Capítulo três

Findado o final de semana, o padre Roberto acordou muito cedo, como era de seu costume, pois tinha suas energias vitais plenamente renovadas após uma boa noite de sono. Acariciou o pequeno Feioso em sua barriguinha e logo após alimentou o animalzinho. Após suas tarefas corriqueiras, ele despediu-se de seu companheiro e rumou ao templo, provavelmente ainda não encontraria os garotos por lá devido ao horário, por isso pegou seu molho de chaves e saiu.

O sol também não havia nascido, o padre abeirou-se do Templo de Cirana, quando algo chamou sua atenção. Notou que a porta principal estava entreaberta. Que estranho, por que os garotos chegariam tão cedo assim? Pensou ao ver a cena.

Adentrou lentamente, tateou a parede procurando o interruptor de luz, pois o local encontrava-se até então muito escuro. Assim que a luminescência invadiu o ambiente, ele ficou chocado com o cenário que desenhava-se a sua frente. Estava tudo uma balbúrdia, algumas cortinas arrancadas das janelas, bancos arrastados, inúmeros objetos quebrados e todas as esculturas valiosas tinham sumido.

O homem ficou pétreo, não sabia o que pensar. Olhava para todos os lados ainda preocupado, pois temia que ainda pudesse ter alguém ali. Tomou posse de um vaso que ainda restava no lugar e caminhou lentamente, atentando-se para não produzir nenhum ruído. Sua primeira atitude foi ir até a biblioteca, onde estava a Urna Imaculada.

Atravessou o pequeno corredor e introduziu-se na biblioteca. No instante que pôs seus pés no lugar, deixou cair o vaso de suas mãos, causando enorme estrépito. Cacos foram espalhados por todos os lados. O baú de ferro que continha a urna estava aberto.

Apavorado, o homem correu até o baú e para seu desespero o objeto tão precioso não estava mais lá dentro. Vasculhou toda a biblioteca na esperança de que a urna pudesse estar em qualquer canto dali, não conseguia acreditar que tal tragédia pudesse estar acontecendo. Levou suas mãos à cabeça, sua tez estava desbotada e seus olhos arregalados. Uma gota de sangue escorreu de sua mão e percorreu sua face. Tinha um corte inserido em sua pele devido a um fragmento do vaso quebrado.

Pouco depois do sol nascer, Rodolfo e Ciro, chegaram ao templo. Ao cruzarem a porta, ficaram abalroados. Correram até o interior da biblioteca onde o padre ainda estava inconsolável e sem saber que atitude tomar. Sua fisionomia era enevoada.

— Padre! Padre! — Ciro bradou ao ver o homem sentado no chão ao lado do baú. — O que aconteceu? O senhor está machucado, quem foi que fez isso? — Sua preocupação era em relação ao seu tutor, não deu atenção ao baú escancarado e vazio.

— Eu não sei, meu filho. Eu entrei aqui e já estava tudo revirado. — o padre respondeu num muxoxo.

— Mas o senhor está ferido. O que aconteceu? – Ciro continuou o interrogatório.

— Eu apenas me cortei com esses cacos. — O padre tinha o olhar perdido. — Acho que estou bem, não se preocupe comigo.

Rodolfo apenas andava de um lado ao outro, observando e analisando todo o cenário enquanto Ciro prestava auxílio ao reverendo.

— Quando o senhor chegou aqui já estava tudo desta forma? — Rodolfo perguntou serenamente ao padre.

— Sim, tudo revirado. Roubaram tudo o que podiam mas o que realmente me preocupa é que levaram a urna. Isso realmente não deveria ter acontecido. — O homem articulava as mãos enquanto proferia aquelas palavras. Sua preocupação era notória.

— O interessante é que não vejo nenhum sinal de arrombamento, nem nas portas ou mesmo no baú de ferro. — Rodolfo fazia suas colocações com tranquilidade. — É como se quem entrou aqui tivesse encontrado já tudo destrancado.

— O que você está insinuando, Rodolfo? — O padre encarou o rapaz nos olhos, sentiu uma pontinha de crueldade pairando no ar.

— Isso significa que mais uma vez nosso amigo, Ciro esqueceu-se de trancar tudo, não é Ciro? – Ele espetou Ciro e fulminou— o com os olhos sérios.

— Eu... eu não me lembro. Ontem estava tudo tão agitado aqui, achei que você que fosse fazer isto. —Ciro encontrava-se perdido com suas lembranças. Seu rosto encontrava-se acarminado.

— Você não se recorda porque estava desatento, como sempre. — Rodolfo era severo. — Ficou perdendo tempo em dar atenção aquela garotinha azucrinante e não cuidou de suas obrigações.

— Eu sinto muito. — Os olhos de Ciro encontravam-se marejados. Estava realmente perturbado com o ocorrido. A culpa começava a oxidar— lhe o âmago.

— Sente muito? É só isso que ouço de você o tempo todo. — Rodolfo mostrava gigante inconformismo.

— Já chega! — O padre recompôs-se. — Não é hora de ninguém acusar ninguém aqui. Precisamos avisar a polícia, tentar ao menos recuperar a urna antes que seja tarde demais. Espero que não seja tarde. Ainda pensou com grande amargura e medo.

Os jovens permaneceram em silêncio, notando o nervosismo daquele homem. Rodolfo mantinha uma expressão nebulosa. Não gostava da intercessão indireta que o padre acabava sempre por fazer por Ciro.

Poucos minutos depois havia muitos policiais no local. Periciavam todo o templo e faziam perguntas ao padre e aos garotos. Inúmeros curiosos espalhavam-se ao lado de fora, querendo informações sobre o ocorrido. Porém a polícia havia isolado o ambiente. Nenhum cidadão poderia entrar.

Depois de muito analisar a polícia chegou as mesmas conclusões que Rodolfo já tinha proposto. Todas as portas estavam abertas, não houve esforço algum dos meliantes diante da situação. Foram sugeridas algumas hipóteses como o esquecimento de fechar as portas da maneira correta. Os bandidos poderiam ter conseguido cópias das chaves ou até mesmo facilitação do crime por parte dos responsáveis.

A primeira hipótese era a mais provável e mais óbvia para o padre e seus jovens auxiliares. Por isso os policiais fizeram um interrogatório minucioso aos rapazes, pois ambos possuíam cópias de todas as chaves. Queriam saber se por ventura, algumas delas pudessem ter se perdido em algum momento. Queriam saber onde costumavam guardá- las ou se mais alguém tinha acesso às mesmas. Nenhuma informação relevante foi extraída dos jovens.

Sendo assim, todos foram dispensados e o templo ficou fechado durante dois dias seguidos. Nesses dois dias que seguiram, todos prestaram depoimento formal na delegacia. A polícia prometeu dar prioridade ao caso, tentar capturar os culpados e reaver os itens roubados. Todavia a única coisa que preocupava o reverendo era a urna. Ele nem se importava tanto com a recuperação dos outros objetos.

No terceiro dia que seguiu— se após o trágico acontecimento, padre Roberto e os rapazes começaram a limpar e reorganizar o Templo de Cirana. A vida não podia parar. O sacerdote passou o dia absorto com o noticiário local que ouvia em seu rádio à pilha, quase não deu atenção ao garoto. Pediu também ao jovem Ciro que comprasse o jornal da cidade a ele, queria estar informado sobre todos os acontecimentos que envolvia Roania. Seus pensamentos estavam focados na possível fuga dos demônios da urna.

                                                            ***

Enquanto era feita a arrumação no templo, Pilar e Kátia apareceram por lá. Kátia foi a contragosto, após muita insistência de sua amiga. A desculpa de Pilar era de ajudar aos rapazes com as tarefas.

— Viemos aqui para colaborar com o que for preciso. — Pilar esboçava seu belo sorriso.

— É muito gentil de sua parte. — Ciro respondeu com grande contentamento àquela frase.

— Ótimo. — Rodolfo não demorou em entregar uma vassoura na mão da garota. – Toda ajuda é bem vinda.

Pilar tatuou um parco sorriso amarelo em sua fronte, porém começou a varrer o altar com muita falta de jeito. Ciro ao perceber o desconforto da moça, pegou a vassoura das mãos dela e começou a varrer em seu lugar. Rodolfo meneou sua cabeça em tom de reprovação.

— Você é muito grosso mesmo. — Kátia com o cenho fechado, aproximou-se de Rodolfo e alfinetou— lhe.

— Qual o problema? — Rodolfo encarou Kátia. — Ela se ofereceu para ajudar, só incentivei para que começasse — Ele sentiu-se ofendido com as palavras da garota.

— Ela só estava sendo gentil. — A jovem oriental respondia rispidamente.

— Aqui não precisamos de palavras de gentileza, mas sim de ação de verdade.

— É difícil manter um diálogo com você mesmo. — Ela sentia que naquele momento, Rodolfo tinha certa razão, contudo não iria dar o braço a torcer. — Só te vejo tratar aos outros com esse seu ar de superioridade. Lamentável.

— Desculpe-me, Kátia. — Rodolfo logo percebeu que estava usando o caminho errado para chegar ao coração da garota. — Todos aqui estamos um pouco aflitos, o padre anda meio chateado e acaba passando um pouco de sua tensão para nós. Não queria ser rude com você nem com a Pilar.

— Não use isto como desculpa. Ou você pensa que nunca percebi o jeito como você sempre trata o coitado do Ciro, o pouco caso que você faz com a Pilar o tempo todo. Você poderia ser um pouco mais humano. — Ela não perdeu a oportunidade de alfinetá-lo.

— Você está certa, estou tentando camuflar minha impaciência com desculpas. — Rodolfo mantinha uma postura defensiva. Tentava não contrapor-se à jovem. — Você é muito inteligente, gosto do seu jeito. — Esboçou um belo sorriso.

— E eu não gosto do seu. — Ela era inflexível.

— Você é bem direta também. — Ele ficava perdido com suas articulações. Não era fácil fazê-la ceder.

— Com certeza. — A rispidez da moça era indissolúvel.

— Podemos fazer um acordo? — Rodolfo indagava com brandura.

— Que tipo de acordo?

— Prometo tentar ser mais tolerante, se você me ajudar.

— Olha, eu serei bem sincera com você. Não tenho nenhum interesse em lhe ajudar mas gosto muito do Ciro e da Pilar. Por eles posso fazer um esforcinho, mas não espere que eu me torne sua amiga. — Ela tentou acalmar-se.

— Tudo bem, me contento com isso para começar. — Rodolfo lançou um sorriso vitorioso.

— Está vendo só? Você não é nem um pouco humilde. — Kátia deu as costas para o rapaz e caminhou em direção de Ciro e Pilar que terminavam de juntar todos os cacos que estavam espalhados pelo chão.

O padre recolocava as cortinas nos seus lugares enquanto assistia aos jovens que trabalhavam com afinco para que tudo voltasse a sua normalidade, ou pelo menos parte dela. Em parcos momentos até esboçava um sorriso melancólico. Aquela garotada lhe trazia um certo acalanto em seu coração.

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