Demitre estaria morto. Ele estaria morto. Estaria morto.
Morto como Jota-jota. Pálido, flácido. Morto.
Não conseguia parar de olhar para ela. Então era assim que uma pessoa morta parecia normalmente. Essa informação atualizava a anterior, a imagem do homem rasgado no chão do banheiro. Era assim que pessoas costumavam morrer quando não eram atacadas.
Exceto que Jota-jota havia, sim, sido atacada. E não existia modo “normal” de morrer, existia?
Pensando bem, se num primeiro momento Demitre tivera a impressão de que a ex-colega de alocação dormia, agora se perguntava como pudera ter se enganado tão grosseiramente. Aquela nem sequer parecia Jota-jota. Ele nunca a havia visto com aquela expressão tão neutra no rosto, nem mesmo enquanto dormia — perfeitamente posicionada; frouxa, não como se descansasse, mas como se derretesse. O que era preciso fazer com uma pessoa para que ficasse daquele jeito? Será que todos ficavam daquele jeito em seu leito derradeiro
Os lençóis não pareciam novos, já deviam ter conservado o calor de muitos outros homens em situações semelhantes. Vince prezava isso. Havia algo de especial em como nada era especial no que se tratava dele. Estava na casa de um conhecido — agora podia chamá-lo de conhecido, considerando que era a terceira vez que o via —, o rapaz que conhecera na lanchonete perto de onde vinha morando; o primeiro com quem Vince arriscara deixar de ser quem havia sido por tantos anos. A essa altura, já não se lembrava muito de tê-lo encontrado por meio de um aplicativo; sabia seu nome: Raffe; perguntara à porta do apartamento dele naquele primeiro encontro concupiscente, depois que tudo já havia sido feito e dito, com corpos encobertos pelas roupas que minutos atrás teriam atuado como obstáculo. Admirou-lhe as costas nuas; eram tão brancas que ainda conservavam o contorno da palma de Vince, há pouco pressionada contra elas. Raffe se sentava na beirada, tragando e esbaforindo seu cigar
29 de julho, quarta-feira, Duas semanas antes do lançamento. — Abra os olhos quando estiver pronto — ciciou Ton. Estefen estava pronto desde que os fechara. Mesmo assim, respirou fundo uma última vez e soltou o ar. Gostava de meditar, apesar de nunca sentir que o fazia corretamente. Continuava praticando quase sempre que visitava Ton em sua câmara de simulação. Fitou outra vez o senhor de barbas brancas sentado à sua frente, com um sorriso sereno e acolhedor. — Como se sente? Sua resposta foi um acenar de cabeça quieto. A tensão que vinha petrificando os músculos dos ombros e do pescoço diminuía um pouco. Juntou os dedos e esticou os braços, espreguiçando-se. Depois, olhou pela janela, para as nuvens escuras e pesadas. Toda a apreensão continuava presente, de um jeito ou de outro, porém um feixe de esperança começava a competir por espaço dentro de Estefen. — Você tinha razão. Eu estava olhando
Demitre observava as luzes da rua, enquanto o carro seguia pela estrada larga. Sentia-se anêmico. O rosto de Jota-jota não saía de sua cabeça — primeiro, a versão viva e irritada; depois, a pacífica e morta. Lembrava-se de quando a conhecera; na época, ela trabalhava como bartender. Naquela noite, ele bebera sentado quase a noite toda, engolfado por um típico humor soturno; não tinha a recordação de pedir dose após dose, nem de Jota-jota servindo-o. Um homem de bigode, braços do tamanho de peças de presunto e um cheiro quente de suor seco se aproximara do bar e começara a berrar alguma coisa para a mulher; Demitre só percebera que algo ruim estava acontecendo quando vira Jota-jota puxar o punho de um aperto não consentido. Nunca descobrira o que o motivara a agir daquela maneira, mas se levantara e acertara o queixo do homem com o punho fechado. A próxima coisa da qual sabia, no chão da boate, era que tomara uma bela surra, e que, no final das contas, havia sido a própria Jo
Dessa vez, Vince bateu à porta de vime antes de tentar a maçaneta. Não ouviu convite sob a melodia que começara a alcançar o corredor assim que iniciara a simulação por meio do reconhecimento biométrico. Entrou mesmo assim. Sabia que encontraria as cortinas de voal dançando à janela, a luz quente e laranja de uma manhã perfeita, o perfume de coco e maresia; tudo estava lá; mas, além disso, e principalmente, encontrou Artur sentado no sofá. Sobre a mesinha de centro, via-se desdobrado um piano portátil, feito de silicone. O rapaz vinha tocando, concentrado, mas parou imediatamente ao ver Vince. — Desculpa, não quis interromper — redimiu-se Vince, surpreso por Artur não apenas saber tocar, como também dominar o instrumento com uma destreza admirável. Biônicos geralmente não se moviam com tanta velocidade e precisão; os dedos de Artur, por outro lado, voejavam ágeis e flexíveis por sobre as teclas. Artur sorriu. — Você voltou mesmo! Vince fez que
— Não precisa de mim? — investigou Fédra, num tom suposto a soar solícito. Já tinha, de todo modo, a bolsa no ombro e a maquiagem retocada. Estefen, de sua mesa, olhou para fora do escritório. O andar já estava todo vazio, e mesmo se ele respondesse que precisava, a assistente dificilmente aceitaria permanecer no setor. Solicitava dispensa por uma mera formalidade. — Só vou terminar de trabalhar nesta última sessão. — Indicou o computador aberto diante de si. — Pode ir. Um pigarreio soou do outro lado do escritório. Estefen o ignorou, mas Fédra cedeu à tentativa de Castello de chamar sua atenção. — E a senhora, precisa de mais alguma coisa? — adicionou Fédra. — Imagino que o expediente da Viveana também já tenha acabado — alfinetou Estefen. — Posso falar por mim mesma — contra-atacou Castello. Virando-se para Fédra, anunciou: — Acompanharei o senhor Carvenagh. Ficarei mais um pouco. Não vejo por que prendê-la aqui, meu bem, mas obrigad
O som era familiar. O ar pressurizado que movia o trem pela linha férrea. Aproximava-se aos poucos. Do mesmo modo, sua consciência voltava à tona. Há quanto tempo Demitre vinha olhando o cenário adiante? Estava no banco do carro de Lexia, com ambas as mãos no volante, contemplando através do para-brisa. Estacionado num antigo valão desativado, no túnel por onde um dia o esgoto correra, só sabia sua localização devido ao monstruoso barulho do trem que agora passava por sobre a ponte. As recurvas paredes cobertas de limo que alicerçavam os trilhos, onde enormes dutos abandonados serviam de domicílio para roedores, tremeram. A conhecida melodia das ruas o trazia de volta, como quando ele embarcava em direção ao ferro-velho. Sombras eram projetadas pelas luzes nos vagões; fantasmagorias descendendo do céu noturno. Não fazia ideia de como havia chegado ali. Era a primeira vez que um de seus lapsos o transportava para longe. Lexia… Soltou o
30 de julho, quinta-feira, Duas semanas antes do lançamento. O Trupe da Alegria era um parque de diversões itinerante que não pertencia a Alabastria. Isso ficava claro pelo excessivo número de bandeiras de Corais do Norte — brancas, vermelhas e azuis — espalhadas por todo canto. Tinha um nome apelativo para o público infantil, e Estefen sabia que havia começado como uma pequena equipe de circo algumas décadas atrás; quase falira há uns poucos anos, antes de iniciar pequenas residências no sul do continente. Atualmente, podia ser visto em locais públicos e terrenos baldios. Estefen não se lembrava de ter visitado qualquer outro parque. Da última vez que o fizera, tinha dezoito anos de idade, durante uma viagem a Vera Cruz, e não tinha se divertido muito. A decoração em si era inspiradora — amava as luzes faiscantes, as cores e o movimento; o cheiro de fritura, os balões, as risadas das crianças e a sinfonia maqu
Vince sabia que não estava causando uma boa impressão; ou, pelo menos, não a impressão que gostaria de causar. Afidalgava-se dentro de sua blusa social mais cara, e seus sapatos encerados poderiam cegar uma pessoa. Ainda assim, por baixo do broche, do gel de cabelo e do perfume importado, sentia-se um marceneiro bronco que, decerto, não pertencia àquele lugar. No trigésimo sétimo andar da OneBionics, aguardava chamarem seu nome. Estava sentado num grande sofá em forma de círculo, com um tornozelo sobre o joelho, lutando contra o ímpeto de sacudir o pé nervosamente. Tudo desde a recepção era magnânimo: cômodos grandes, interconectados por corredores grandes e iluminados por janelas grandes; frequentados por mulheres e homens grandes, com suas maletas, bolsas, saltos e — considerando a maneira como levantavam o nariz — ego e expectativas grandes. No mesmo dia em que conversara com Estefen, enviara-lhe sua carta-proposta — a verdadeira, embora ainda imperfeita; também l