Roania, o centro de todos acontecimentos estranhos do passado, era uma bela, pacata e diminuta cidade. Seu centro resumia-se a uma pequena praça. A economia do local era baseada na agricultura e no comércio local, só havia uma fábrica pequena instalada na cidadela. O município era adornado por inúmeras árvores, lagos e uma pequena cachoeira que encontrava-se dentro da mata que ladeava o lugar. O índice de criminalidade de Roania era razoavelmente baixo, apenas pequenos furtos eram vivenciados com mais frequência. Dava-se para contar nos dedos o número de mortes.
Um dos pontos importantes da cidade era a montanha Cirana, que sempre fora considerada como sagrada. Havia a persistente história em torno dos demônios que tinham sido subjugado naquele local, muitos achavam que era apenas uma lenda; outros acreditavam devotamente no acontecido. Por isso, o local era alvo frequente de visitas. Pessoas subiam até o alto da montanha somente para rezar e até mesmo depositar oferendas ou fazer promessas. Havia ainda aqueles que gostavam de meditar naquele lugar. Um grande misticismo era depositado ali.
A Montanha Cirana não era tão alta e com o tempo escadarias foram construídas para chegar-se com mais facilidade ao topo. Do cume, tinha-se uma bela visão de toda Roania, as pessoas adoravam contemplar a cidade dali.
Outro ponto de destaque de Roania, era o Templo de Cirana, onde estava guardada a Urna Imaculada de Almas. Era outro artefato de extrema importância da história da cidade. O templo era muito antigo, existindo no local desde a fundação de Roania há quatrocentos anos, contudo fora rebatizado como Templo de Cirana quando este acolheu a Urna com os demônios capturados na montanha de mesmo nome.
A Urna esteve sempre lá, presente. Entretanto, a dúvida era costumeira entre as pessoas. Havia mesmo demônios enclausurados naquele receptáculo? Apesar das incertezas, ninguém quis atrever— se em abrir a tal urna, preferiam não arriscar.
O Templo de Cirana era pequeno e bem ornamentado. Possuía lindos vitrais e esculturas ainda mais belas, muitas delas esculpidas em ouro. Geralmente eram custeadas pelos moradores de mais posses da cidade. Havia ainda uma pequena biblioteca em seu interior.
Padre Roberto era o atual responsável pela guarda do artefato, assim como seus dois auxiliares e aprendizes, Ciro e Rodolfo. Talvez a Urna Sacra fosse o item mais valioso daquele lugar, não pelo seu material, mas sim pela história que a envolvia.
Rodolfo e Ciro eram bons rapazes, ambos de famílias de bem. Ciro tinha dezesseis anos e Rodolfo vinte e dois. A presença de ambos era constante no templo.
Ciro era um garoto despreocupado, típico de sua tenra idade. Não era muito bonito nem mesmo zeloso com sua aparência. Vestia-se de forma desleixada, seus cabelos estavam sempre bagunçados, quase sempre deixava de cortá-los, isso só era feito com muita insistência de seus pais. Passava o dia comendo, vez ou outra havia farelo de bolo ou biscoito em suas roupas. Estava sempre alegre, ostentando um sorriso em seu rosto.
O companheiro de Ciro era muito diferente. Rodolfo gostava de estar sempre bem vestido, barba feita e cabelos alinhados. Muitas moçoilas iam ao templo somente no intuito de admirá-lo. Apesar de não ater-se a isso, a admiração das garotas enaltecia seu ego.
O padre prezava pela segurança da urna e cobrava muito a atenção e cuidados dos rapazes, principalmente de Ciro que era mais desligado. Uma vez, em sua falta de concentração, Ciro esqueceu-se de trancar o templo; em outra ocasião esqueceu-se de guardar a urna após um dia de exposição da mesma. Fora repreendido duramente pelo padre.
O jovem Rodolfo era muito sério, de poucas palavras, o oposto de Ciro. Ele estava sempre muito atento a tudo o que padre falava, absorvia sempre seus ensinamentos com extrema facilidade. Conhecia cada canto daquele sagrado espaço de orações da cidade. Estava sempre mexendo e organizando tudo com parcimônia.
O tutor dos rapazes costumava dividir as tarefas dos dois em partes iguais, esperava o mesmo desempenho de ambos. Apesar do padre estar sempre pegando no pé de Ciro com maior frequência, não fazia diferenciação entre eles, gostava muito dos rapazes da mesma forma.
Rodolfo não concordava muito com a maneira de tratamento igualitária. Ele acreditava que deveria receber uma atenção privilegiada, pois já estava lá há mais tempo que Ciro e considerava sua dedicação ao templo melhor que de seu companheiro. Seu modo de pensar acabava por deixá-lo constantemente de mau humor.
Padre Roberto, muitas vezes percebia o desconforto do rapaz e costumava tentar amenizar a situação.
— Entenda, Rodolfo, ele ainda é muito jovem. Precisamos auxiliá-lo para que se torne um adulto tão responsável quanto você.
— Desculpe, padre. É que às vezes ele realmente me irrita. Falta-me paciência.
— O Ciro é um bom garoto.
— Prometo que vou tentar ter mais paciência com ele.
— Fico feliz.
***
Os dias iam passando-se e Rodolfo até tentava ser mais complacente, contudo a displicência de Ciro muitas vezes o tirava do sério. O garoto, por sua vez vivia desculpando-se por seus deslizes com um habitual sorriso no rosto, o que amenizava um pouco a situação. Mesmo assim, Rodolfo alfinetava o garoto com muita seriedade.
— Olhe só, Ciro. Você esqueceu-se de novo de trocar a água dos vasos, era sua tarefa fazer isso. Olhe como isto está mal cheiroso. Está me dando ânsia. — Ele erguia um vaso de vidro que já tinha sua água em putrefação.
— Perdoe-me, fui mesmo muito relapso, prometo não me esquecer de novo.
—Você está sempre prometendo melhorar. Precisa começar a cumprir suas promessas, Ciro. — Rodolfo respirou fundo e tentou manter sua voz tranquila.
— Sinto muito mesmo. — O rapazote sempre ficava abalado com os próprios deslizes.
Ciro era sincero em suas palavras, todavia algo sempre acabava lhe desviando as atenções. Ora era um livro da biblioteca que prendia sua concentração, ora um quitute que precisava deliciar-se com certa urgência e algumas vezes a presença da jovem e bela Pilar, esta sim, era a maior causadora dos contratempos que acometiam a prudência dele. A jovem estava sempre saracoteando por ali junto as suas amigas. Ela comparecia quase todos os dias no templo, somente por causa de Rodolfo. Era apaixonada por ele, porém o sentimento não era recíproco.
Pilar estava no auge de seus dezoito anos. Era uma garota alegre e tagarela, estava sempre bem vestida e perfumada. Tinha longas madeixas douradas. Rodolfo achava que ela era uma garota muito atirada, não gostava do comportamento dela. Em contrapartida, Ciro suspirava toda vez que a moçoila adentrava o local. Seus olhos negros e singelos, brilhavam a cada palavra despejada por Pilar, tudo soava como poesia para ele.
O fato de Rodolfo não dar a mínima atenção à garota, corroborava para que ela passasse muito tempo dialogando com Ciro. Era uma forma de ela estar presente ali. No fundo ela até gostava de conversar com o rapazote, pois ele era um dos poucos que tinha paciência infinita para ouvir as inúmeras histórias que ela gostava de explanar.
O coração de Rodolfo pertencia a Kátia, uma das amigas de Pilar. Ela era apenas um ano mais velha que Pilar. Costumava estar junto a ela algumas vezes em suas visitas ao templo. Kátia era uma garota um pouco mais reservada, em certos momentos apresentava certa timidez. Sua mãe era japonesa e ela herdara os traços orientais de sua mãe. A jovem mestiça não apresentava vaidade. Não usava maquiagem ou adornos e gostava de manter seus cabelos lisos, sempre muito curtos. Tinha um sorriso angelical que apresentava covinhas quando estava em seu rosto.
A despeito de todo seu interesse na moça, Rodolfo não costumava demonstrar a ninguém, tentava ser o mais discreto possível. Mas o padre já tinha notado a paixonite há muito tempo, não era bobo. O olhar de Rodolfo para a garota o entregava. Todavia, o reverendo preferia não mencionar o assunto para não constranger o rapaz.
Padre Roberto apenas observava atento a tudo que referia-se aqueles jovens e divertia-se com toda a situação, adorava a juventude e o modo como eles viviam intensamente seus dias. Eram aqueles momentos que faziam com que ele relaxasse um pouco quanto a sua preocupação em relação à urna e o perigo da mesma cair em mãos erradas. Desde o dia que assumira a responsabilidade naquele lugar, atentava-se grandemente ao objeto e zelava com grande cuidado para com o mesmo.
Era uma bela manhã de Domingo, Kátia e sua irmã mais velha Akemi estavam preparando-se para irem ao templo de orações. Elas moravam com seu pai no centro da cidade, muito próximas do Templo de Cirana. A mãe das garotas havia falecido há muitos anos. Akemi também tinha traços orientais assim como sua irmã. Elas moravam com seu pai, o senhor Alcebíades.Akemi já tinha completado seus vinte e sete anos e nunca interessou em casar com ninguém, apesar dos inúmeros pretendentes que possuía. Seu maior interesse era cuidar de sua irmã e de seu pai, que já não andava há cinco anos, devido a um acidente de carro que sofrera. Desde então passou a locomover-se com uma cadeira de rodas.Eles possuíam uma pequena loja de roupas na cidade. Akemi
Findado o final de semana, o padre Roberto acordou muito cedo, como era de seu costume, pois tinha suas energias vitais plenamente renovadas após uma boa noite de sono. Acariciou o pequeno Feioso em sua barriguinha e logo após alimentou o animalzinho. Após suas tarefas corriqueiras, ele despediu-se de seu companheiro e rumou ao templo, provavelmente ainda não encontraria os garotos por lá devido ao horário, por isso pegou seu molho de chaves e saiu.O sol também não havia nascido, o padre abeirou-se do Templo de Cirana, quando algo chamou sua atenção. Notou que a porta principal estava entreaberta. Que estranho, por que os garotos chegariam tão cedo assim? Pensou ao ver a cena.Adentrou lentamente, tateou a parede procurando o interruptor de luz, pois o local encontrava-se até ent&
O entra e sai de pessoas na sofisticada bomboniere da senhora Justine, era constante. Era a mais movimentada de Roania e famosíssima pelos seus bolos e tortas memoráveis. Inúmeras encomendas eram feitas a todo instante. Muitos clientes costumavam deliciar- se ali mesmo, mesinhas estavam dispostas para que os mesmos pudessem degustar aqueles apetitosos quitutes e passarem agradáveis momentos durante seu dia na Justine Bolos e Cia.Era um local de muito prestígio e plenamente respeitado. Contudo algo duvidoso andava intercorrendo lá dentro que era de total desconhecimento dos outros cidadãos de Roania. A proprietária do estabelecimento iniciou uma sequente série de reuniões noturnas. Nelas costumavam estar presentes seu filho, Arnaldo. Ernesto, o coveiro da cidade. Rose, uma jovem professora de jardim de infância e Rodolfo.
Pela manhã, no templo, Ciro e Rodolfo preparavam tudo para mais uma das celebrações rotineiras. Rodolfo, como sempre não exprimia muitas palavras, desempenhava suas tarefas de modo mecânico, assemelhava-se a um robô.Ciro, inverso ao seu colega, era constantemente mais indulgente, sempre à disposição. Andava muito preocupado com o clérigo, que já não desbaratava mais sua alegria costumeira. O homem estava ofuscado por ler todos os jornais e ouvir os noticiários. Tinha grande apoquentação em relação a cidade, temia que algo maléfico pudesse acontecer.—Não fique assim, padre. Não irá acontecer nada de ruim. Tenha fé nisso. —Um misto de culpa e preocupação dominavam o cerne do jovem Ciro.
A cidade havia amanhecido movimentada. Rodolfo cursava sua trajetória habitual ao templo, quando defrontou-se com carros de bombeiros dobrando a esquina da alameda por onde ele andejava. Ele seguiu na mesma direção, quando deparou-se com a sorveteria em frente a loja de bolos de Justine, em chamas.O jovem casal proprietário do local estava ao lado de fora, olhando todo o alvoroço. Estavam desalentados, pois aquele comércio era a fonte de renda deles. Amigos tentavam aplacar-lhes ao padecimento.Rodolfo parou por alguns instantes e atentou-se a toda balburdia que acontecia por ali. Por alguns segundos viu Merônia e Maiityh saírem de dentro daquele espaço, em meio às línguas de fogo. Notou que Merônia não estava mais atadas às suas correntes. Elas eram perceptíveis apenas a Rodolfo
Ernesto já estava ciente dos acontecimentos que apontavam o início do triunfo sendo alcançado por Justine e seu filho, assim como Rodolfo. Estava ansioso por bons ventos soprando a seu favor também. Parte de seus desejos estava realizando-se. No dia posterior ao pacto, Maiityh apossou-se do princípio vital de sua esposa, Catarina. O coveiro presenciou ao momento em que o ser maligno aproximou-se da mulher e assim como fez com a jovem Kátia, sussurrou ao seu ouvido. A jovem senhora sentiu um grande mal estar e desfaleceu no mesmo instante. Ernesto acudiu-lhe prontamente, ficou um pouco assustado. Chegou inclusive a duvidar da decisão que tomou ao selar o perverso acordo. No entanto, sabia que não havia mais volta. Estirou Catarina em sua cama e ficou ali assistindo a mulher empalidecida e de lábios desidratados por mais de quarenta minutos, quando a mesma finalmente acordara. Aos
Na cidade de Roania, as notícias propagavam-se demasiadamente célere, assim como em qualquer lugar pequeno. Era de conhecimento de todos o enriquecimento do coveiro, o triste acontecimento aos pais de Rose e todos os tópicos alusivos a este grupo. Os comentários em torno desses assuntos eram geralmente de inveja, despeito ou mesmo de inconformidade, principalmente no que dizia respeito a Arnaldo. Diversos cidadãos não conseguiam conceber como ser humano como ele adquiria tantas coisas sem esforço algum. Contudo uma pessoa entre todas, não compartilhava dos mesmos sentimentos dos outros, só adquiriu enorme tristeza em seu coração. Era Pilar que através de outras amigas elucidou o namoro de Kátia e Rodolfo. O seu adorado Rodolfo. A moça ficou muito desapontada, pois além do desengano amoroso em relação ao rapaz, desmedido dissabor rompeu em seu cerne, considerava Kátia uma de suas
A vida fluía perfeitamente bem aos conluiados dos demônios. Estavam todos contentes a exceção de Rose. No entanto o mais feliz de todos era Rodolfo, que apesar de não ter exigido bens materiais, ter Kátia ao seu lado era para ele, enorme riqueza.Kátia, por sua vez, não era mais a mesma pessoa. Antes, uma garota gentil, tímida e amigável. Agora portava-se de maneira áspera, desinibida e transbordava vaidade. Dentro de casa, não colaborava com os afazeres domésticos como antes, tampouco habilitava— se em ajudar Akemi na lojinha. Preocupava-se apenas com frivolidades ou em passar seu tempo ao lado de Rodolfo.Akemi andava muito chateada com sua irmã, muitas vezes acabavam por discutir. O senhor Alcebíades estava ainda mais desolado. Logo sentiram que o namoro da garota com Ro