fiquei desacordada? Com dificuldade sentei na cama. Olhei para o soro do meu lado direito e fiquei incomodada, conseguia sentir a agulha enfiada no meu braço. Eu estava realmente em um hospital? Quer dizer, nunca antes havia estado em um leito sozinha e tão elegante como aquele. Os atendimentos pelo sus nunca foram dos melhores, com certeza, era um hospital caro e eu não tinha dinheiro para pagar.— Merda! Preciso dá o fora desse lugar. — resmunguei, bastante preocupada. Mesmo sentindo muita dor levantei da cama e puxei o soro, tirando-o do gancho de suporte. Caminhei descalça pelo piso frio indo em direção à porta, faltava muito pouco para minha fuga desesperad
Bernardo FonsecaEu não pensei que fosse tão fácil convencer Marcela Andrade há assinar um contrato. Não planejava cobrá-la com os gastos do hospital particular, pagaria sem problema algum, afinal, um dos meus funcionários deixou-a machucada. Ela nem sequer agradeceu e ainda me agrediu. O contrato foi feito às pressas e entregue pra mim no hospital. Usá-la como uma das minhas modelos plus size foi a desculpa perfeita para meus planos reais. Queria estar na sua frente quando ela recebesse a cópia do contrato, mas isso não era possível e muito menos sensato da minha parte.Ser pobre não deveria ser tão ruim assim, ela tinha um trabalho e pelo seu tamanho, com certeza, comia bem e muito. Nunca gostei de mulher acima do peso, elas dão gastos de mais.
Marcela AndradeQuais são as chances do homem que você gosta, estar te tratando como uma rainha? Poucas claro! Rafael nos últimos quatro dias depois do que aconteceu comigo decidiu ser meu companheiro de todas as noites. Que companheiro maravilhoso! Passávamos horas coladinhos no meu sofá de dois lugares, assistindo filmes. Naquele momento estávamos bebendo cerveja enquanto conversávamos assuntos aleatórios. Deixei de tomar as porcarias que o médico receitou, não me fez muito bem, então cortei.Nunca antes estivemos tão próximos daquele jeito, precisou algo ruim acontecer para o melhor vir. Eu não queria saber de nada além de aproveitar sua companhia. Talvez fosse o momento de dar uma investida, tentei deixar de lado o nervosismo e olhei nos seus l
Bernardo FonsecaNa noite anterior mal consegui dormir porque Marcela Andrade roncava como um motor de carro do século passado. Levantei algumas vezes durante a madrugada, até filmei o jeito estranho que ela estava dormindo no sofá de dois lugares. Acredita que seu pijama era uma fantasia de panda? Infantil, eu sei! Fiquei surpreso ao descobrir que ela era advogada. O que mais eu não sabia sobre ela? Apesar do seu apartamento ser minúsculo tudo era bem organizado. O cheiro dela ficou pela cama inteira e posso afirmar que não era nada mau.Passar a tarde e a noite do dia anterior com ela foi uma verdadeira guerra. Brigamos por comida e também pelo controle da tv. Ela não queria dividir nada comigo, nadinha! Mas como um bom lutador insisti até conseguir tudo que queria.
Marcela AndradeDe todas as tragédias que poderiam me acontecer, aquela sem dúvida, era uma delas, que sequer pensei que pudesse acontecer. Inventei uma desculpa para ficar longe daquele escroto e ele acabou com os meus planos. Odiava a forma como ele me atiçava sem ao menos dizer qualquer palavra. Odiava a maneira com a qual tentava me manipular. Odiava o simples fato dele existir e ser tão presente de um jeito cruel na minha vida.Bernardo Fonseca chamava atenção em qualquer lugar, no supermercado não foi diferente. Não queria sua companhia, no entanto, caminhávamos juntos pelos corredores. Por que ele tinha que se intrometer? Eu não tinha chamado ele para o supermercado! Apenas queria ficar sozinha e por alguns minutos, esquecer tudo de ruim que estava acontecendo comigo, entret
Bernado FonsecaNão sei em que momento fui parar no terraço daquele condomínio, mas aconteceu. Os olhos tristes de Marcela não saiam da minha cabeça. Eu era como aquelas duas que estavam conosco no elevador, entretanto, dez vezes pior. Não foi divertido ter presenciado toda aquela situação, não intervi porque pensei que a qualquer momento a mulher feroz que havia dentro dela fosse surgir, no entanto, ela não fez nada, simplesmente nada! Chorar e se trancar no banheiro não era a solução. Me senti tão envergonhado, por ter feito coisas piores com ela. Foram tantas brincadeiras e piadinhas de mau gosto, apenas para minha diversão.— Até mesmo o diabo sabe a hora certa de se redimir. — murmurei, sabendo exatamente o que deveria ser