Sangue e Circuito
Sangue e Circuito
Por: Marco Barbieri
Prólogo

Os detalhes eram o que mais o fascinava. Havia uma honestidade desleal neles, uma antecipação que formigava no peito. Ele não apressaria essa etapa — talvez as seguintes, mas não essa.

O aroma de carne cozida prevalecia na sala de estar, trazido pelo vapor evanescente que escapava da cozinha. Assim que Demitre abriu a porta, lembrou-se de ter sentido esse mesmo cheiro da última vez; isso o impressionou. O que não lhe chamou atenção, no entanto, foi a decoração acolhedora da sala, justamente por se encontrar da maneira como ele bem havia registrado na memória.

Ainda assim, quando seus coturnos negros pisaram na alfombra de entrada — na qual, caso olhasse para baixo, leria “Bem-vindo ao lar” —, inspecionou por um instante as paredes, cujo revestimento de madeira apresentava tom vagamente avermelhado. Sobre o rack, um modelo de televisão tão antigo que devia ter saído de produção antes mesmo de Demitre nascer, vinte e cinco anos atrás.

Do cômodo adjacente, soava música baixa; mais recente, talvez do ano passado — batidas eletrônicas e algum instrumento de corda sintetizado.

Demitre despiu-se do sobretudo e o colocou no cabideiro de ganchos pregado ao lado da porta; não pôde deixar de reparar no suéter que já esperava lá, como se alguém um dia realmente o vestisse.

Imaginou-se sentando-se na poltrona como quem realmente se acomodava em sua casa. Seus braços nus absorviam o calor convincente da lareira artificial.

Ao se deparar com o porta-retratos, quase casualmente disposto sobre um móvel de canto, sorriu — e desejou que esse gesto carregasse alegria. Na fotografia digital, viu-se sentado nas bordas de um chafariz de pedra. Suas roupas escuras lhe faziam jus; seus cabelos louros quase alcançavam as clavículas, um pouco mais curtos do que como se encontravam agora; sua barba pouco aparada não escondia completamente o frio nos lábios carminados. Ao lado de Demitre, ainda no porta-retratos, um homem de cabelos curtos e escuros passava o braço por suas costas, num meio abraço, enquanto sorria animadamente para a lente da câmera.

— Demitre? — Ouviu a voz gentil que vinha da cozinha. — É você?

Percebeu que havia feito barulho. Em vez de responder, completou o percurso até o batente da porta e entrou na cozinha. Encontrou o par de olhos azuis que fitavam a entrada de maneira inquisitiva, depois os viu se apertarem quando aquele mesmo sorriso da fotografia encarnou diante de si.

O outro homem largou o que quer que viesse segurando sobre a bancada e se virou para Demitre, genuinamente contente por vê-lo. Vestia um avental longo sobre a roupa social.

— Boa noite — correspondeu Demitre.

— Eu não esperava que você fosse chegar antes das… — Olhou no relógio da parede de azulejos xadrez, enquanto começava a caminhar na direção de Demitre. — Antes das oito. Estragou a surpresa! — Ele se aproximou e lhe deu um beijo estalado nos lábios como cumprimento. A barba negra roçou no queixo de Demitre por um breve instante. O homem, então, franziu a sobrancelha, afagando-lhe os braços. Cheirava a essência de baunilha. — O que foi? Está meio sério.

Demitre sorriu outra vez.

— É que eu não esperava surpresa esta noite — mentiu.

Olhou para a longa mesa de madeira clara, manualmente talhada e com lugar para seis. Perguntou-se se algum dia todos os seis assentos haviam sido usados no mesmo momento; deu-se conta, em seguida, de que essa não era a primeira vez que tal dúvida surgia em sua cabeça.

Sobre a mesa, viu dois pratos vazios e duas taças de cristal; no centro, uma enorme quantidade de comida. Um vasilhame com batata sauté e ervas finas; uma saladeira bem recheada; uma panela aberta, ainda fumegante, com alguma espécie de massa ao molho de tomate; uma torta coberta de pequenos morangos cortados; uma cúpula de servir feita de prata; uma garrafa de vinho tinto.

— Você me pegou desprevenido. Eu pretendia me livrar deste avental primeiro — falou o homem, desfazendo o nó atrás do pescoço. Demitre se atentou à maneira como seus bíceps dobravam de tamanho sob a manga da blusa justa quando levantava os braços para a nuca daquela forma. — Ainda estava terminando de aprontar a mesa, faltam as tigelinhas de molho e…

— Não precisa — apressou-se Demitre, segurando-o pelo pulso assim que ele se desvencilhou do avental.

O homem parou e lhe lançou um olhar intrigado, suas sobrancelhas bem-delineadas formando um arco. O contato visual era profundo, sincero, e isso fez com que Demitre o soltasse como quem se queimava em aço incandescente.

— Quero que seja perfeito — murmurou o homem, tão baixo que quase não pôde ser ouvido sob a música do rádio na bancada. — É nosso nono aniversário juntos. Quero que seja perfeito para você.

— Não precisa — repetiu Demitre, e falava sério; agora num tom renitente. Se ainda vestisse o sobretudo, esconderia as mãos nos bolsos.

O homem soltou um suspiro pesado e olhou, reflexivo, para a bancada do outro lado da cozinha.

— Está bem — sorriu. Caminhou até a extremidade da mesa e puxou a cadeira. — O chef determinou que podemos começar o banquete, então. — Demitre riu e se aproximou, sentando-se no lugar indicado. Admirou tudo o que estava aprontado para ele e se sentiu paparicado; exatamente como deveria se sentir. Repreendeu-se internamente por isso. O homem levou as mãos aos ombros de Demitre e os massageou. — O que acha?

— Quê?

— O que acha do que preparei? Deu um baita trabalho.

— Ficou muito bom.

A massagem era boa. Pensou em pedir que ele continuasse, e sabia que, caso o fizesse, certamente receberia aquele tratamento por pelo menos duas horas. Mas esse não era o motivo por que estava ali.

O homem soltou uma risada vaidosa. Largou os ombros de Demitre e se sentou em sua própria cadeira.

Demitre começou a desembrulhar os talheres, mas foi impedido quando o homem segurou uma de suas mãos, forçando-o a olhar para ele outra vez. Mais contato visual. Não havia acanho por parte dos olhos azuis, havia… brandura. Ele ainda sorria com a boca fechada, as bochechas coradas mesmo por baixo da barba muito escura.

— Eu queria dizer que… — principiou o homem. Seu timbre era cálido. Seus dedos se entrelaçaram aos dele. Demitre se fascinava com o calor e a umidade da mão do outro. — Todo esse tempo não foi capaz de reduzir a maneira como me sinto em relação a você. Quando nos conhecemos naquele chafariz, nove anos atrás… me lembro de tê-lo visto pela primeira vez e ter pensado: há alguma coisa especial nele. Consegui sentir, Demitre. Sentir como todos esses anos com você seriam exatamente aquilo que eu queria para minha vida. Você me faz me sentir seguro, porque… sinto que posso confiar em você; e, mesmo assim, você sempre consegue me surpreender de uma maneira positiva. Dia após dia, ano após ano. — Abriu seu sorriso largo; covinhas surgiram em cada face. — Este jantar é só uma maneira de retribuir.

Demitre sentiu a antecipação crescer. Desviou o olhar para baixo e viu algumas poucas veias ligeiramente saltadas no antebraço do homem; tão perfeitas, tão… reais. Tentou sorrir outra vez, mas não conseguiu. Tentou apertar sua mão com um pouco mais de força. Fingiu reciprocidade; tentou sentir uma emoção sequer; qualquer coisa que não fosse a excitação que crescia em volume dentro de suas próprias calças. Mas não havia nada além disso — mais uma vez.

Poderia continuar insistindo. Aproveitar o banquete, esperar a sobremesa. Poderia abraçar o homem ao seu lado, impregnar-se de seu perfume de baunilha; acreditar, por ao menos alguns minutos, que não estava sozinho. Mas ele sabia o que o esperava quando abrisse aquela porta outra vez.

O momento era doce, como assistir ao seu filme favorito; e, embora deixar que as cenas passassem sem intervenção diante dos olhos fosse uma opção, dessa vez ele as avançaria — voltaria algumas se tivesse vontade; mudaria o idioma da dublagem, trocaria a fonte das legendas, aumentaria e abaixaria o volume. Tudo para que a experiência fosse aquela que ele conhecia; aquela que lhe era acessível; aquela da qual ele nunca duvidava.

— Mudei de ideia. Pode preparar as tigelas de molho? — perguntou Demitre.

O homem hesitou por um instante. Assentiu suavemente, como se dissesse “jamais diria não para você”, e isso fez o estômago de Demitre se revirar. Porque ele sabia que a resposta sempre seria essa, mesmo que jamais fosse verbalizada ou, em outros casos, que as palavras enunciadas sugerissem exatamente o oposto. Aqui, agora, ou em qualquer outro momento, em qualquer outro lugar.

Como solicitado, o homem se levantou e foi até a bancada. Começou a mexer em vasilhas de porcelana. Demitre ouvia o som de cada movimento bem atrás de si: o tilintar; a respiração calma que competia com as notas graves da música no rádio. O homem se pôs a falar, a contar com alegria sobre como havia sido seu dia, sobre o quanto havia esperado para estar com Demitre essa noite. Havia ingenuidade na maneira como discorria, como se não soubesse o que viria em seguida — até porque, de alguma forma, ele não sabia mesmo.

Levantou-se aos poucos, não tinha pressa. Empurrou sua cadeira para o mais longe possível. Virou-se.

O homem estava de costas para ele, ainda concentrado na tarefa. Demitre viu como aquela calça social marcava seus atributos: a cintura com cinto, as coxas grossas. Aproximou-se por trás e fez com que o homem se calasse perante um empurrão contra a bancada. Pressionou sua virilha contra ele, fazendo-o sentir a rigidez para além das calças. Isso provocou uma reação esperável. Os ombros largos relaxaram diante dele. A respiração agora se intensificava.

Passou os dedos delicadamente pelo pescoço do homem, fazendo com que os pelos de sua nuca se arrepiassem. A cabeça dele foi pendendo permissivamente para o lado, desfazendo ainda mais as barreiras físicas que existiam entre os dois. Demitre finalmente descansou ambas as mãos na bancada e usou o apoio para empurrar seu corpo contra o dele uma segunda vez, agora de maneira mais abrupta. Um gemido mudo, aspirado, escapou da boca do homem. Demitre conseguia imaginar os olhos dele fechados — bem como os lábios entreabertos, como se secretamente desejasse que algo fosse depositado neles.

Hoje não, pensou. Aquela antecipação insistente ordenava que fosse satisfeita logo. Um corte limpo, como numa execução planejada; um golpe de misericórdia.

Pousou os lábios naquele pescoço; a pele era macia. Beijou-o a primeira vez; e então, a segunda. Estalo após estalo. Até que o corpo do homem se contorcesse involuntariamente no espaço entre Demitre e a bancada. O próximo beijo adicionou a ponta da língua, e isso provocou no homem um murmúrio mais audível.

— Como você disse que quer que seja? — sussurrou Demitre.

— Perfeito… — arfou.

Vagueou os incisivos levemente pela orelha dele.

— Como vai ser? — Soava gutural.

Perfeito — iterou. — Perfeito para você.

Demitre mudou a abordagem. Partiu com movimentos rápidos à fivela do homem; num primeiro momento, afastou-o da bancada apenas o suficiente para livrá-lo daquele cinto. Em seguida, envolveu a barriga dele com um braço, enquanto segurava firmemente sua nuca com a outra mão.

Sem permitir que qualquer distância se interpusesse a eles, Demitre se virou, levando o homem consigo. Guiou os movimentos dele como se prendesse um animal numa forquilha, passo após passo em direção à extremidade da mesa. Dois pares de pés ritmados. Chegando até ela, soltou-o por um segundo. Apesar de os braços do homem permanecerem relaxados nas laterais do corpo, era possível perceber o quanto ele desejava usá-los para trazer Demitre para mais perto novamente.

Demitre se projetou para frente e empurrou de cima da mesa o máximo do que conseguiu. Lançou para o chão a porcelana limpa, as taças de cristal, os talheres, a garrafa de vinho, a saladeira e a panela. O tinido de objetos se quebrando não poderia perturbá-lo menos, nem os fragmentos de vidro saltando para sua perna, junto com molho.

Ele sabia como os botões da blusa social do homem eram sensíveis — haviam sido projetados assim. Encontrou uma abertura e puxou com força. Alguns dos botões viajaram pela cozinha. Com um movimento ligeiro, a blusa já estava aos pés deles. Por um breve momento, Demitre tocou os músculos do abdômen do homem; numa próxima vez, talvez o virasse de frente e passeasse pela barriga dele. Agora, contudo, empurrou as costas dele com força, fazendo com que se curvasse completamente e batesse o peito contra a mesa recém-desocupada. Suas pernas permaneceram firmes no lugar. Como se pedisse algo específico, o homem afastou os calcanhares um do outro, o máximo que pôde. Demitre não deixou esse gesto sem resposta; puxou as calças do homem bruscamente para baixo, até à altura das panturrilhas.

O homem mantinha a bochecha contra a mesa, com a cabeça de lado e os olhos fechados, exatamente como o previsto; usou suas mãos para se agarrar às bordas. Vê-lo tencionar os tríceps impeliu Demitre a abrir o zíper da própria calça. Posicionou-se atrás dele, calculando o encaixe perfeito, mas não fez o primeiro movimento. Observou o traseiro erguido — as extremidades redondas, as curvas impecáveis e livres de pelos, como antes era possível apenas imaginar ao olhá-las sob tecido.

— Quanto quer que seja perfeito? — A pergunta de Demitre saiu por entre os dentes. Sem mais sussurros.

— Muito — gemeu. Sua voz sumia para dentro de si.

— Então faça ser.

O homem apertou os olhos com mais força, sabendo como deveria proceder. Pela primeira vez desde que teve seu trabalho interrompido na bancada, moveu-se por conta própria. Começou a empurrar o quadril para trás.

O louro, assistindo ao espetáculo, apoiou as mãos nas cinturas e deixou que o homem finalmente iniciasse o processo. Seria doloroso, ele sabia; daquele jeito, sem nada além de pura pele. Com o primeiro gemido de dor, o homem parou o movimento.

A exigência de Demitre voltou a arranhar sua garganta, grave:

Faça ser.

O homem fez menção de assentir com a cabeça, mas todos os seus membros estavam concentrados apenas em realizar a tarefa determinada. Voltou a empurrar o quadril, impulsionando seu corpo pouco a pouco e de bom grado na direção do instrumento da dor. Trincou os dentes para ajudar a suportar; contraiu ainda mais os braços, tornando as tímidas veias de minutos atrás ainda mais notáveis. Até que Demitre já não estivesse quase impraticavelmente próximo, mas dentro dele.

Com a missão cumprida, o homem soltou ar.

Demitre se livrou da própria camiseta. Sentia a pressão dos músculos posteriores do homem comprimindo-o quase maquinalmente. Escorregou as mãos pelas costas diante de si, como se contemplasse uma tela em branco, mal podendo esperar para usar aquele corpo como ferramenta para uma obra. Agarrou-o pela cintura e se afastou lentamente para trás, apenas para projetar-se com força em seguida.

O homem soltou um grito engasgado. Seria só o primeiro.

Repetiu o movimento.

Respiravam pesadamente, mas depressa.

O balanço se tornou rítmico. Para frente e para trás: parte das coxas do homem batendo contra a ponta da mesa. A música no rádio se unia aos gemidos dos dois, cada vez mais altos e frequentes, como se o prazer fosse acorde assonante numa sinfonia.

A madeira da mesa rangia. Os dedos de Demitre estavam úmidos de suor quando ele alterou a cadência. Mais incisivo. Mais ágil.

O tronco do homem se contraía. Ele se moveu como se pretendesse ficar de pé, mas Demitre foi rápido ao segurá-lo pelos cabelos e forçar seu rosto de volta à mesa. Não permitiria que ele desertasse ou largasse o posto; aquela era a posição como ele o queria: curvado, aberto, desamparado.

A antecipação agora dava lugar a outras sensações. Autoridade, satisfação, orgulho. À medida que depositava cada vez mais energia na fricção, notou que as pernas da mesa se sacudiam perigosamente e que o corpo do homem ameaçava escorregar para fora a qualquer momento.

— Por favor… — o homem praticamente miou. Pediria que ele tivesse piedade ou gentileza. Tinha um olhar indefeso, com o rosto ainda forçado para baixo.

Mas Demitre fingia não ouvir. Aquele banquete havia sido feito para ele, afinal — e, portanto, ele se banquetearia.

Viu seu próprio reflexo levemente distorcido na redoma de prata mais adiante — um dos poucos elementos que ainda sobravam na mesa —, para além da cabeça do homem.

Perdeu interesse pela bunda lisa, pelos músculos bem-demarcados do braço e das costas. Em vez disso, agora admirava a si próprio.

Seu torso talvez jamais chegasse a ser escultural como o dos rapazes com quem ele costumava se satisfazer, porque ele era humano, falho e imperfeito. Mas, ainda assim, demorou-se observando seus braços — eram atraentes no labor de segurar seu amante com firmeza —, o relevo bem-cultivado de seu próprio busto, os ossos pélvicos em paralelos aos pelos amarelos, a mandíbula quadrada, o peito depilado; os cabelos movimentando-se continuamente, por vezes prendendo mechas na barba clara.

Quanto mais esforço aplicava, mais vigor sentia para continuar.

Estava perto do clímax. Os gemidos saíam desde o fundo da garganta, como um ronronar; em vez de tomar fôlego, sorvia o ar.

O som que o homem na mesa soltava se assemelhava a um choramingar. Equilibrava-se o quanto podia enquanto era assaltado repetidamente por trás. Quando seus olhos já se reviravam, reuniu forças para dizer:

— Demitre, eu…

Demitre tapou a boca do homem e ouviu abafado apenas o fantasma das próximas palavras. Não queria ouvi-lo dizer que o amava, principalmente porque sabia que não era verdade. Assim como não era verdade que todo aquele jantar havia sido preparado especialmente para Demitre. Não era verdade que eles haviam se conhecido num chafariz nove anos atrás. Não era verdade que viviam felizes nessa casa.

A única verdade era o deleite que Demitre sentia no interior do homem. A verdade era que tudo o que acontecia nesse momento já havia acontecido antes, de maneira diferente, e aconteceria da próxima vez caso assim decidisse.

Com esse pensamento, ele se afastou e finalizou o processo com a própria mão, irrigando as costas do homem, tornando-a algo senão tela em branco.

Apenas após terminar, notou que seus gemidos haviam se tornado urros, e que ele alcançara o ápice observando os próprios olhos cinzentos na prataria.

Olhou para o homem agora com uma nova visão. As pernas ainda afastadas, as costas encharcadas, as calças ainda nos calcanhares; trêmulo, bambo, agarrado às bordas.

— Não saia daí — mandou Demitre. E o homem obedeceu. — Não se mova. Não diga nada.

Esperou um minuto, até que pudesse ajeitar a cueca e fechar o zíper da calça. Caminhou até a geladeira, ainda ofegante, abriu-a e pegou uma caixa de leite gelado. Bebeu no gargalo enquanto contornava a mesa. Sentou-se numa outra cadeira, arriou a caixa e finalmente levantou a redoma do prato de servir. Havia um peru assado, bem dourado. Arrancou uma coxa e deu uma mordida; estava gostoso. Toda aquela ação o havia deixado com fome.

O homem não movia um dedo sequer. Também respirava depressa. Seu tronco subia e descia, completamente apoiado contra a superfície. Estava consciente, seus olhos muito azuis acompanhavam os movimentos de Demitre; via-o devorar a coxa e engoli-la com leite. Mas não falava nada, nem se levantava, nem se limpava, nem se vestia — havia recebido uma ordem, afinal. Continuava com o quadril erguido no ar e a bochecha pressionada na madeira.

Só agora Demitre se dava conta de que não se lembrava do nome do sujeito. Olhou para o relógio atrelado ao seu pulso e falou articuladamente “informação: nome”. Na tela digital do relógio, viu as letras formarem “Jaidan”.

— Jaidan — pronunciou. O homem não reagiu. — Podia ter um nome melhor. — Olhou bem para Jaidan, imaginando que nome daria a ele caso tivesse a escolha.

Terminou de comer, deu um último gole e, finalmente, disse ao relógio:

— Execução: encerrar simulação.

Automaticamente, Jaidan fechou os olhos. Não os abriria mais. O aperto de suas mãos nas bordas da mesa se afrouxou, e os músculos de sua cintura finalmente relaxaram, fazendo com que parte de seu corpo deslizasse para baixo. Não respirava. Continuou deitado de bruços apenas porque era assim que havia sido deixado.

Demitre jogou o osso de peru na mesa. Pegou sua camiseta do chão e bateu os cacos de vidro antes de vesti-la. Levantou-se, sentindo a porcelana estalar sob os coturnos. Na saída para a sala, deu uma olhada para trás, apenas para admirar a maneira como ele havia deixado o cenário, bem diferente de como o encontrara.

No outro cômodo, foi até o cabideiro e tirou o sobretudo do gancho. Fitou outra vez o casaco de lã que Jaidan nunca vestia; imaginava que o homem ficaria bonito nele. Também relanceou olhar para o porta-retratos sobre a mesinha de canto. Agora a fotografia estava diferente: Demitre havia desaparecido da imagem, como se nunca tivesse estado nela. Afinal de contas, pensou ele, nunca estive mesmo.

Abriu a porta, mas não saiu para uma rua ou um jardim. Em vez disso, estava num corredor amplo e circular. Podia pegar o elevador para o térreo, mas lhe faria bem caminhar um pouco. Começou a percorrer o corredor, que não era feito de tábuas ou madeira, mas porcelanato azul — sóbrio, frio, neutro. O limbo que havia no meio de um sem-número de universos.

Demitre conhecia relativamente bem muitos daqueles tais universos. Enquanto andava, passava por outras portas. Cada uma delas tinha suas próprias características. Aquela da qual havia acabado de sair era feita de pinho branco; mas a outra, pela qual passou em seguida, era totalmente de ferro; a próxima tinha uma janela de vidro na madeira escura; e a que havia perto das escadas para o andar de baixo parecia pertencer a uma espécie de cabana de palha.

Assim, ele desceu um andar, e depois o próximo. Chegou a passar por uma pessoa qualquer, frequentador do lugar, e não lhe retribuiu o cumprimento casual.

Por trás de cada uma daquelas portas, havia uma história — uma história que esperava pelo próximo visitante. Que se adaptava. Que se desenrolava de maneira persuasiva.

Atrás da porta de vidro claro, por exemplo, Demitre sabia que um enfermeiro alto esperava para colocá-lo num leito e examiná-lo. Caso abrisse a porta feita de lona com padrão camuflado, estaria numa tenda militar, onde uma dupla de recrutas jovens, inexperientes e disciplinados lhe bateriam continência. Para além da porta que mais parecia fazer parte de um galpão, encontraria um prisioneiro no subterrâneo de uma casamata. Num estúdio de fotografia, numa sala do trono, num estaleiro de obras, numa pérgola fina, num cadafalso medieval, num mosteiro sagrado… Todos diriam as palavras certas, fariam o que haviam sido designados a fazer, garantiriam que a encenação permanecesse o mais verossímil possível — mesmo que nenhum deles tivesse consciência disso, do que eram e ao que estavam destinados.

Demitre alcançou o primeiro andar e se dirigiu à recepção. A mulher detrás do balcão tinha cabelos escorridos e castanhos; olhou-o com um sorriso, mas também com certo estranhamento.

— Não quer ficar mais? Você ainda tem… — Ela olhou no relógio digital sobre a bancada. — Cinquenta minutos reservados.

Demitre tirou o aparelho do pulso e o entregou para a recepcionista.

— Já tive o suficiente por um dia.

Ela registrou a saída do visitante ao vocalizar alguns códigos para o dispositivo. Depois disse:

— Esperamos que tenha tido uma boa experiência.

Demitre já havia dado as costas. Já alcançava o imenso tapete de entrada com o nome da empresa gravado — OneBionics — enquanto se dirigia às portas duplas de saída. Ainda assim, respondeu, um pouco insatisfeito:

— Mande darem uma olhada na simulação da câmara 973. Acho que implementaram diálogos novos. O sujeito lá dentro tem falado demais.

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