23 de julho, quinta-feira,
Três semanas antes do lançamento.
Não era seu costume caminhar por todas as áreas do edifício A. Geralmente entrava no elevador na recepção e desembarcava em seu setor. O fato de que o prédio principal da OneBionics continha numerosos quarenta andares era um dos motivos para isso. Nessa manhã, entretanto, Estefen se via obrigado a percorrer corredores onde nunca pisara mais do que uma vez. Octavia o havia incumbido de apresentar todos os setores da empresa à Viveana Castello, a nova conselheira administrativa — e a nova correia que sua dirigente cingia ao seu pescoço, ao que tudo indicava.
De todos os funcionários da OneBionics, não o surpreendia que ele fosse aquele quem tivesse seu trabalho supervisionado de perto. Estefen conhecia um dos segredos mais delicados de Octavia, e, pensando bem, a dirigente havia demorado até demais para fechar o cerco ao redor dele.
Desde o prim
O complexo de prédios da OneBionics se situava numa alameda enorme. Vince saltou do trem uma estação antes e continuou o caminho a pé. A estrada principal na alameda era grande o bastante para permitir que caminhões industriais transitassem, embora não houvesse movimento algum de automóveis àquela hora da manhã. O concreto claro das calçadas em contraste com o piche tão escuro da estrada lhe dava a sensação de adentrar um set de filmagens recém-montado, como uma vez fizera com sua avó na infância, durante um passeio escolar.O trecho era arborizado e contava, inclusive, com uma augusta estátua diante da entrada do edifício B. A escultura em mármore parecia fazer referência à pintura A Criação de Adão, de Michelangelo. Em torno da obra, havia um pequeno lago artificial que servia de moradia para peixes. A
Demitre irrompeu na OneBionics. Dessa vez, quem esperava atrás do balcão era um homem. Não deu muita atenção a ele, apenas pediu, com uma pressa impaciente, que lhe entregasse o dispositivo de atrelar ao pulso. Passou pelo detector de mentiras. Pegou o elevador circular e esperou enquanto subia. Através das paredes de vidro, podia ver os jardins do edifício B. Arrependeu-se imediatamente de não ter escolhido pegar as escadas; odiava elevadores, detestava esperar parado. Resfolegava e transpirava. Mal se livrara do uniforme de trabalho. Vestira seu sobretudo às pressas e acabara esquecendo suas mitenes no ferro-velho. Presumia-se encrencado, supunha que seu chefe descobriria sobre sua fuga no meio expediente. Em sua cabeça, mais uma vez, havia silêncio. Mas ele sabia que, há qualquer momento, a bomba-relógio voltaria a tiquetaquear. Enquanto estivesse plenamente consciente, Demitre nunca ficaria seguro. Desafiara as vozes, como de costume. Recusara-se a fazer
Vince não tinha como saber o que esperar. Por isso se surpreendeu quando, após assinar mais um contrato, foi levado até uma sala simples de paredes brancas e sem janelas, onde deveria se sentar numa cadeira alta e apoiar as costas no respaldo. Permaneceu sentado por alguns minutos em completo silêncio, encarando uma parede de vidro fosco, através da qual não conseguia enxergar nada. Haviam instalado uma objetiva em seu rosto, que permaneceu desligada até a voz de Giella finalmente o saudar outra vez: — Coletaremos o máximo de informações durante a análise. O processo é dividido em oito etapas e durará cerca de noventa e cinco minutos. Seu padrão de fala, sua linguagem corporal e suas expressões faciais serão registrados. Você deve seguir as instruções assim como lhe forem comunicadas e expressar suas dúvidas caso não compreenda o que lhe será pedido. Você está de acordo? Vince se sentia terrivelmente consciente de si mesmo. Perguntava-se o quão precisas seriam essas
25 de julho, sábado, Duas semanas e meia antes do lançamento. O auditório era grande o suficiente para receber todos os membros da OneBionics duas vezes e ao mesmo tempo; não por coincidência, algo parecido acontecia em raras ocasiões, razão por que, em primeiro lugar, o salão havia sido construído. Alguns costumavam brincar dizendo que aquilo que os fundadores economizaram no planejamento arquitetônico dos escritórios havia sido compensado no auditório. Localizava-se no primeiro andar do edifício A; poderia ser comparado a uma câmara de deputados, embora, para Estefen, mais se assemelhasse a um híbrido entre coliseu romano e casa de opera barroca. O padrão de cores era o mesmo: carpete vermelho e estruturas douradas; havia uma espécie de afresco com o brasão da empresa e um mapa de Porto Áureo na abóbada, bem como dezenas de camarotes ao redor do salão circular. O local quase nunca tinha sua capacidade excedid
Havia corrido todo o caminho desde a estação, e agora irrompia em seu quarto. Esse dia era um pesadelo, e Demitre não via a hora de dar um fim nele. Abriu a gaveta do criado-mudo e apalpou tudo o que havia dentro. Não achou o que procurava. Esquadrinhou o quarto. Buscou na gaveta outra vez, só para ter certeza, e apenas então teve a ideia de olhar para o chão ao lado do colchão. Viu o frasco lá. Sentiu o coração saltar até a garganta enquanto se ajoelhava para verificar. Agora se lembrava: da última vez que usara o psicotrópico, devia ter adormecido com ele na mão; o frasco certamente rolara pelo colchão e derramara todo o conteúdo. Não, não, não! Dominado por mais um acesso de raiva, após se certificar de que o frasco estava mesmo vazio, atirou-o numa parede e o viu ricochetear. Não havia sobrado uma gota sequer, a droga havia evaporado. Levou ambas as mãos à cabeça e segurou os cabelos com força. Sentia que vinha perdendo a sanidade. Temia
Sentou-se no sofá, apoiou o teclado no colo e ligou o computador. Havia tanto que Vince podia acrescentar à sua carta-proposta. Não tinha aprendido muito durante seu passeio pela OneBionics, mas, após aquela tarde, sentia-se inspirado como há muito não vinha conseguindo. Assistir ao vídeo de propaganda do novo serviço da empresa fez com que Vince se lembrasse do motivo por que para ele era tão importante prosperar em sua área de atuação. Lembrou-se de seu propósito.Desde pequeno, interessava-se por descobrir como as coisas funcionavam. Ao ganhar um brinquedo novo, não costumava demorar para destruí-lo; desmontava-o, peça por peça, apenas para entender como elas haviam sido encaixadas em primeiro lugar, embora raramente conseguisse montar o brinquedo de volta. Quando alcançou idade suficiente para ter seu próprio computador, e após ha
25 de julho, sábado, Duas semanas e meia antes do lançamento. Durante aquela noite, após deixar o edifício A às pressas sem informar ninguém — com o nó da gravata frouxo e as meias na pasta —, Estefen parou em sua própria sala de estar, em seu apartamento na cobertura de um condomínio da Zona Alta, e observou através da janela o movimento do tráfego na rua. Martirizava-se pelas últimas horas; um sentimento frio, comparado apenas ao estertor de um condenado à forca, aderira-se aos seus ossos como velcro, e neles se demorava. No caminho para casa, projetara uma série de cenários; dentre eles, algumas ideias de como se esquivar das consequências terríveis que se preparavam para descender sobre ele como chuva ácida. No fim, apenas se posicionara ali, onde já estava há mais de meia hora, de braço cruzado à altura da barriga, mordiscando a ponta do indicador. Não estava calmo. Sentia-se o oposto disso. Mas havia algo
Um grito lhe provocou sobressalto. Olhou para trás. Dois homens discutiam perto de um bar de esquina. Não era com ele. Voltou a olhar para frente enquanto caminhava. O dinheiro emprestado ainda estava no bolso; a trouxa, ainda no ombro. Não tinha para onde ir, não sabia se queria ir a algum lugar. Por isso, apenas continuou andando. Pretendia parar em breve, mas ainda não. Aquela era a área mais decadente da Zona Baixa. Do outro lado da calçada, um enorme viaduto era sustentado por arcos e colunas, que um dia deviam ter atraído turistas, mas que haviam se transformado há muito tempo no covil de mendigos e drogados. Demitre não observava as paredes pichadas com assinaturas tortas, palavrões e desenhos fálicos. Tampouco se importava com os esmoleiros descabelados, com uma crosta negra de sujeira nas solas dos pés e no rosto; os infelizes dormiam sobre papelão, ou arrastavam seu lençol imundo de um lado para o outro; organizavam-se nas vielas sob a avenida; havia uma espécie de