— Eu disse para se afastar, cacete! — urgiu Calebe, mas Estefen deu mais um passo para frente.
— Escute. Devem chamá-lo de Demitre, não é? — começou. — Eu sei, porque foi o nome que escolhi para você a fim de mantê-lo seguro.
Um feixe de compreensão iluminou o rosto de Calebe.
— Eu já vi você! Na… na frente da OneBionics. Q-quando eu estava escondido. — Suas mãos tremiam tanto! — Você me mandou fugir. Por que fez isso? O que…? — Abaixou um pouco a pistola, olhando desorientado ao redor. — O que significa isto?
— Fui eu, sim. Mas nos conhecemos desde antes — denotou Estefen. — Tentei alertá-lo. Só que aquela noite faz um ano.
Calebe voltou a segurar a arma com força.
— Você armou para mim, é isso? Onde está Lexia? Me diga, ou vou atirar em você!
Estefen sacudiu a cabeça.
— Lexia não está aqui. Estamos na OneBionics…
— Eu sei onde estou, porra!
— Nada faz sentido para você. Eu sei. — Mantinha seu tom baixo
Havia aquilo que Calebe descobrira antes, bem como aquilo sobre o que soubera depois. Por ouvir tantas histórias do irmão, por vezes acreditava que sabia mais a respeito dele do que de si mesmo. Sua primeira lembrança era da paróquia, naquela cidade tão pequena enfestada de devotos. Seu pai o segurava no colo, ainda tão pequeno, enquanto um círculo de fiéis se prostrava ao redor, todos pedindo que ele repetisse seu nome. “Alebe”, ele dizia, e não entendia o porquê de todos rirem tanto. “Alê será como o pai”, afirmava alguém, “um homem das palavras”. “O tempo dirá”, seu pai respondia, mas não disfarçava o orgulho. Seus filhos seriam, sim, como ele. Guiariam rebanhos, inspirariam, mostrariam aos demais o caminho do bem. Afinal de contas, eram bem educados. Sua missão, como pai, era criar homens decentes. Estefen nunca pedia que ele repetisse seu nome do jeito errado, tampouco o chamava pelo apelido. “Seu nome é Calebe”, o irmão dizia, “e ninguém mais va
Os passos já tinham seguido para longe. Agora havia um silêncio cheio de acusações. — Eles fizeram mesmo isso? — sondou Vince, olhando através da janela. — Machucaram toda aquela gente? Artur vinha se mantendo incomodamente calado. — É para isso que fomos feitos. — Não é verdade! Foram feitos para serem… — Atrações de circo? Que bom — interrompeu, sarcástico. Vince se virou. — Me diga, Artur. Me diga que você não teve escolha. Me diga que havia algo naquele códice que injetei em você que o obrigou a fazer isso. Artur o encarou languidamente. — Tive escolha — respondeu. — Escolhi o que era certo. — Matar nunca é certo! — A menos que a vítima seja um de nós, não é? — Artur se pôs de pé. — Fiz o que seu comparsa queria que eu fizesse. Tenho certeza de que era o que ele planejou. — Estefen não mentiria para mim. — Talvez não. Mas quando eu vi… — tremulou. — Você nunca entenderia. A ma
— Por que aqui? — indagou Calebe, ainda espargindo água. — Por que um lugar como este? Estefen fechou os olhos e limpou o nariz ensanguentado. Responder doeria. — Porque era o que eu menos iria querer. Um lugar escuro, escondido, solitário. Eu busquei a liberdade e a luz para nós dois minha vida inteira. Esta câmara foi feita para machucar você, Calebe, mas para me machucar também. — Me chame de Demitre — solicitou, num fio de voz. Abraçava o próprio corpo, como se, caso não o fizesse, pudesse se desmontar. — Aquele Calebe não existe há muito tempo. Me chame de Demitre. Estefen, ajoelhado sobre a poça, assentiu. — Estão todos mortos. As pessoas que fizeram isso com você. Me certifiquei de que morressem. Demitre abriu um leve sorriso nervoso. — Isso não muda nada — considerou. — Mas fico feliz que não vão machucar mais ninguém. Estefen se levantou e estendeu uma mão. — Vamos. Você já ficou neste lugar tempo demai
Quando a porta finalmente se abriu, Vince empurrou Estefen pelo peito. — Você mentiu para mim? — esbravejou. Estefen massageou sob a clavícula, mas não demonstrou sinal de ofensa. Pelo contrário, olhou indolentemente para o chão. Tinha os cabelos desgrenhados e úmidos caindo sobre a testa; a blusa social molhada, faltando um botão; a gravata frouxa e torta na lapela. — Omiti muita coisa — confessou. — Para onde ele foi? — apressou-se. Estefen o encarou com dúvida. — Artur. Ele disse alguma coisa sobre destruir os sintéticos, destruir a si mesmo. Para onde foi? — Destruir… — hesitou, encrespando as sobrancelhas. Depois de um breve instante, sua expressão passou a denotar compreensão. — Pode ser que… bem, ouvi dizer sobre um dispositivo no último andar subterrâneo. Há um elevador no quadragésimo andar do edifício B que talvez o leve para lá. Agora que as trancas estão desativadas… — O rapaz não esperou que ele terminasse, já caminhava em direção
Demitre puxou uma cadeira e se sentou. Jaidan abriu um sorriso sardônico. — Achei que teríamos que acender uma fogueira na porta do seu quarto para tirá-lo de lá. — Tenho estado ocupado, já disse — resmungou Demitre, servindo-se de purê de batatas. A mesa estava farta aquela tarde, com panelas sobre panos de prato, jarras de suco e guardanapos de tecido meticulosamente dobrados. Estefen surgiu na sala, pedindo licença enquanto manejava uma travessa fumegante de algum tipo de massa cheia de molho vermelho. Ele a arriou bem no centro da mesa, com a ajuda de Ilías, que afastava as demais vasilhas para liberar espaço. Quando haviam chegado àquela casa, cerca de um ano e meio atrás, encontraram menos do que uma cabana em ruínas. Pertencia a uma chácara, na época entregue às moscas, com mato à altura da cintura de um adulto e tocas de ratos selvagens. Demitre não acreditara que conseguiriam tornar aquele lugar habitável de novo — isto é, se
Os detalhes eram o que mais o fascinava. Havia uma honestidade desleal neles, uma antecipação que formigava no peito. Ele não apressaria essa etapa — talvez as seguintes, mas não essa. O aroma de carne cozida prevalecia na sala de estar, trazido pelo vapor evanescente que escapava da cozinha. Assim que Demitre abriu a porta, lembrou-se de ter sentido esse mesmo cheiro da última vez; isso o impressionou. O que não lhe chamou atenção, no entanto, foi a decoração acolhedora da sala, justamente por se encontrar da maneira como ele bem havia registrado na memória. Ainda assim, quando seus coturnos negros pisaram na alfombra de entrada — na qual, caso olhasse para baixo, leria “Bem-vindo ao lar” —, inspecionou por um instante as paredes, cujo revestimento de madeira apresentava tom vagamente avermelhado. Sobre o rack, um modelo de televisão tão antigo que devia ter saído de produção antes mesmo de Demitre nascer, vinte e cinco anos atrás. Do cômodo adjacente, soava
— Como foi? — disparou Sirena, assim que viu Vince deixando o corredor. Ela aguardava na enorme rampa que circundava todo o prédio da universidade pelo lado de fora, em espiral, como uma serpente em torno de um galho de árvore. A moça vinha batucando na balaustrada de vidro temperado, mas quando Vince se aproximou finalmente, após quarenta e cinco minutos, ela se interrompeu; removeu o headphone da cabeça — que mais a fazia parecer um extraterrestre do que uma aficionada por música eletrônica — e o deixou descansar no pescoço, sob os cabelos castanhos muito encaracolados. — Foi bom — respondeu Vince, ajeitando sua mochila de ombro, que hoje estava cheia como se ele se preparasse para fugir do país. Sirena arregalou os olhos. — Foi bom? — Aquela era a primeira vez que o amigo dizia isso sobre um dos seminários obrigatórios na universidade. Discursar para a classe nunca foi seu forte. — Quem é você e o que fez com o Vince verdadeiro? El
16 de julho, quinta-feira.Quando Fédra deu duas batidas na porta do chefe de gestão criativa, conseguia imaginá-lo soltando um murmúrio incomodado.O corredor era composto por fileiras longas de estandes, e dentro de cada um havia um escritório particular. Por determinação da empresa, eram blocos feitos de vidro transparente. “Transparência em primeiro lugar” poderia ser o lema da OneBionics. As passagens eram sempre largas, as esquinas eram esquadrinhadas por câmeras, os relatórios e e-mails eram publicamente acessíveis no ciberespaço. era difícil até mesmo usar o banheiro sem que alguém ficasse sabendo. Conversas particulares não demoravam a virar fofocas disseminadas, e o histórico registrado nas máquinas de lanche — ativadas por leitura biométrica — possibilitava que uns acompanhas