Quando o trem rumo ao centro da Zona Baixa deixou a estação e entrou no túnel subterrâneo, as luzes voltaram a se acender. Por sorte, Demitre havia conseguido um lugar para se sentar, perto da porta, o que geralmente não acontecia àquela hora da manhã, com o vagão apinhado. Estava atrasado para o trabalho e, mais do que isso, sentia-se exausto. Seu único consolo era o fato de que era sábado.
Jota-jota estava de pé. Preparava-se para saltar na próxima estação. Trabalhava num salão de beleza perto do apartamento que dividia com Demitre. Forçava-se a permanecer dentro de um vestido decotado, com maquiagem nas bochechas para lhe dar um ar corado.
— Trouxe seu almoço? — inquiriu ela, naquele seu tom que beirava o autoritário, mas também o maternal.
Demitre fez uma careta. Não era a primeira vez que o esquecia. Mas não se importava; quase não sentia fome enquanto trabalhava.
Jota-jota o censurou com os olhos, já vinha estando irritada por ele ter deixado a
Seu novo apartamento era pequeno comparado ao anterior. Foi ficando cada vez menor à medida que Vince se instalava nele. Alugou-o mobiliado, não que precisasse de mais do que um sofá-cama. A geladeira servia de enfeite, uma vez que, já durante uma semana, Vince apenas encomendava composto alimentício, que lhe era entregue por drone na portaria. Ninguém precisava de comida para se manter alimentado, ao menos não desde a criação do composto — um pó incolor, sem gosto, que podia ser misturado na água e que continha todos os nutrientes necessários para um corpo humano comum. Na Zona Alta, muitos ainda optavam pela comida convencional, apesar de ser muito mais cara. Vince não se importava com isso agora. Não tinha apetite, de todo modo. Suas roupas começaram a se acumular num canto, e os sacos de lixo que ele nunca jogava pelo duto de sucção do prédio cobriam as suculentas de modo que elas desaparecessem. Não tinha vontade de sair para comprar cortinas, portanto colou cobertores
23 de julho, quinta-feira, Três semanas antes do lançamento. Não era seu costume caminhar por todas as áreas do edifício A. Geralmente entrava no elevador na recepção e desembarcava em seu setor. O fato de que o prédio principal da OneBionics continha numerosos quarenta andares era um dos motivos para isso. Nessa manhã, entretanto, Estefen se via obrigado a percorrer corredores onde nunca pisara mais do que uma vez. Octavia o havia incumbido de apresentar todos os setores da empresa à Viveana Castello, a nova conselheira administrativa — e a nova correia que sua dirigente cingia ao seu pescoço, ao que tudo indicava. De todos os funcionários da OneBionics, não o surpreendia que ele fosse aquele quem tivesse seu trabalho supervisionado de perto. Estefen conhecia um dos segredos mais delicados de Octavia, e, pensando bem, a dirigente havia demorado até demais para fechar o cerco ao redor dele. Desde o prim
O complexo de prédios da OneBionics se situava numa alameda enorme. Vince saltou do trem uma estação antes e continuou o caminho a pé. A estrada principal na alameda era grande o bastante para permitir que caminhões industriais transitassem, embora não houvesse movimento algum de automóveis àquela hora da manhã. O concreto claro das calçadas em contraste com o piche tão escuro da estrada lhe dava a sensação de adentrar um set de filmagens recém-montado, como uma vez fizera com sua avó na infância, durante um passeio escolar.O trecho era arborizado e contava, inclusive, com uma augusta estátua diante da entrada do edifício B. A escultura em mármore parecia fazer referência à pintura A Criação de Adão, de Michelangelo. Em torno da obra, havia um pequeno lago artificial que servia de moradia para peixes. A
Demitre irrompeu na OneBionics. Dessa vez, quem esperava atrás do balcão era um homem. Não deu muita atenção a ele, apenas pediu, com uma pressa impaciente, que lhe entregasse o dispositivo de atrelar ao pulso. Passou pelo detector de mentiras. Pegou o elevador circular e esperou enquanto subia. Através das paredes de vidro, podia ver os jardins do edifício B. Arrependeu-se imediatamente de não ter escolhido pegar as escadas; odiava elevadores, detestava esperar parado. Resfolegava e transpirava. Mal se livrara do uniforme de trabalho. Vestira seu sobretudo às pressas e acabara esquecendo suas mitenes no ferro-velho. Presumia-se encrencado, supunha que seu chefe descobriria sobre sua fuga no meio expediente. Em sua cabeça, mais uma vez, havia silêncio. Mas ele sabia que, há qualquer momento, a bomba-relógio voltaria a tiquetaquear. Enquanto estivesse plenamente consciente, Demitre nunca ficaria seguro. Desafiara as vozes, como de costume. Recusara-se a fazer
Vince não tinha como saber o que esperar. Por isso se surpreendeu quando, após assinar mais um contrato, foi levado até uma sala simples de paredes brancas e sem janelas, onde deveria se sentar numa cadeira alta e apoiar as costas no respaldo. Permaneceu sentado por alguns minutos em completo silêncio, encarando uma parede de vidro fosco, através da qual não conseguia enxergar nada. Haviam instalado uma objetiva em seu rosto, que permaneceu desligada até a voz de Giella finalmente o saudar outra vez: — Coletaremos o máximo de informações durante a análise. O processo é dividido em oito etapas e durará cerca de noventa e cinco minutos. Seu padrão de fala, sua linguagem corporal e suas expressões faciais serão registrados. Você deve seguir as instruções assim como lhe forem comunicadas e expressar suas dúvidas caso não compreenda o que lhe será pedido. Você está de acordo? Vince se sentia terrivelmente consciente de si mesmo. Perguntava-se o quão precisas seriam essas
25 de julho, sábado, Duas semanas e meia antes do lançamento. O auditório era grande o suficiente para receber todos os membros da OneBionics duas vezes e ao mesmo tempo; não por coincidência, algo parecido acontecia em raras ocasiões, razão por que, em primeiro lugar, o salão havia sido construído. Alguns costumavam brincar dizendo que aquilo que os fundadores economizaram no planejamento arquitetônico dos escritórios havia sido compensado no auditório. Localizava-se no primeiro andar do edifício A; poderia ser comparado a uma câmara de deputados, embora, para Estefen, mais se assemelhasse a um híbrido entre coliseu romano e casa de opera barroca. O padrão de cores era o mesmo: carpete vermelho e estruturas douradas; havia uma espécie de afresco com o brasão da empresa e um mapa de Porto Áureo na abóbada, bem como dezenas de camarotes ao redor do salão circular. O local quase nunca tinha sua capacidade excedid
Havia corrido todo o caminho desde a estação, e agora irrompia em seu quarto. Esse dia era um pesadelo, e Demitre não via a hora de dar um fim nele. Abriu a gaveta do criado-mudo e apalpou tudo o que havia dentro. Não achou o que procurava. Esquadrinhou o quarto. Buscou na gaveta outra vez, só para ter certeza, e apenas então teve a ideia de olhar para o chão ao lado do colchão. Viu o frasco lá. Sentiu o coração saltar até a garganta enquanto se ajoelhava para verificar. Agora se lembrava: da última vez que usara o psicotrópico, devia ter adormecido com ele na mão; o frasco certamente rolara pelo colchão e derramara todo o conteúdo. Não, não, não! Dominado por mais um acesso de raiva, após se certificar de que o frasco estava mesmo vazio, atirou-o numa parede e o viu ricochetear. Não havia sobrado uma gota sequer, a droga havia evaporado. Levou ambas as mãos à cabeça e segurou os cabelos com força. Sentia que vinha perdendo a sanidade. Temia
Sentou-se no sofá, apoiou o teclado no colo e ligou o computador. Havia tanto que Vince podia acrescentar à sua carta-proposta. Não tinha aprendido muito durante seu passeio pela OneBionics, mas, após aquela tarde, sentia-se inspirado como há muito não vinha conseguindo. Assistir ao vídeo de propaganda do novo serviço da empresa fez com que Vince se lembrasse do motivo por que para ele era tão importante prosperar em sua área de atuação. Lembrou-se de seu propósito.Desde pequeno, interessava-se por descobrir como as coisas funcionavam. Ao ganhar um brinquedo novo, não costumava demorar para destruí-lo; desmontava-o, peça por peça, apenas para entender como elas haviam sido encaixadas em primeiro lugar, embora raramente conseguisse montar o brinquedo de volta. Quando alcançou idade suficiente para ter seu próprio computador, e após ha