Tortura líquida

David Lambertini

Acordo com o som irritante do alarme que esqueci de desligar. Me viro na cama, o rosto enterrado no travesseiro, e a primeira coisa que me vem à mente é o risco iminente de minha mãe, a dona Liana, me matar se souber que passei a noite na esbórnia novamente. Ela não precisa de provas, bastam suas suspeitas para transformar meu dia em um verdadeiro inferno. Meu QI, que já foi exaltado por muitos como “acima da média”, não me salva de sua fúria, mas me permite antecipar suas jogadas como num tabuleiro de xadrez.

Hoje é um dia de responsabilidades, mas não posso evitar pensar em como meu aprendizado nunca foi moldado por teorias acadêmicas. Meu verdadeiro treinamento aconteceu na prática, no calor das decisões arriscadas, onde uma palavra errada ou um movimento em falso pode custar milhões, ou vidas. Empreendedorismo, desenvolvimento de novos negócios…

Tudo isso soa como palavras bonitas para o que realmente fazemos, expandir, dominar e garantir que ninguém se atreva a desafiar os Lambertini.

Fisicamente, sou uma extensão do meu pai, o Dom Vittorio Lambertini, o homem que comanda destinos com um simples gesto. Alto, cabelos castanhos, com olhos de um azul tão intenso e frio que parecem esculpidos em gelo, minha aparência precede a minha reputação. As pessoas me respeitam antes mesmo de ouvir minha voz, mas, quando eu falo, é como se o ar fosse retirado da sala. É o legado de meu pai, transmitido no sangue.

Meu irmão Darlan é outra história. Ele herdou a mesma presença imponente, mas somos opostos em essência. Ele é o caos, eu sou a ordem. Enquanto eu prefiro a estratégia precisa, ele se move no turbilhão da imprevisibilidade. Ele é um gênio em sua própria maneira destrutiva, e, por mais que ele me irrite, não há ninguém em quem eu confie mais quando o assunto é proteger a família. Somos peças opostas no mesmo tabuleiro, mas, juntos, formamos uma força que ninguém ousa desafiar.

Sentado no escritório da casa, reviso relatórios enquanto a luz do sol entra pelas janelas enormes. Negócios. Sempre negócios. Tento me concentrar, mas as risadas despreocupadas de Alice e Alícia, minhas irmãs gêmeas de quinze anos, me tiram do foco. Olho pela janela e vejo algo que me desarma, o meu pai, o Don Vittorio, o homem mais temido da Argentina, brincando com as meninas na piscina. Não há traços do líder implacável, apenas um pai sorridente, completamente entregue ao momento.

Por um instante, sinto algo que raramente experimento, a inveja. Não do poder dele, isso eu entendo e respeito, mas da sua habilidade de se equilibrar nos dois mundos. Ele governa com ferro e fogo, mas ainda é capaz de amar a família sem reservas. Será que algum dia conseguirei isso?

— David, o almoço está na mesa. — A voz firme de minha mãe me arranca dos pensamentos.

Dona Liana não precisa de palavras para se impor. Sua simples presença transforma o ambiente, alinhando todos nós com um olhar firme. Quando ela entra na sala de jantar, até Don Vittorio, o temido chefe da máfia, ajusta a sua postura. O aroma inconfundível da comida dela já preenche o ar, um convite irresistível e, ao mesmo tempo, uma lembrança do poder absoluto que ela exerce dentro de casa.

Ela faz questão de preparar tudo pessoalmente, uma tradição que nem os melhores chefs contratados ousam questionar. A comida é impecável, mas o suco... Ah, o maldito suco. Quando ela começa a servir, cada um de nós recebe um copo daquela gosma, o líquido rubro, um misto de coisas associada a limão e beterraba que todos detestamos. Meus irmãos trocam olhares cúmplices, e até Don Vittorio respira fundo antes de encarar o desafio.

— Vamos lá, é só um suco. — ela diz, sua voz doce, mas carregada de autoridade. Não há espaço para recusa. Recusar significa convidar um castigo muito pior, algo que todos aprendemos da maneira mais difícil.

Engulo o suco sem pestanejar, apesar de cada gole ser uma tortura líquida. Ao meu lado, Darlan faz uma careta discreta, mas logo se recompõe ao encontrar o olhar de nossa mãe. Até Don Vittorio, que reina sobre um império de ferro, não ousa desafiá-la nesse território. Porque aqui, na intimidade do lar, Dona Liana é quem manda. E ninguém, absolutamente ninguém, tem coragem de contrariá-la.

Olho ao redor da mesa enquanto todos comem e conversam. Meu pai está tranquilo, como se não fosse o homem mais poderoso da sala. Darlan, sempre inquieto, brinca com uma faca de pão, enquanto Alice e Alícia discutem sobre algo trivial. Minha mãe observa tudo com um olhar calmo, mas atento. Ela conhece cada um de nós melhor do que conhecemos a nós mesmos.

E, enquanto termino o meu suco, sinto novamente aquela inquietação. É curioso como tudo parece tão perfeito aqui, como se cada peça estivesse exatamente onde deveria estar. Mas, no fundo, existe algo que não consigo nomear. Algo que todos nós sabemos, mas ninguém ousa dizer em voz alta.

O que é? Talvez tenha algo a ver com o respeito quase reverencial que todos sentimos por minha mãe. Não é apenas amor ou admiração. É algo mais profundo, mais sombrio, como se houvesse um segredo enterrado em nosso sangue. Algo que nos mantém unidos, mas que, se revelado, poderia destruir tudo.

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